Embargos Culturais

José Guilherme Merquior e a história do liberalismo

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

16 de outubro de 2022, 7h00

O Liberalismo — Antigo e Moderno, de José Guilherme Merquior (1941-1991) talvez seja o livro mais importante para a compreensão de conceitos, caminhos, percursos, ideias e projetos institucionais que animam a discussão contemporânea. Originalmente escrito em inglês, traduzido por Henrique de Araújo Mesquita, esse belíssimo livro foi primorosamente editado por É Publicações, de São Paulo.

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Faz parte de uma coleção dirigida pelo crítico João Cezar de Castro Rocha. A edição que comento (a 3ª, de 2014) vem acompanhada por estudos de Roberto Campos, José Mario Pereira, Michael Roth (autor do prólogo) e por posfácios de Celso Lafer, Hélio Jaguaribe, Joaquim Ponce Leal e Sérgio Paulo Roaunet. Lê-se no prólogo que Merquior escreveu o livro no México, em 1989.

Merquior despretensiosamente afirmava que o livro era um esforço de gênero que os franceses denominavam de "haute vulgarisation", isto é, uma síntese completa, ainda que bem fundamentada, e com erudição. Reconhecia que uma visão geral dos três séculos da ideia liberal somente poderia ser panorâmica, e não microscópica, como afirmara o historiador Arnold Toynbee.

O autor fixou alguns pontos de partida, a propósito da ideia de liberalismo, da relação entre liberalismo e autonomia e, o que é fundamental para a compreensão dessa linha de pensamento, as relações entre o indivíduo e o Estado. Merquior vinculou o liberalismo ao legado da tradição iluminista, especialmente com a nova carga semântica que a expressão "sociedade civil" recebe a partir da obra de Rousseau.

Merquior explorou o liberalismo inglês em termos de liberdade política, o liberalismo francês no contexto da autodeterminação e também o liberalismo alemão, este último à luz da educação para a liberdade.

No passo seguinte, Merquior discorreu sobre o liberalismo clássico, tratando do legado de John Locke, James Madison, Benjamin Constant, François Guizot, Alexis de Tocqueville, John Stuart Mill, Giuseppe Mazzini, bem como do russo Alexander Herzen. Este último é central na construção conceitual de um socialismo denominado de "russo". Merquior também nos explica a vertente conservadora do liberalismo. As passagens sobre Max Weber, Benedito Croce e Ortega y Gasset são esclarecedoras.

Na sessão final, uma abordagem do que Merquior denomina de os "novos liberalismos", que mapeia até apresentar um conjunto de autores que indica como "neoliberais". Nessa passagem, pensadores de várias tradições do pensamento, como Hans Kelsen, John Maynard Keynes, Friedrich Hayek, Mises, Raymond Aron, John Rawls, Robert Nozick e Norberto Bobbio.

Merquior menciona o legado de Hayek. Representante da segunda geração da Escola Austríaca, Hayek contestou o Estado de bem-estar social e o modelo de Keynes, economista inglês nascido em 1883 que concebera alternativas para o Estado de laissez-faire, durante os anos de depressão econômica, mais dramaticamente sofrida pelos Estados Unidos da América.

Hayek afirmou que o fato de que grande parte de pensadores progressistas terem aderido ao ideário socialista não denotava que tivessem esquecido o que os pensadores liberais disseram a respeito das consequências do coletivismo. Com base no significado mais profundo e representativo da ideia de liberdade, Hayek contrapôs que a adesão dos progressistas ao socialismo decorria tão somente de uma falsa ideia e expectativa de liberdade, de uma grande utopia (the great utopia).

Há também um adendo com uma síntese cronológica da tradição liberal, que Merquior fixou da Revolução Gloriosa (Inglaterra, 1688) à publicação de A Moralidade da Liberdade, de Joseph Raz. A sequência de autores e obras revela um excelente roteiro para quem pretenda estudar a tradição liberal.

Segundo Merquior, O Liberalismo — Antigo e Moderno mostrava-se como "um livro liberal sobre o liberalismo, escrito por alguém que acredita que o liberalismo, se entendido apropriadamente, resiste a qualquer vilificação". Três décadas depois de sua publicação original, esse livro de Merquior mantém-se atual, oportuno e esclarecedor, guia infalível para um tempo de tanta confusão intelectual.

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