Escritos de Mulher

Políticas fiscais brasileiras e desigualdade de gênero (parte 1)

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19 de outubro de 2022, 7h00

No recentíssimo julgamento da ADI nº 5.422, o Plenário do Supremo Tribunal Federal ratificou a declaração de inconstitucionalidade da incidência do Imposto de Renda sobre os valores recebidos a título de pensão alimentícia [1], consubstanciando que a destinação à subsistência do alimentando é incompatível com o acréscimo patrimonial, ou seja, com a própria materialidade e base de cálculo do imposto de renda [2].

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Ainda, na decisão proferida no julgamento dos embargos de declaração opostos pela AGU com pleito de modulação dos efeitos e previsão de limites para a exclusão da pensão alimentícia do campo de incidência do imposto de renda, o STF ponderou que apesar do relevante impacto da repetição do indébito aos cofres públicos, "os valores devidos a tais pessoas, as quais não têm sustento próprio (ou, […] não encontram 'meios, ao menos imediatos, para atender às suas necessidades mais elementares'), a título de repetição de indébito são extremamente importantes para elas".

Para além dos desdobramentos tributários, o acórdão do julgamento da ADI nº 5.422, publicado em 23 de agosto de 2022 traz à tona complexa problemática: a evidente diferença na tributação existente entre homens e mulheres, assim como a falta de políticas fiscais capazes de equilibrar a desigualdade de gênero.

Como bem fundamentado pelo ministro Roberto Barroso em seu voto-vista, segundo pesquisa do IBGE realizada em 2019 "em 66,91% dos divórcios concedidos em primeira instância a casais com filhos menores de idade, coube à mulher a guarda do(s) filho(s). Em apenas 4,37% dos divórcios, a guarda foi atribuída ao pai e, em 28,72% [34], a guarda foi compartilhada. Assim, pode-se inferir que em, ao menos, 66,91% dos divórcios registrados, o pagamento da pensão alimentícia aos filhos será feito pelo homem".

Ao reconhecer o homem como sujeito que majoritariamente paga pensões no país, o ministro esmiúça fato importante: o pai poderá abater da base de cálculo de seu imposto de renda a integralidade dos valores pagos, mas a mãe, responsável civil e tributária do alimentando, é quem sofre a incidência tributária como se os "alimentos" fossem rendimento recebido, em situação que nomeou como "verdadeiramente anacrônica, anti-isonômica e em verdadeira violação ao melhor interesse da criança e a sua proteção integral".

O anacronismo existente na falta de perspectiva de gênero nas políticas fiscais brasileiras fica evidente na menção feita pelo ministro Barroso ao caso Douglas v. Willcuts, da Suprema Corte dos Estados Unidos que, em 1935, decidiu que o pagamento de pensão alimentícia feito por um homem a ex-esposa é inerente ao dever de sustento e, portanto, obrigatório, sendo certo que de forma alguma poderia ser considerado rendimento passível de tributação.

A premissa que deve viger as políticas fiscais é a equidade de gênero, eis que, segundo Barroso "a tributação não pode ser um fator que aprofunde as desigualdades de gênero, colocando as mulheres em situação social e econômica pior do que a dos homens. É inconteste que o dever de cuidado, socialmente construído e atribuído primordialmente às mulheres, precisa ser dividido entre os membros do casal ou do ex-casal da forma mais equânime possível, sendo inconstitucional que, em contrapartida aos cuidados dos filhos, a mulher sofra oneração por parte do Estado. É necessário, desse modo, conferir à discussão sobre o impacto da tributação sobre o gênero feminino o status constitucional que ela merece".

A mesma linha argumentativa ensejou o reconhecimento da inconstitucionalidade da tributação do salário maternidade no RE nº 576.967, lastreada na igualdade de gênero prevista no artigo 5º, I, segundo o qual "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição" cuja aplicação deve integralizar o dever constitucional [3] atribuído a pai e mãe de, em iguais condições, assistir, criar e educar os filhos menores.

A conclusão do voto de Barroso na ADI nº 5.422 não deixa dúvidas, "a previsão da legislação acerca da incidência do imposto de renda sobre pensão alimentícia acaba por penalizar ainda mais as mulheres, que além de criar, assistir e educar os filhos, ainda devem arcar com ônus tributários dos valores recebidos a título de alimentos, os quais foram fixados justamente para atender às necessidades básicas da criança e do adolescente. A incidência do imposto de renda sobre pensão alimentícia configura, portanto, regra discriminatória que não encontra respaldo no texto constitucional".

