Público & Pragmático

Autocomposição e administração pública: faculdade ou dever?

Autor

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

23 de outubro de 2022, 8h00

A Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ) realizou em nova sede de seu exuberante Centro de Estudos, no dia 13/10/2022, o Seminário "Autocomposição e Administração Pública", sob a competente coordenação científica do procurador-geral Bruno Dubeux e do dileto amigo, procurador do estado e professor doutor de Processo Civil na Uerj, Marco Antonio Rodrigues.

Spacca
O evento impecável contou com a participação de autoridades do Executivo e do Judiciário brasileiro, bem como de renomados professores de Direito Administrativo e de Processo Civil de todo o país [1], sendo que tive a honra de integrar e contribuir para a reflexão sobre a temática no Painel II: Autocomposição e seus limites envolvendo a Fazenda.

Este artigo contempla, portanto, uma primeira parte das reflexões teóricas e pragmáticas que pude ali empreender, e que passo a compartilhar com os leitores de nossa coluna.

É notável a evolução e a expansão dos Métodos Adequados de Solução de Conflitos (Mascs) na administração pública brasileira nos últimos dez anos, gerando experiências apoiadas em uma base normativa inovadora do tratamento dos conflitos e litígios administrativos que abrange inúmeras leis, decretos e regulamentos internos de órgãos e entidades públicas, com destaque para o Novo Código de Processo Civil (2015), Lei federal nº 13.140/15 (Mediação e Autocomposição Administrativa), Reforma da Lei de Arbitragem de 2015, Lei federal nº 13.655/18 (LINDB) e seu Decreto nº 9.830/19, artigos 151 a 154 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos — Lei federal nº 14.133/20 [2], entre vários outros diplomas normativos.

É fato que essas experiências em nível federal, estadual e municipal ensejam trilhas muito interessantes de boas práticas envolvendo a autocomposição administrativa e o uso da mediação, da conciliação, da arbitragem e dos novíssimos dispute boards, além de impulsionar fortemente a disseminação do denominado Dispute System Design (DSD) — Desenho de Sistema de Disputas — [3] no âmbito do setor público como um todo.

Contudo, para além de catalogar boas práticas autocompositivas e heterocompositivas de conflitos administrativos e litígios públicos, parece-me pertinente que possamos igualmente trabalhar pela melhor sistematização da matéria sob o ponto de vista científico e dogmático, não descuidando de abordagens pragmáticas, buscando, por exemplo, melhor compreender o alcance e os limites da autocomposição para a administração pública, considerado o regime jurídico de Direito Público que lhe confere base e sustentação [4].

Nessa linha, importa que tenhamos todos, como ponto de partida de um debate sobre autocomposição administrativa, uma concepção mais amplificada do acesso à Justiça enquanto direito e garantia constitucional, à luz do novel Sistema de Justiça Multiportas, oficializado no Brasil pelo Novo Código de Processo Civil (2015) e legislação adjacente, mas que já vinha sendo construído por meio de políticas judiciárias lideradas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao menos desde os idos de 2010, cujo exemplo maior é a edição da Resolução nº 125 [5] sobre tratamento adequado de conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário.

Parece-me essencial que se compreenda de uma vez por todas que, a partir do momento no qual o sistema de justiça brasileiro inaugura e fortalece múltiplas portas de entrada, tratamento e resolução adequada dos conflitos públicos para além da porta do Judiciário, esfera e via autocompositiva administrativas passam a ser não somente consideradas, mas principalmente integradas como uma das portas possíveis para alocação do conflito, destacando-se com cores fortes — como corolário do Acesso à Justiça Multiportas — a Tutela Administrativa Efetiva [6] e ao menos  três deveres dela decorrentes: 1. Dever Administrativo de Efetivação dos Direitos tutelados pela Administração Pública (incluídos os direitos fundamentais), 2. Dever Administrativo de Resolução do Conflito (ou dever de decidir) e o que nos interessa mais de perto nesta oportunidade, 3. Dever Administrativo de Autocomposição dos Conflitos Públicos (o qual haverá de preceder, necessariamente, o dever de decisão).

Trata-se de uma transformação copérnica, consistente em autêntica premissa para concretizar o tratamento adequado dos conflitos públicos na seara administrativa, promovendo-se assim novos contornos da autocomposição administrativa, demandando da administração pública a tomada de uma série de providências abrangendo temas correlatos, tais como: 1. especialidade e organização interna da função administrativa de autocomposição, a partir da segregação dessas atividades no quadro funcional do órgão ou entidade pública, 2. elaboração de um procedimento normativo de autocomposição [7], notadamente contendo regras sobre o seu devido processo legal mínimo, 3. parâmetros de segurança jurídica, confiança legítima e estabilidade dos processos negociais e acordos autocompositivos, 4. institucionalidade da autocomposição, a partir da criação — ou não — de Câmaras Públicas de Mediação e Conciliação de Conflitos, geralmente inseridas nas estruturas das Advocacias Públicas e 5. Capacitação e Treinamento dos advogados públicos e agentes nas atividades de negociação, mediação e conciliação.

