Ambiente Jurídico

Licenciamento em pauta no STF: Legislativo, estudos e competência

Autores

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

  • Mateus Stallivieri da Costa

    é advogado doutorando em Direito e Desenvolvimento pelo PPGD da FGV-SP mestre em Direito Internacional e Sustentabilidade pelo PPGD da UFSC e especialista em Direitos e Negócios Imobiliários e em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Ibmec-SP.

  • Jaqueline de Andrade

    é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

15 de outubro de 2022, 15h58

Na série "Licenciamento em pauta no STF", a proposta foi a estudar os diferentes casos em que o Supremo Tribunal Federal se debruçou sobre licenciamento ambiental. Foram analisadas 19 decisões exaradas em ADIs ou ADPFs em que o colegiado do órgão tratou do tema, o que se desdobrou em três artigos distintos.    

Spacca
No primeiro artigo, verificamos o posicionamento do órgão sobre a dispensa e inexigibilidade de licenciamento ambiental, concluindo que a corte não diferencia os conceitos, tendo decidido, de forma reiterada, pela inconstitucionalidade de normas que afastam a aplicação do instrumento. Já no segundo artigo, constatamos que, no tocante à simplificação do processo de licenciamento ambiental, o órgão ainda não firmou uma posição uniforme, sendo possível, porém, afirmar que existe uma tendência em declarar a inconstitucionalidade de normas que instituem procedimentos simplificados para atividades específicas.

Agora, no terceiro e último artigo da série, realizar-se-á a exposição dos demais entendimentos já exarados pelo STF, objetivando informar e promover discussões futuras sobre o assunto [1].

1) Participação do Legislativo no processo de licenciamento ambiental
O licenciamento ambiental é um processo administrativo que pretende analisar os impactos ambientais de determinado empreendimento ou atividade, impondo medidas que visam eliminar, mitigar ou compensar esses impactos [2]. Apesar de possuir elementos técnicos retirados principalmente dos estudos ambientais, a decisão que defere ou indefere a emissão de licença também possui um caráter político [3], que configura a chamada discricionariedade técnica e torna esse momento administrativo um ato típico do Poder Executivo [4].

Ao analisar a medida cautelar proposta na ADI 3.252/RO, em 2005, o STF reforçou esse entendimento, afirmando que o artigo 8º, II, e o artigo 14 da Lei Estadual de Rondônia nº 1.315/2004, que determinavam a necessidade de autorização prévia da Assembléia Legislativa para a emissão das licenças ambientais seria inconstitucional, uma vez que afrontaria o princípio da separação dos poderes. Com efeito, para o Supremo a disposição "implica indevida interferência do Poder Legislativo na atuação do Poder Executivo", além de atentar contra a competência da União para legislar sobre normas gerais em matéria de licenciamento ambiental.

Em sentido semelhante, na ADI 6.350/MT, julgada em 2020, foi declarada a inconstitucionalidade do artigo 279 da Constituição do Estado do Mato Grosso, que condicionava a aprovação, por parte da Assembleia Legislativa, dos Projetos Técnicos de Impacto Ambiental apresentados para a emissão de licenças ou autorizações para construção de centrais termoelétricas e hidroelétricas.

Ambos os julgados reforçam o caráter de discricionariedade técnica das decisões que analisam a emissão das licenças ambientais, consolidando a atribuição do Poder Executivo para realizar o juízo e o balanceamento necessários. O Poder Legislativo não pode interferir de forma decisória em processos específicos de licenciamento, pois o controle ambiental só pode ser exercido pelos órgãos ambientais, a quem cabe o mérito do ato administrativa ambiental.

2) Dispensa de estudos ambientais para realização de leilão
A ADPF 825/DF, julgada em 2021, tratou do pedido de interpretação conforme do artigo 6º, §2º, da Resolução CNPE nº 17 de 2017. A resolução em questão define as diretrizes para a realização de licitações para a exploração e produção de petróleo e gás natural.

De acordo com o caput do artigo 6º, estudos multidisciplinares orientarão a políticas de outorgas das áreas objeto dos leilões, enquanto o §2º dispõe que, nos casos em que os estudos não tiverem sido finalizados, essas políticas serão embasadas por manifestação conjunta do Ministério de Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente, além de parecer dos órgãos estaduais com competência para realizar o licenciamento. Foi justamente essa previsão que foi questionada pela ADPF. De acordo com o requerente, essa última disposição seria uma espécie de dispensa dos estudos necessários para a avaliação do risco ambiental e prévios à escolha de local compatível com a exploração fóssil.  

Decidindo pela improcedência do pedido, o STF entendeu que a viabilidade do empreendimento será averiguada ao longo do processo de licenciamento ambiental, momento em que serão avaliados de forma "aprofundada e minuciosa […] os impactos e riscos ambientais da atividade a ser desenvolvida".

