Ambiente Jurídico

Há salvação para as licenças ambientais inválidas?

Autores

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

  • Lucas Gondim

    é procurador do estado de Goiás advogado bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pós-graduado em Direito Público.

22 de outubro de 2022, 8h00

A descoberta superveniente de irregularidades graves em licenciamentos ambientais inaugura uma celeuma que pode render muita "dor de cabeça" não só para os empreendedores, mas também para os órgãos que compõem o Sistema Nacional do Meio Ambiente. Aqueles se veem, repentinamente, desamparados da segurança jurídica cultivada com uma expectativa legítima em toda a complexa — e, muitas vezes, morosa e dispendiosa — condução do licenciamento. As autoridades ambientais, por seu turno, são colocadas numa encruzilhada entre o seu poder-dever de autotutela e o interesse público subjacente, agravado, muitas vezes, pela percepção da boa-fé do particular lesado pelo ardil ou pela inaptidão de quem recheou de nulidades um licenciamento ambiental.

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Infelizmente, situações como essa ainda são bastante comuns no Brasil, quer pela má-fé de estelionatários que forjam licenças ambientais ideologicamente falsas, quer pela imperícia de agentes públicos que ignoram a sistemática da Lei Complementar nº 140/2011. Some-se a isso uma defasagem na própria retaguarda dos empreendedores, que, muitas vezes, dispensam um controle preventivo de seus licenciamentos, nas hipóteses em que as invalidades podem ser facilmente antevistas pelo próprio interessado.

De todo modo, parte da doutrina administrativista entende existir um verdadeiro dever de conservação dos atos administrativos [1], o que implica um esforço dos agentes públicos em encontrar soluções jurídicas adequadas para a restauração da legalidade no caso concreto, sem perder de vista o interesse público. A par das discussões acerca da compulsoriedade ou não da convalidação (como gênero que engloba a ratificação, a conversão e a reforma de atos administrativos), fato é que a compreensão contemporânea desse fenômeno aponta no sentido de se conferir juridicidade ao princípio da proteção à confiança legítima, que encontra amparo constitucional na segurança jurídica, verdadeiro "subprincípio" do próprio Estado de Direito [2].

A partir da chamada teoria quaternária das invalidades dos atos administrativos, proposta pelo professor Celso Antônio Bandeira de Mello [3], estes podem ser classificados em relação aos vícios que apresentam como inexistentes, nulos, anuláveis ou meramente irregulares. Adota-se, por decorrência lógica, a teoria dualista [4], segundo a qual o direito administrativo admite a distinção entre "atos nulos" e "atos anuláveis", diferenciados de acordo com a saneabilidade ou não dos vícios que apresentem.

Transpondo as categorias doutrinárias para a realidade ambientalista, inexistente seria a licença ambiental contaminada numa ordem que sequer se permite cogitar a sua "conversão" [5]. Para o professor Celso Antônio, os atos administrativos inexistentes envolvem, no esteio de sua formação, a prática de condutas criminosas ou a afronta a princípios gerais do direito. É o caso da licença fruto do estelionato (artigo 171 do Código Penal) falsidade documental (artigo 297) ou da usurpação da função pública (artigo 328). Nesses casos, as licenças forjadas por estelionatários são atos que se situam "fora do próprio direito", não havendo que se cogitar de sua convalidação. O reconhecimento da invalidade, nesses casos, tem efeitos incontroversamente retroativos.

Tênue e imbricada é a distinção entre licenças ambientais nulas e aquelas anuláveis. Ainda que se considere a incidência da já referida teoria dualista, o que parece inservível é o esquema da saneabilidade dos vícios de acordo com os elementos dos atos administrativos. Para a doutrina tradicional [6], apenas admitem a convalidação os vícios relacionados à competência (quando delegável), à forma (quando não essencial) e ao objeto (quando plúrimo).

Antes de tudo, a definição daquilo que admite ou não convalidação deve ter como ponto de observação não a perspectiva do agente licenciador, mas a do interesse amparado pela confiança legítima. Esse é a tese encampada pelo professor Gustavo Binebojm ao revisitar a teoria da convalidação dos atos administrativos, cujo magistério reconhece a juridicidade dos efeitos do ato administrativo inválido por motivos ligados "à segurança jurídica e à boa-fé objetiva, as quais, numa equação de ponderação, devem prevalecer sobre a legalidade estrita" [7]. Vale reiterar: o que resguarda juridicidade não é o ato em si, mas o seu efeito.

Partindo desse pressuposto, a regra é a possibilidade de convalidação de uma ampla gama de vícios verificados nas licenças ambientais, desde que observados alguns requisitos que aqui se ousa esquematizar.

O primeiro deles seria a verificação in concreto da existência de uma violação à confiança legítima depositada pelo interessado. Este deve demonstrar, simultaneamente, a sua boa-fé objetiva e os danos sofridos pela eventual nulificação da licença, um ato ampliativo de direitos. O professor Gustavo Binebojm [8] enumera algumas situações em que não se pode considerar vulnerado o princípio da proteção à confiança: quando o beneficiário atue com dolo, coação ou fraude; quando houver erro grosseiro da administração, facilmente apreensível pelo interessado; quando inexistir dano efetivo ao requerente. Nesses casos, "não há confiança legítima a ser protegida", senão apenas a "tutela de legalidade, que se impõe solitariamente na espécie".

