Relevância da sentença judicial na obra de Calamandrei
18 de outubro de 2022, 8h00
O tema da sentença, sob múltiplos aspectos, foi o que mais marcou a obra do grande processualista Piero Calamandrei, que é considerado, ao lado de Chiovenda, Carnelutti e Redenti, fundador da escola processual italiana, na primeira metade do século 20.
Calamandrei explica que o processo de subsunção, embora tenha um esquema formal, reveste-se de enorme complexidade, porque, em apertada síntese, qualquer processo se caracteriza por inúmeros pontos de direito e de fato que reclamam solução e que impõem, para o seu respectivo julgamento, uma operação lógica ao juiz. E esta ratio torna-se ainda muito mais difícil se a lei a ser aplicável contém palavras de significado variável, como, por ex., ordem pública, justo motivo, etc. (Il Giudice e lo Storico, Opere Giuridiche, vol. 1, Morano, Nápoles, 1966, pág. 402).
De inegável interesse, pela originalidade (que até hoje perdura), é o artigo La Sentenza Soggettivamente Complessa, de 1924, no qual, a partir da teoria do ato jurídico complexo, vem enfocada a construção do ato decisório por mais de um órgão, verificando-se, assim, um concurso de atividades intelectual e volitiva. A característica deste pronunciamento judicial é que ele desponta único, a despeito de ter sido formado com a cooperação de diversos tribunais ou órgãos de um mesmo tribunal. Daí, a denominação complexidade subjetiva (Rivista di Diritto Processuale Civile, 1924, pág. 213 ss.).
Para melhor se entender esse fracionamento em fases separadas daquele labor mental, tomo a liberdade de exemplificar com o fenômeno processual que se verifica no julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas, disciplinado no artigo 976 e seguintes do nosso Código de Processo Civil, no qual o julgamento do órgão colegiado competente, fixando a orientação pretoriana (quaestio iuris) que deverá prevalecer, "incorpora-se", como premissa inafastável, à subsequente sentença ou acórdão a ser proferido, no caso concreto, "em todos os processos individuais ou coletivos" e, ainda, nos "casos futuros que versem idêntica questão de direito" (artigo 985).
José Frederico Marques, valendo-se da hipótese aventada por Calamandrei, dos julgamentos penais da Corte d’Assise italiana, fornece ainda como espécie de decisão subjetivamente complexa a sentença do tribunal do júri, "pois jurados e juízes, com competência funcional delimitada em razão do objeto do juízo, decidem a causa penal por escalas. Aos jurados, através do veredito, cumpre dizer, por meio de respostas a quesitos, se houve ato típico criminalmente ilícito e culposo, atribuível ao réu, bem como reconhecer circunstâncias que influam na aplicação da pena; quanto ao juiz, a tarefa consiste em, de acordo com o veredito, lavrar a sentença do júri, graduar a sanção penal e decidir sobre a aplicação de medidas de segurança e penas acessórias" (O Júri e sua Nova Regulamentação Legal, São Paulo, Saraiva, 1948, pág. 127).
No que toca à natureza da sentença, Calamandrei escreveu, em 1932, os Appunti sulla Sentenza come Fatto Giuridico. Adverte, de logo, que a ideia não era realmente nova, visto que o mérito de estudar a sentença como fato jurídico havia sido de Gaetano Morelli, embora sob a ótica do Direito Internacional.
Na órbita interna do processo civil, a sentença pode ser considerada como fato jurídico, porque, a despeito de sempre constituir uma declaração de vontade de um sujeito — o juiz —, ela, normalmente, gera outros efeitos, além daqueles próprios do julgado, mas que não encontram neste a respetiva causa. São os denominados efeitos externos à sentença, cujo exemplo mais saliente é a produção da hipoteca judicial (Appunti sulla Sentenza come Fatto Giuridico, Rivista di Diritto Processuale Civile, 1932, pág. 15 ss.).
