Opinião

In dubio pro societate no rito do júri: um princípio falacioso

Autor

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

17 de outubro de 2022, 19h09

Tanto na vida particular como no âmbito profissional é salutar vez por outra refletirmos acerca de certos comportamentos e paradigmas que adotamos ao longo da nossa jornada, até mesmo para que possamos evoluir e nos adaptar às mudanças que são a constante da vida.

No caso em espécie, o presente artigo aborda a questão do pretenso "princípio" do in dubio pro societate que, tal como aprendemos na graduação do curso de Direito e terminamos por repetir rotineiramente, constituiria vetor interpretativo a ser adotado pelo magistrado quando do encerramento da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, autorizando que o juízo sumariante, mesmo no caso de dúvida sobre a autoria da imputação delitiva feita pelo Parquet, pronunciasse o acusado, remetendo-o a julgamento pelo tribunal popular.

Ocorre que, passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição Cidadã (documento que, permeado por ares garantistas, atribuiu novos significados e interpretações ao direito processual penal), revela-se incongruente sustentar que a decisão de pronúncia seja lastreada em um suposto "princípio" que não encontra amparo legal, tampouco constitucional.

Vejam, não se está aqui a negar que a competência constitucional para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida seja do tribunal popular, formado por juízes leigos selecionados no meio social [1].

Todavia, se o legislador ordinário previu a existência de um juízo positivo de admissibilidade a ser realizado por magistrado togado quando do encerramento do iudicium accusationis é porque entendeu necessário "filtrar" as acusações formuladas pelo Parquet, reservando ao julgamento dos juízes de fato (sem formação jurídica) somente os casos nos quais tenham sido reunidos "indícios suficientes de autoria ou de participação" [2]. Até mesmo porque, como adverte Francesco Carnelutti, "a tortura, nas formas mais cruéis está abolida, ao menos sobre o papel; mas o processo por si mesmo é uma tortura" [3].

Discorrendo especificamente sobre o tema, Renato Brasileiro de Lima contesta a existência do suposto princípio e enuncia que [4]:

"Por sua vez, quando a lei impõe a presença de indícios suficientes de autoria ou de participação, de modo algum está dizendo que o juiz deve pronunciar o acusado quando tiver dúvida acerca de sua concorrência para a prática delituosa. (…) Dessa forma, conquanto não se exija certeza quanto à autoria para a pronúncia, tal qual se exige em relação à materialidade do crime, é necessário um conjunto de provas que autorizem um juízo de probabilidade de autoria ou de participação.
Destarte, a nosso ver, havendo dúvidas quanto à existência do crime ou quanto à presença de indícios suficientes, deve o juiz sumariante impronunciar o acusado, aplicando o in dubio pro reo."

No mesmo sentido, Rodrigo Faucz Pereira e Silva et al disserta que [5]:

"Ao aplicar um 'princípio' juridicamente vazio, consolidam-se violações significativas nos pilares do sistema acusatório, da própria Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos.
Assim, verifica-se que não existe fundamento constitucional, nem mesmo infraconstitucional, para o in dubio pro societate (…)."

Defendendo a existência do "princípio" do in dubio pro societate no rito do Tribunal do Júri, Rogério Sanches Cunha sustenta que o artigo 413 do CPP demanda, para que seja prolatada decisão de pronúncia, a existência de indícios de autoria e de que essa "fórmula traz consigo a possibilidade de que haja uma parcela razoável de dúvida (…). Se nesta fase preponderasse o in dubio pro reo, a pronúncia jamais poderia se fundamentar em indícios suficientes da autoria; o texto legal deveria fazer referência à existência de prova da autoria" [6].

Contudo, referido raciocínio peca, salvo melhor juízo, em sua premissa, já que o artigo 413, caput, do CPP não exige prova da autoria justamente pelo fato de que a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida é do Tribunal do Júri, não estando o magistrado autorizado a emitir juízo de valor conclusivo a respeito da imputação feita pelo Parquet (com standard probatório "além de qualquer dúvida razoável"), sob pena de violar o artigo 413, § 1º, do CPP e incidir em excesso de linguagem, fato que tornará nula a decisão de pronúncia [7].

Em um direito processual penal constitucional em que vigora o sistema acusatório, cabe ao Parquet, ao final da primeira fase do rito do Júri, o ônus de carrear aos autos elementos indiciários suficientes de autoria delitiva, nos termos do artigo 156 do CPP.

Eventual dúvida sobre a imputação delitiva em sede de iudicium accusationis deve sempre ser solucionada com a aplicação do artigo 414, caput, do CPP e do princípio da presunção de não culpabilidade (que traz ínsito em si o princípio do in dubio pro reo), previsto tanto no artigo 8.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[8] quanto no artigo 5º, LVII, da Constituição da República de 1988.