A decisão reforça o papel preventivo do licenciamento, instrumento que objetiva, justamente, averiguar no caso concreto a viabilidade ambiental de determinado empreendimento ou atividade. A existência de estudos anteriores para embasar o processo licitatório não impede o juízo e análise, devidamente embasados, por parte da Administração Pública em momento posterior, podendo inclusive decidir pelo indeferimento da emissão das licenças necessárias à operação da atividade de gás e petróleo, de forma que tal risco é inerente à atividade do empreendedor.

3) Competência em matéria de licenciamento ambiental
A competência em matéria ambiental nunca foi um ponto pacífico dentro do ordenamento jurídico, gerando inúmeras discussões de cunho teórico e prático, sendo considerada, por muitos autores, como o ponto mais polêmico dentro do ramo [5]. Apesar de a Lei Complementar 140 de 2011 ter, de certa forma, tornado mais claro o cenário caótico anterior, ao menos em relação à competência material para a realização do licenciamento ambiental, muitos pontos permanecem polêmicos [6], além das dificuldades também existentes em relação à competência legislativa (ou formal), bem como da autonomia municipal em matéria ambiental. 

a) Anuência do órgão gestor de UC nos processos de licenciamento
No agravo regimental interposto na ADI 5.180 e julgada em 2018, foi debatido a constitucionalidade do §3º do artigo 36 da Lei do SNUC, que impõe a obrigatoriedade de autorização do órgão gestor de unidade de conservação nos casos de licenciamentos mediante EIA/Rima que impactem unidades de conservação ou a sua zona de amortecimento. O argumento principal do requerente era de que a imposição violaria os preceitos da autonomia administrativa dos entes federados, disposta nos artigos 18 e 23 da CF/88.

No entendimento da Suprema Corte, a constitucionalidade do dispositivo já havia sido julgada na ADI nº 3.378/DF, que abordou o artigo 36 e seus parágrafos, porém debatendo essencialmente a constitucionalidade da compensação ambiental devida nos casos de implantação de empreendimentos causadores de significativo impacto ambiental (§1º).

De acordo com a decisão exarada no agravo regimental da ADI 5.180, tendo em vista que em momento anterior o STF entendeu pela procedência do pedido de inconstitucionalidade apenas em relação ao parágrafo 1º, "dado o caráter dúplice das ações de controle concentrado, restou declarada a conformidade dos demais dispositivos legais com a Constituição Federal de 1988, dentre eles, o artigo 36, § 3º, novamente impugnado na presente ação".

Apesar de consolidar o entendimento quanto à constitucionalidade da autorização, a corte não determinou o formato dessa autorização, nem consolidou em que casos ela é cabível, ainda restando discussões quanto à sua aplicabilidade e procedimentos [7].

b) Instituição de taxa de controle, monitoramento e fiscalização ambiental (TFPG) pelos estados
A Lei 7.182/2015 do Estado do Rio de Janeiro, que institui a Taxa de Controle, Monitoramento e Fiscalização Ambiental das Atividades de Pesquisa, Lavra, Exploração e Produção de Petróleo e Gás TFPG, teve a sua constitucionalidade questionada pela Associação Brasileira de Empresas de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Abep (ADI 5.480) e Confederação Nacional da Indústria CNI (ADI 5.512).

No julgamento, realizado em 2020, a corte entendeu que a competência subsidiária do órgão ambiental estadual (Inea) para fiscalizar os empreendimentos em questão encontrados na faixa marítima "não impede a instituição de taxas pelo exercício do poder de polícia, nem induz bitributação, sendo possível a sua compensação com taxas cobradas no âmbito federal (artigo 17-P da Lei 6.938/1981)". Apesar da constitucionalidade da cobrança, no caso específico da Lei Estadual 7.182/2015 a Corte compreendeu que a base de cálculo instituída seria desproporcional, julgando, assim, procedente a ação.

Em janeiro de 2022, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) voltou a aprovar um projeto de lei instituindo a TFGP, o que geraria, anualmente, 60 milhões de reais em arrecadação [8]. O PL 5.190/2021 foi vetado integralmente pelo governador Cláudio Castro, não tendo sido instituído o tributo no estado até o momento [9].

c) Instituição de regras para licenciamento em atividades específicas
A Constituição prevê, no artigo 30, I e II, que compete aos municípios "legislar sobre assuntos de interesse local" e "suplementar a legislação federal e a estadual no que couber". A ausência de definição constitucional quanto ao conceito de interesse local, bem como a ausência de delimitação das competências suplementares tem gerado diferentes questionamentos judiciais quanto às inconstitucionalidades de leis municipais [10]. Com o licenciamento não seria diferente.  

Na ADPF 731, julgada em 2020, foi questionada a Lei Municipal nº 6.060/2017, do município de Americana (SP), que proibiu a instalação de sistemas transmissores ou receptores a menos de 50 metros de residências. Para o Supremo Tribunal Federal, a lei municipal era inconstitucional por afrontar a competência privativa da União de legislar sobre telecomunicações.