Prosseguindo, entendo essencial assimilarmos que no cenário apresentado — e a partir de uma interpretação sistêmica do quadro jurídico-normativo vigente da autocomposição administrativa — diante da exsurgência do conflito de interesses, impõe-se à administração pública não a mera faculdade, e sim a obrigatoriedade de propor à contraparte uma fase formal e processualizada de autocomposição desse conflito — eis o dever de autocomposição administrativa decorrente da Tutela Administrativa Efetiva acima assinalada — a ela oferecendo sobretudo as vias da negociação, da mediação e da conciliação [8].

Todas as peças deste grande quebra-cabeças, quando devidamente unidas, formam uma necessária Política de Gestão de Conflitos Públicos, precipuamente com finalidades de 1. transformação da cultura da litigância para a pacificação do conflito, 2. desjudicialização dos litígios administrativos e 3. busca da celebração de acordos autocompositivos como forma preferencial de resolução dos conflitos públicos na esfera administrativa. Esta Política pode ser muito bem construída a partir da adoção de técnicas e métodos de Dispute System Design, o qual propõe que estruturação, organização e funcionamento de um sistema de enfrentamento de conflitos haverão de congregar e integrar diversos métodos autocompositivos e heterocompositivos, administrativos e judiciários, inclusos a arbitragem e o Dispute Board, voltados à prevenção, gestão e resolução dos conflitos.

E para finalizar esta inicial reflexão propedêutica — de fundo dogmático e pragmático — sobre a compreensão e inserção da autocomposição administrativa em um sistema de gestão de conflitos, indispensável colocar em relevo que a observância do dever administrativo de autocomposição nos moldes aqui propostos — em conjunto com todo os demais elementos que compõem um dado sistema administrativo de disputas — acaba por (1) reforçar detidamente o próprio dever administrativo de resolução do conflito (dever de decisão), (2) conferir mais estabilidade e segurança jurídica ao sistema em si como um todo e (3) extrair o melhor das vocações e funcionalidades de cada um dos Métodos Adequados de Resolução de Conflitos.

Razoavelmente definidas estas premissas basilares acerca do dever administrativo de autocomposição, em uma próxima oportunidade pretendo trazer à baila contribuição para encetar debate sobre eventuais limites à autocomposição administrativa, os quais antecipo aqui, podem ser principalmente das seguintes naturezas: 1. Limites materiais ou substanciais, 2. Limites formais ou adjetivos, 3. Limites temporais e 4. Limites econômico-financeiros. Até o próximo artigo.

 


[2] A propósito, cf. nosso OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de; MOREIRA, Matheus Teixeira. Solução negociada de conflitos na nova Lei de Licitações: consagração de uma tendência. Revista Eletrônica da PGE-RJ, 04 maio 2022.

[3] Sobre a temática, cf. FALECK, Diego. Manual de design de sistemas de disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018; ROGERS, N. et al. Designing Systems and Processes for Managing Disputes. 2nd edition. New York: Wolters Kluwer, 2019; STAFF, Pon. What is Dispute System Design? How to resolve organizational conflicts with an effective dispute system design. Harvard Law School — Program of Negotiation (Daily Blog). Disponível em: https://www.pon.harvard.edu/daily/dispute-resolution/what-is-dispute-system-design/.

[4] Sobre acordos administrativos, em que realizei esforço semelhante de reflexão e sistematização, com intuitos similares ao do presente artigo, cf. OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Os acordos administrativos na dogmática brasileira contemporânea. In: MOREIRA, António Júdice et al (coords.). Mediação e arbitragem na Administração Pública: Brasil e Portugal. São Paulo: Almedina, 2020. p. 103-113.

[5] CNJ. Resolução 125/2010. Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/156.

[6] A respeito do Sistema de Justiça Multiportas e Tutela Administrativa Efetiva, cf. nosso OLIVEIRA, Gustavo Justino de; RAZZINI, Felipe. Em busca da desjudicialização dos litígios públicos. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-18/oliveira-razzini-busca-desjudicializacao-litigios-publicos.

[7] Exemplar e recente Regulamento de Autocomposição Administrativa é a Resolução PGE-RJ nº 4827, de 16/3/2022, a qual "REGULAMENTA, NO ÂMBITO DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, O PROCEDIMENTO DE AUTOCOMPOSIÇÃO DE CONTROVÉRSIAS ENVOLVENDO A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ESTADUAL, A SER OBSERVADO PELOS PROCURADORES LOTADOS NAS PROCURADORIAS ESPECIALIZADAS DA PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO E NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA OU INDIRETA, E DA OUTRAS PROVIDÊNCIAS". Disponível em: https://biblioteca.pge.rj.gov.br/scripts/bnweb/bnmapi.exe?router=upload/82433.

[8] Sustento que embora o art. 32, § 2º da Lei federal nº 13.140/15 determine que "a submissão do conflito às câmaras de que trata o caput é facultativa e será cabível apenas nos casos previstos no regulamento do respectivo ente federado", a autocomposição administrativa não está restrita e vinculada à atuação exclusiva de Câmaras de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos. Ademais disso, o dever de autocomposição administrativa deve ser devidamente regulamentado pelos entes públicos, sendo plenamente legítimo à administração pública estabelecer condicionantes variados — justificados dentro desse mesmo regulamento — sem no entanto obstar ou aniquilar a possibilidade de se instaurar processos autocompositivos na tentativa de solucionar o conflito por esta via.

Autores

  • é professor doutor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor, advogado especializado em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!