O segundo requisito é de matriz legal, qual seja, a ausência de lesão ao interesse público ou de prejuízo a terceiros, conforme o artigo 55 da Lei Federal nº 9.784/1999. "Terceiros", nesse caso, devem ser compreendidos como pessoas naturais e jurídicas diretamente afetadas pelo empreendimento cujo licenciamento é viciado.

O terceiro é a composição do dano ambiental eventualmente derivado da execução de atividades sem licenciamento ambiental válido. Essa é uma exigência sistêmica que emerge da adoção de um modelo de responsabilidade objetiva para os danos ambientais, guiada pela teoria do risco integral. Assim, a boa-fé do empreendedor não é capaz de afastar o seu dever de recuperar o meio ambiente degradado. Outrossim, exigir a regularização da situação ambiental do empreendimento para que possa ocorrer a convalidação é uma decorrência da inexistência de direito adquirido à degradação [9], colmatado com a inadmissibilidade da teoria do fato consumado em matéria ambiental (Súmula STJ nº 613).

Por fim, e por óbvio, é preciso que a convalidação seja promovida por órgão competente para prática original do ato. Quanto a esse, o fato de ser obrigatória uma ponderação acerca da inexistência de lesão ao interesse público ou de terceiros (artigo 55 da Lei nº 9.784/1999) presume um certo grau de discricionariedade na decisão por convalidar ou não convalidar — embora se reconheça que parte relevante da doutrina entenda se tratar de ato vinculado [10].

Tecidas essas considerações gerais, passa-se a uma análise pontual do tratamento jurídico das invalidades mais comuns.

Em relação aos vícios de competência, a distinção entre competência delegável/indelegável perde seu sentido. Como rememora o professor Eduardo Bim [11], a LC nº 140/2011 admitiu a delegação ampla entre os órgãos licenciadores (artigo 5º) e previu uma atuação supletiva dos entes federativos (artigo 15), isso sem falar no fato de que as competências administrativas que envolvem o meio ambiente são comuns (artigo 23 da Constituição Federal).

Quanto aos problemas de objeto, isto é, do próprio conteúdo do licenciamento, é possível imaginar uma ampla gama de invalidades: enquadramento errôneo da atividade licenciada (ex.: limpeza de pastagem no lugar de supressão da vegetação nativa); análise incorreta do grau de impacto ambiental; dispensa equivocada do próprio licenciamento ou de alguma de suas fases. Constatada a boa-fé objetiva e tendo sido o erro provocado pelo órgão efetivamente competente para licenciar, é dever deste efetuar a conversão do licenciamento. Se promovido originalmente por órgão incompetente, o que ocorrerá, na prática, é um novo licenciamento ambiental.

Por fim, os riscos integrados aos empreendimentos que possuem impacto ambiental não eximem o empreendedor de boa-fé do dever de regularizar sua atividade e recompor os danos ambientais eventualmente emergidos do licenciamento inválido. Não há direito adquirido a prosseguir a quem operava sem licença ambiental válida. Contudo, é possível eximir o requerente da responsabilidade administrativa (de caráter subjetivo), se comprovado que ele não concorreu dolosa nem culposamente para as infrações associadas ao início das intervenções sem licença válida.

 


[1] BAPTISTA, Patrícia Ferreira. A revisão dos atos ilegais no direito administrativo contemporâneo: entre legalidade e proteção da confiança. In: ALMEIDA, Fernando Dias Menezes et. al. Direito Público em Evolução: estudos em homenagem à professora Odete Medauar. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 311-333, apud BIM, Eduardo Fortunato. Convalidação de licenciamento ambiental efetuado por órgão incompetente. RDDA, v. 2, n. 2, pp. 551-577, 2015.

[2] Supremo Tribunal Federal, Pet 2900-3 QO/RS, rel. min. Gilmar Mendes, DJ 1/8/2003.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 427.

[4] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo, 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense Método, 2021, p. 295.

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 429.

[6] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo, 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense Método, 2021, p. 295.

[7] BINEBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 186.

[8] BINEBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 200.

[9] STJ – EDcl nos EDcl no Ag: 1323337 SP 2010/0110974-4, relator: ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, data de julgamento: 22/11/2011, T2 – 2ª TURMA, Data de Publicação: DJe 1/12/2011.

[10] "Havendo previsão legal de convalidação (ou sendo possível, do ponto de vista lógico, a repetição do ato no momento presente, de forma lícita), esta será obrigatória, por ser a solução que, de forma otimizada, promove a legalidade e preserva a legítima confiança dos beneficiários" (BINEBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 198).

[11] BIM, Eduardo Fortunato. Convalidação de licenciamento ambiental efetuado por órgão incompetente. RDDA, v. 2, nº 2, pp. 551-577, 2015.

Autores

  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

  • é procurador do estado de Goiás, advogado, bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pós-graduado em Direito Público.

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