Paradoxo da Corte

Relevância da sentença judicial na obra de Calamandrei

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

18 de outubro de 2022, 8h00

O tema da sentença, sob múltiplos aspectos, foi o que mais marcou a obra do grande processualista Piero Calamandrei, que é considerado, ao lado de Chiovenda, Carnelutti e Redenti, fundador da escola processual italiana, na primeira metade do século 20.

Spacca
O ensaio La Genesi Logica della Sentenza Civile, um dos primeiros estudos do mestre florentino, publicado em 1914, tem como conteúdo um verdadeiro diagnóstico do ato de julgar, composto pelos "giudizi generali e ipotetici" e pelos "giudizi singolari e positivi".

Calamandrei explica que o processo de subsunção, embora tenha um esquema formal, reveste-se de enorme complexidade, porque, em apertada síntese, qualquer processo se caracteriza por inúmeros pontos de direito e de fato que reclamam solução e que impõem, para o seu respectivo julgamento, uma operação lógica ao juiz. E esta ratio torna-se ainda muito mais difícil se a lei a ser aplicável contém palavras de significado variável, como, por ex., ordem pública, justo motivo, etc. (Il Giudice e lo Storico, Opere Giuridiche, vol. 1, Morano, Nápoles, 1966, pág. 402).

De inegável interesse, pela originalidade (que até hoje perdura), é o artigo La Sentenza Soggettivamente Complessa, de 1924, no qual, a partir da teoria do ato jurídico complexo, vem enfocada a construção do ato decisório por mais de um órgão, verificando-se, assim, um concurso de atividades intelectual e volitiva. A característica deste pronunciamento judicial é que ele desponta único, a despeito de ter sido formado com a cooperação de diversos tribunais ou órgãos de um mesmo tribunal. Daí, a denominação complexidade subjetiva (Rivista di Diritto Processuale Civile, 1924, pág. 213 ss.).

Para melhor se entender esse fracionamento em fases separadas daquele labor mental, tomo a liberdade de exemplificar com o fenômeno processual que se verifica no julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas, disciplinado no artigo 976 e seguintes do nosso Código de Processo Civil, no qual o julgamento do órgão colegiado competente, fixando a orientação pretoriana (quaestio iuris) que deverá prevalecer, "incorpora-se", como premissa inafastável, à subsequente sentença ou acórdão a ser proferido, no caso concreto, "em todos os processos individuais ou coletivos" e, ainda, nos "casos futuros que versem idêntica questão de direito" (artigo 985).

José Frederico Marques, valendo-se da hipótese aventada por Calamandrei, dos julgamentos penais da Corte d’Assise italiana, fornece ainda como espécie de decisão subjetivamente complexa a sentença do tribunal do júri, "pois jurados e juízes, com competência funcional delimitada em razão do objeto do juízo, decidem a causa penal por escalas. Aos jurados, através do veredito, cumpre dizer, por meio de respostas a quesitos, se houve ato típico criminalmente ilícito e culposo, atribuível ao réu, bem como reconhecer circunstâncias que influam na aplicação da pena; quanto ao juiz, a tarefa consiste em, de acordo com o veredito, lavrar a sentença do júri, graduar a sanção penal e decidir sobre a aplicação de medidas de segurança e penas acessórias" (O Júri e sua Nova Regulamentação Legal, São Paulo, Saraiva, 1948, pág. 127).

No que toca à natureza da sentença, Calamandrei escreveu, em 1932, os Appunti sulla Sentenza come Fatto Giuridico. Adverte, de logo, que a ideia não era realmente nova, visto que o mérito de estudar a sentença como fato jurídico havia sido de Gaetano Morelli, embora sob a ótica do Direito Internacional.

Na órbita interna do processo civil, a sentença pode ser considerada como fato jurídico, porque, a despeito de sempre constituir uma declaração de vontade de um sujeito — o juiz —, ela, normalmente, gera outros efeitos, além daqueles próprios do julgado, mas que não encontram neste a respetiva causa. São os denominados efeitos externos à sentença, cujo exemplo mais saliente é a produção da hipoteca judicial (Appunti sulla Sentenza come Fatto Giuridico, Rivista di Diritto Processuale Civile, 1932, pág. 15 ss.).