Noutro trecho do acórdão, em análise de situação hipotética sobre as deduções legais de "dependentes" e de "pensão alimentícia" em suposto caso no qual teria havido divórcio com a fixação de guarda dos filhos para a mãe, o ministro Gilmar Mendes didaticamente explanou sobre a exorbitante diferença entre os valores recolhidos por homens e mulheres ao destacar que "os exemplos acima colacionados não deixam dúvidas de que a legislação não é neutra em relação ao gênero. Ao revés, ela amplia as desigualdades já existentes, visto que a alíquota efetiva da mãe aumenta e a do pai diminui. Isso porque a legislação permite a dedução da base de cálculo do pai com a consequente inclusão como rendimentos tributáveis da mãe".

De fato, a decisão do Supremo Tribunal Federal descortina um modus operandi público que privilegia homens em detrimento de mulheres, a partir de um sistema que naturaliza a super oneração da mulher que, segundo Gilmar Mendes, "com o pseudo objetivo de ser neutro, está na realidade financiando o aumento das desigualdades, visto que o destinatário quase que exclusivo da norma exacional é a mulher. Além disso, não estamos diante de uma tributação idêntica ou equiparável entre homens e mulheres, em que a desigualdade seria resultante das condições já existentes de desnivelamento. Ao revés, a dedução da base de cálculo prevista na norma é endereçada predominantemente à população masculina (99,9998%). São, portanto, dois lados da mesma moeda: tributa-se mais a mãe, em compensação à dedução da base de cálculo do pai".

Talvez pela relevância do tema e impacto social da decisão, diferentemente de outro temas tributários, nos quais a Receita Federal do Brasil só manifesta sua vinculação às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal após a manifestação da Procuradoria-Geral da Fazenda e do cumprimento do rito estabelecido nos artigos 19 e 19-A, [JF1] da Lei nº 10.522/02 [4], no presente caso, a Receita Federal se manifestou acatando a decisão do STF em menos de sete dias, esclarecendo a possibilidade de restituição dos valores pagos indevidamente nos últimos 5 anos pela via administrativa, ou seja, sem a necessidade do ajuizamento de ação de repetição do indébito.

É verdadeiramente digna de aplausos a decisão do Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI nº 5.422. O que é problemático é que, apenas em 2022, a corte brasileira tenha voltado os seus olhos para a discrepante desigualdade de gênero que permeia também o sistema tributário nacional. A partir de agora, estas mulheres — que além de realizar a invisível e não remunerada tarefa de cuidar de seus filhos e de seus lares, em dupla ou tripla jornada — poderão reaver os valores tributados indevidamente.

Torçamos para que este seja apenas o primeiro passo rumo a uma reformulação das tributações que acentuam a desigualdade estrutural havida entre homens e mulheres.

Continuação na parte 2.

 


[1] ADI 5.422

[2] Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

[3] Art. 229.

[4] Art. 19-A. Os Auditores-Fiscais da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil não constituirão os créditos tributários relativos aos temas de que trata o art. 19 desta Lei, observado: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I – o disposto no parecer a que se refere o inciso II do caput do art. 19 desta Lei, que será aprovado na forma do art. 42 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, ou que terá concordância com a sua aplicação pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II – o parecer a que se refere o inciso IV do caput do art. 19 desta Lei, que será aprovado na forma do disposto no art. 40 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, ou que, quando não aprovado por despacho do Presidente da República, terá concordância com a sua aplicação pelo Ministro de Estado da Economia; ou (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

III – nas hipóteses de que tratam o inciso VI do caput e o § 9º do art. 19 desta Lei, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional deverá manifestar-se sobre as matérias abrangidas por esses dispositivos. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 1º. Os Auditores-Fiscais da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia adotarão, em suas decisões, o entendimento a que estiverem vinculados, inclusive para fins de revisão de ofício do lançamento e de repetição de indébito administrativa. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º. O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, aos responsáveis pela retenção de tributos e, ao emitirem laudos periciais para atestar a existência de condições que gerem isenção de tributos, aos serviços médicos oficiais.

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