Nessa toada, Aury Lopes Jr. afirma que [9]:

"Questionamos, inicialmente, qual é a base constitucional do in dubio pro societate?
Nenhuma. Não existe. (…)

Não se pode admitir que os juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário".

E foi justamente esse o entendimento adotado pelo Pretório Excelso nos autos ARE nº 1.067.392/CE [10] case no qual a 2ª Turma restabeleceu decisão de impronúncia proferida por juízo de primeiro grau e rejeitou peremptoriamente a existência do "princípio" do in dubio pro societate.

Com o fim de ilustrar o posicionamento da Suprema Corte nesse emblemático precedente, transcrevo trecho do voto proferido pelo relator ministro Gilmar Mendes:

"Considerando tal narrativa, percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto 'princípio in dubio pro societate', que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova. Além de desenfocar o debate e não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia. (…)
Se houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio pro reo, imposto nos termos constitucionais (art. 5º, LVII, CF), convencionais (art. 8.2, CADH) e legais (arts. 413 e 414, CPP) no ordenamento brasileiro. (…)
Portanto, a primeira fase do procedimento do Júri consolida um filtro processual, que busca impedir o envio de casos sem um lastro probatório mínimo da acusação, de modo a se limitar o poder punitivo estatal em respeito aos direitos fundamentais".

Constata-se, portanto, que a 2ª Turma do STF, enfrentando detidamente o tema abordado neste artigo, concluiu pela incongruência do in dubio pro societate (pretenso princípio que sintetiza raciocínio não albergado pela ordem constitucional vigente) e rejeitou a aplicabilidade do referido brocardo no procedimento escalonado do Tribunal do Júri.

No mesmo sentido, confira-se obter dictum constante do ARE 1.304.605 ED-AgR, relator Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, julgado em 12/5/2021.

A título de reforço argumentativo, colaciono trecho de voto proferido pelo ministro Ricardo Lewandowski nos autos do AgR no RHC nº 151.475/SP [11], precedente no qual, embora a Segunda Turma do STF não tenha ultrapassado o juízo de admissibilidade do recurso (por entender que o mesmo demandava reexame de provas), Sua Excelência proferiu voto no sentido de conhecer do recurso ordinário para, no mérito, afastar a aplicabilidade do in dubio pro societate no rito do júri (citando, inclusive, o julgamento do ARE 1.067.392/CE), fato que reflete a tomada de posição deste órgão fracionário do Pretório Excelso acerca do tema:

"Sendo assim, proscrita a aplicação do falacioso in dubio pro societate — e eu até me penitencio, porque, muitas vezes, eu apliquei esse brocardo, e hoje verifico que está totalmente equivocado, porquanto a presunção de inocência ou não culpabilidade vai até o trânsito em julgado da decisão condenatória, conforme previsão na Carta de Direitos de 1988. Vale dizer, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, o referido brocardo poderá infringir o desvirtuamento do próprio sistema bifásico do procedimento do Tribunal do Júri, que pressupõe — repiso — existência de indícios suficientes de autoria ou de participação do requerido a exigir, portanto, fundamentação mínima do conjunto probatório coligido em juízo."

Feitas essas considerações, faz-se importante ressaltar que o processo penal expressa, ao fim e ao cabo, o grau de civilização da sociedade, representando (1) tanto uma garantia em prol do jurisdicionado (de que as provas eventualmente utilizadas em seu desfavor foram colhidas nos autos de um procedimento que observou os ditames legais/constitucionais) (2) quanto uma limitação do poder punitivo estatal, neutralizando eventuais abusos de poder por parte de agentes estatais.

Em suma, decisão de pronúncia proferida nos autos de um processo penal deve estar respaldada por indícios suficientes de autoria delitiva, revelando-se inadmissível o encaminhamento de acusado a julgamento pelo Conselho de Sentença com respaldo no falacioso "princípio" do in dubio pro societate.


[1] Art. 5º, XXXVIII, "d", da CF/88; Arts. 425 e 426 do CPP

[2] Art. 413, caput, do CPP

[3]As misérias do processo penal. Leme: Edijur, 2019. P. 48.

[4] Manual de processo penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm. P. 1295/1296.

[5] SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e; KAVALLI, Priscila. Estudos em Homenagem aos 200 Anos do Tribunal do Júri no Brasil. São Paulo: RT, 2022. P. 308.

[7](HC 377.909/MG, rel. ministro FELIX FISCHER, 5ª TURMA, julgado em 19/9/2017, DJe 26/9/2017)

[8] Promulgada pelo Dec. nº 678/92

[9] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva: 2021. P. 882.

[10](ARE 1.067.392, relator(a): GILMAR MENDES, 2ª Turma, julgado em 26/3/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-167 DIVULG 1/7/2020 PUBLIC 2/7/2020)

[11] RHC 151.475 AgR, relator(a): CÁRMEN LÚCIA, 2ªTurma, julgado em 3/9/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-255 DIVULG 21/11/2019 PUBLIC 22/11/2019

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