Já no artigo Il Giudice e lo Storico (Rivista di Diritto Processuale Civile, 1939, pág. 105 ss.; Opere Giuridiche, vol. 1, cit., pág. 393 ss), escrito em homenagem ao renomado historiador do direito Enrico Besta, demonstrando, mais uma vez, o seu interesse pela história, retorna ao tema, que lhe era muito caro, da complexa atividade decisória do juiz. Refere ele, inicialmente, ao livro de Calogero (La Logica del Giudice e il suo Controllo in Cassazione, 1937), no qual é feito um paralelo entre a atividade do historiador e aquela do juiz, para concluir que, no concernente à perquirição da quaestio facti, o exame do material disponível é análogo entre as duas atividades mentais. Para a investigação da quaestio iuris, no entanto, o trabalho do juiz é muito mais árduo. E isto, porque o juiz é colocado diante de uma demanda formulada por outra pessoa, impedindo-o de proferir qualquer juízo extra petita. Aquela natural curiosidade do historiador que o impulsiona a explorar o mundo por inúmeras vertentes não se equipara, por nada, à atividade do juiz, visto que, no processo liberal moderno, prevalece a regra nemo iudex sine actore, mantendo o julgador numa posição passiva. O juiz, portanto, jamais pode conhecer dos fatos controvertidos sponte propria. Inúmeros são os axiomas que o impedem: iudex secundum allegata decidere debet, quod non est in actis no est in mundo.

Todavia — prossegue Calamandrei —, no que respeita ao conhecimento do direito, as coisas se passam de forma diferente, porquanto, pelo princípio iura novit curia, o juiz tem toda liberdade de aplicar as regras jurídicas ao caso que foi submetido à sua apreciação.

As restrições que são impostas, no processo civil, à livre investigação do juiz (abrangente inclusive de seu conhecimento privado), especialmente no processo dispositivo, não tendem a tornar menos penetrante a busca da verdade, mas visam a utilizar, como instrumento de descoberta mais eficaz, os interesses das partes contrapostas, cada qual lutando para evidenciar o lado da verdade que o beneficia. O jogo desta contraposição de forças individuais, atuantes no processo, leva, na maioria dos casos, a descobrir a verdade de forma muito mais consistente do que no âmbito de um processo inquisitório, no qual todas as iniciativas estão reservadas ao juiz (Il Giudice e lo Storico, Opere Giuridiche, vol. 1, cit., pág. 402).

Importante, outrossim, é o ensaio La Sentenza come Mezzo di Prova (Rivista di Diritto Processuale Civile, 1938, pág. 108 ss.). Nesse trabalho, a primeira indagação formulada por Calamandrei é a seguinte: "A sentença civil pode valer como prova documental dos fatos que se encontram afirmados nas premissas de sua respectiva motivação?"

Em princípio, considerada como espécie de documento, a sentença ostenta eficácia probatória em inúmeras situações. É certo, porém, que os juízos de fato, que o precedente juiz formulou como premissas necessárias para chegar à conclusão, têm um caráter relativo e contingente. Desse modo, a eficácia probante da sentença é relativa: ela atesta a existência daqueles juízos de fato, mas não documenta a sua exatidão. Desse modo, pelo princípio do livre convencimento, o juiz, ao examiná-la em conjunto com os outros possíveis elementos de prova produzidos nos autos, poderá ou não considerá-la para formar a sua convicção. Calamandrei ressalta, no entanto, que pela circunstância de conter uma declaração proveniente de um juiz, a motivação de uma sentença, enquanto meio de prova, é moralmente revestida de significativo valor.

Por derradeiro, sob o título Sentenze Sintomatiche (Rivista di Diritto Processuale Civile, 1941, pág. 358 ss.), explorando a experiência haurida na praxe forense, Calamandrei colaciona vários exemplos de atos decisórios viciados e, até, teratológicos, seja por ausência de fundamentação, seja por motivação perplexa.

Daí, a reafirmação no sentido de que os juízes devem ter a exata dimensão da relevância da atividade judicante, a fim de que o processo possa ser concebido como instrumento de realização de justiça!

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