Já no artigo Il Giudice e lo Storico (Rivista di Diritto Processuale Civile, 1939, pág. 105 ss.; Opere Giuridiche, vol. 1, cit., pág. 393 ss), escrito em homenagem ao renomado historiador do direito Enrico Besta, demonstrando, mais uma vez, o seu interesse pela história, retorna ao tema, que lhe era muito caro, da complexa atividade decisória do juiz. Refere ele, inicialmente, ao livro de Calogero (La Logica del Giudice e il suo Controllo in Cassazione, 1937), no qual é feito um paralelo entre a atividade do historiador e aquela do juiz, para concluir que, no concernente à perquirição da quaestio facti, o exame do material disponível é análogo entre as duas atividades mentais. Para a investigação da quaestio iuris, no entanto, o trabalho do juiz é muito mais árduo. E isto, porque o juiz é colocado diante de uma demanda formulada por outra pessoa, impedindo-o de proferir qualquer juízo extra petita. Aquela natural curiosidade do historiador que o impulsiona a explorar o mundo por inúmeras vertentes não se equipara, por nada, à atividade do juiz, visto que, no processo liberal moderno, prevalece a regra nemo iudex sine actore, mantendo o julgador numa posição passiva. O juiz, portanto, jamais pode conhecer dos fatos controvertidos sponte propria. Inúmeros são os axiomas que o impedem: iudex secundum allegata decidere debet, quod non est in actis no est in mundo.
Todavia — prossegue Calamandrei —, no que respeita ao conhecimento do direito, as coisas se passam de forma diferente, porquanto, pelo princípio iura novit curia, o juiz tem toda liberdade de aplicar as regras jurídicas ao caso que foi submetido à sua apreciação.
As restrições que são impostas, no processo civil, à livre investigação do juiz (abrangente inclusive de seu conhecimento privado), especialmente no processo dispositivo, não tendem a tornar menos penetrante a busca da verdade, mas visam a utilizar, como instrumento de descoberta mais eficaz, os interesses das partes contrapostas, cada qual lutando para evidenciar o lado da verdade que o beneficia. O jogo desta contraposição de forças individuais, atuantes no processo, leva, na maioria dos casos, a descobrir a verdade de forma muito mais consistente do que no âmbito de um processo inquisitório, no qual todas as iniciativas estão reservadas ao juiz (Il Giudice e lo Storico, Opere Giuridiche, vol. 1, cit., pág. 402).
Importante, outrossim, é o ensaio La Sentenza come Mezzo di Prova (Rivista di Diritto Processuale Civile, 1938, pág. 108 ss.). Nesse trabalho, a primeira indagação formulada por Calamandrei é a seguinte: "A sentença civil pode valer como prova documental dos fatos que se encontram afirmados nas premissas de sua respectiva motivação?"
Em princípio, considerada como espécie de documento, a sentença ostenta eficácia probatória em inúmeras situações. É certo, porém, que os juízos de fato, que o precedente juiz formulou como premissas necessárias para chegar à conclusão, têm um caráter relativo e contingente. Desse modo, a eficácia probante da sentença é relativa: ela atesta a existência daqueles juízos de fato, mas não documenta a sua exatidão. Desse modo, pelo princípio do livre convencimento, o juiz, ao examiná-la em conjunto com os outros possíveis elementos de prova produzidos nos autos, poderá ou não considerá-la para formar a sua convicção. Calamandrei ressalta, no entanto, que pela circunstância de conter uma declaração proveniente de um juiz, a motivação de uma sentença, enquanto meio de prova, é moralmente revestida de significativo valor.
Por derradeiro, sob o título Sentenze Sintomatiche (Rivista di Diritto Processuale Civile, 1941, pág. 358 ss.), explorando a experiência haurida na praxe forense, Calamandrei colaciona vários exemplos de atos decisórios viciados e, até, teratológicos, seja por ausência de fundamentação, seja por motivação perplexa.
Daí, a reafirmação no sentido de que os juízes devem ter a exata dimensão da relevância da atividade judicante, a fim de que o processo possa ser concebido como instrumento de realização de justiça!
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!