Opinião

Por que Biden perdoou condenados por posse de maconha?

Autor

18 de outubro de 2022, 9h05

No último dia 6 de outubro, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, concedeu perdão a todos os cidadãos e residentes permanentes com condenação federal por posse simples de maconha. Em seu comunicado, pediu também que os governadores fizessem o mesmo em nível estadual e solicitou ao secretário de Saúde e Serviços Humanos e ao procurador-geral que revisassem a classificação da cannabis sativa na Lei de Substâncias Controladas.

O perdão presidencial — instituto equivalente ao indulto no Brasil — é uma prerrogativa constitucional estadunidense (artigo 2º, Seção 2) que extingue a punibilidade e restaura os direitos do condenado. Com uma decisão que deve afetar milhares de indivíduos, Biden acena rumo à reforma do fracassado modelo americano de combate às drogas.

Para compreender melhor a relevância dessa medida, cabe recorrer à criminologia crítica como um instrumento de estudo dos processos de criminalização sob um enfoque macrossociológico. Essa corrente defende, em linhas gerais, que o sistema penal opera como um mecanismo de controle o qual privilegia classes sociais dominantes, ao passo que marginaliza grupos subalternos [1].

Não se pretende aqui emitir qualquer juízo de valor quanto à moralidade associada ao uso de cannabis ou desconhecer os riscos e malefícios do consumo de determinadas drogas. Feita essa ressalva, passa-se a examinar os motivos pelos quais a decisão do governante americano segue na direção certa, sob o viés da criminologia crítica.

O primeiro ponto relevante do comunicado de Biden está no reconhecimento da seletividade do sistema penal estadunidense por meio de uma catalogação dos usuários de drogas. "Enquanto pessoas brancas, pardas e pretas usam maconha em taxas semelhantes, pessoas pardas e pretas foram presas, processadas e condenadas em taxas desproporcionais", diz o democrata [2].

Sob um viés crítico, significa dizer que o risco de ser etiquetado pelo sistema criminal não depende da conduta, mas da imagem do delinquente que corresponde à descrição produzida pelo Estado e pelos órgãos sociais. A posse de maconha é apenas um retrato dessa Teoria do Etiquetamento Social (Labelling Approach Theory), isto é, uma forma de enxergar que a criminalidade está distribuída desigualmente perante uma perspectiva socioeconômica que estigmatiza determinados grupos.

Como exemplo, podemos citar o estereótipo do criminoso latino-americano. A mídia corporativa e a indústria audiovisual hollywoodiana contribuíram para criar, no imaginário social, a concepção de que o crime seja proveniente do exterior. Diante de uma clara recusa em acreditar que o problema da guerra às drogas seja intrínseco à estrutura capitalista estadunidense, construiu-se uma narrativa que visa transferir essa culpa para a figura do imigrante.

Ademais, Biden destaca em seu anúncio que "passagens criminais por posse de maconha também impuseram barreiras desnecessárias a emprego, moradia e oportunidades educacionais". Veja-se: o encarceramento por delitos de menor potencial ofensivo como esse torna-se uma ferramenta para impedir a ascensão social de certas minorias.

Em um primeiro momento, o usuário é fisicamente afastado dos espaços de coletividade. Na condição de egresso, ele permanece sofrendo os efeitos marginalizadores do cárcere, que impossibilitam sua plena reinserção na estrutura social e acabam mantendo, simbolicamente, seu status de criminoso. Para além disso, uma condenação pelo consumo de maconha nos Estados Unidos ainda teria o condão de restringir o acesso a determinados benefícios governamentais como a assistência financeira federal, o alojamento público e o auxílio-renda [3].

Não é possível ignorar, contudo, que parece haver um cálculo político subjacente à jogada de Biden: em novembro desse ano, os americanos irão às urnas para as eleições de meio de mandato (midterm elections), nas quais votarão em deputados, senadores e governadores estaduais. Com isso, espera-se que o anúncio possa fortalecer a base democrata, haja vista que 91% da população adulta apoia a legalização da maconha para o uso recreativo ou medicinal [4].

Tenha ou não lido as obras de Alessandro Baratta, o 46º presidente dos Estados Unidos apresentou justificativas para o perdão que coincidem com aspectos essenciais do criticismo. É preciso (re)pensar o sistema penal a partir de uma perspectiva crítica para evitar que o poder punitivo do Estado continue produzindo efeitos colaterais perversos, sobretudo, àqueles que não pertencem ao estrato dominante.

Conceber as raízes criminológicas da política de drogas estadunidense também nos ajuda a entender às desigualdades e os fins não declarados da guerra às drogas no Brasil — agenda essa igualmente malsucedida. Sob o manto da defesa social e do princípio do dano, o modelo proibicionista mostra-se capaz de gerar consequências sociais tão nocivas quanto às mazelas que alega combater [5]. No fim do dia, o perdão presidencial foi apenas um primeiro ato que pavimenta o caminho para a eventual descriminalização.

Ainda há mais a ser feito.


[1] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 161-170

[2] Statement from President Biden on Marijuana Reform. The White House. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/10/06/statement-from-president-biden-on-marijuana-reform/. Acesso em: 9 out. 2022.

[3] AHRENS, Deborah M. Retroactive Legality: Marijuana Convictions and Restorative Justice in an Era of Criminal Justice Reform. J. Crim. L. & Criminology, v. 110, 2020, p. 417.

[5] HARCOURT, Bernard E. The collapse of the harm principle. J. Crim. L. & Criminology, v. 90, p. 109, 1999.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!