Ou seja, por mais que os municípios tenham a competência para legislar sobre o interesse local, essa atribuição constitucional não permite que o ente federativo crie normas que imponham restrições para instalação de atividades cuja competência seja privativa da União.  

d) Autonomia municipal
A ADI 2.142 foi interposta perante o STF com o objetivo de questionar o dispositivo da Constituição do estado do Ceará que prevê a aprovação pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente do parecer técnico relativo ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Por unanimidade, a ação foi julgada procedente e fixada a seguinte tese: "É inconstitucional interpretação do artigo 264 da Constituição do Estado do Ceará de que decorra a supressão da competência dos Municípios para regular e executar o licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos de impacto local".

Na esteira da decisão da ADI 6.288, também recente e unânime, essa decisão reforça a autonomia municipal para atuar na seara ambiental, seja em matéria de fiscalização, de sanções administrativas ou de licenciamento ambiental. A diferença é que a ADI 2.142 versou também sobre a afirmação da competência legislativa municipal em matéria ambiental, possuindo, portanto, um escopo ainda mais amplo.

 


[1] No presente artigo serão analisadas ao todo 7 decisões que envolvem o licenciamento ambiental. Cabe o registro de que nem todas as 19 decisões filtradas inicialmente foram abordadas ao longo da série, tanto por se afastarem do objetivo inicial de compreender o entendimento do STF exclusivamente sobre o licenciamento ambiental, como por apenas tangenciarem o instrumento. Dentre as ADIs e ADPFs não trabalhadas, destacamos: (i) a ADPF 101, que se debruçou sobre a constitucionalidade de atos normativos que proibiam a importação de pneus usados para reciclagem; (ii) a ADPF 748, que questionou a constitucionalidade da Resolução CONAMA nº 500/2020 no tocante à revogação das normas de licenciamento de empreendimentos de irrigação presentes na Resolução CONAMA nº 284/2000; e (iii) a ADI 3074, que tratava da constitucionalidade da Resolução CONAMA nº 335/2003, que dispõe sobre o licenciamento ambiental de cemitérios. Contudo, o STF não se debruçou sobre o mérito da questão, entendendo não caber ADI para impugnar resoluções do CONAMA. Sobre essa mudança de entendimento da Corte, consultar: https://www.conjur.com.br/2022-mai-22/paulo-bessa-stf-resolucoes-conama. Acesso dia 30 de setembro de 2022.        

[2] O conceito de licenciamento ambiental pode ser retirado do artigo 1º, I da Resolução CONAMA 237/1997 – procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso –, bem como do artigo 2º, I da Lei Complementar 140/2011 – procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental.

[3] COSTA, Mateus Stallivieri; RESCHKE, Pedro Henrique. A judicialização do licenciamento ambiental: Uma análise do autocontrole do poder jurisdicional como manifestação do escopo político da jurisdição. In: Direito Ambiental e Cidades. MADRUGADA FILHO, Vital José Pessoa; MOURA, Giovanna de Britto Lyra (org). Editora Punto Rojo, 2021, p. 349

[4] BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento Ambiental. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 198

[5] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 74; AMADO, Frederico Augusto Di Trindade. Critérios Definidores da Competência Administrativa no Processo de Licenciamento Ambiental. São Paulo: Baraúna, 2011, p. 75-76; ARAÚJO, Sarah Carneiro. Licenciamento ambiental no Brasil: uma análise jurídica e jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 175; FERREIRA, Helini Sivini. Competências ambientais. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 228; e YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Morimizato. Competências legislativa, administrativa e judicial em matéria ambiental: tendências e controvérsias. In: CAMPÊLLO, Lívia Gaigher Bósio; SOUZA, Maria Cláudia da Silva Antunes de; PADILHA, Norma Sueli (orgs). Direito ambiental no século XXI: efetividade e desafios. Belo Horizonte, Arraes, 2014, p. 29.

[6] NIEBUHR, Pedro; COSTA, Mateus Stallivieri da. Quem autoriza o corte? O conflito entre a Lei de Competências Ambientais e a Lei da Mata Atlântica na emissão de autorização de corte e supressão de vegetação. In: 10 anos da Lei Complementar 140 – Desafios e perspectivas. Org. Talden Farias. Rio de Janeiro: Meraki, 2022, pp. 704 e ss.

[7] Sobre as competências administrativas e a autorização do órgão gestor de Unidade de Conservação consultar: FARIAS, Talden. Competência Administrativa Ambiental: Fiscalização, Sanções e Licenciamento Ambiental na Lei Complementar 140/2011. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, pp. 163 e ss.  

[8] Informações disponíveis em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=144&url=L3NjcHJvMTkyMy5uc2YvZTAwYTdjM2M4NjUyYjY5YTgzMjU2Y2NhMDA2NDZlZTUvYmY4Y2M1ZTljNzdkZmYzZTAzMjU4N2Q1MDA2NjI4MTQ/T3BlbkRvY3VtZW50. Acesso dia 30 de setembro de 2022.

[9] Informações disponíveis em: https://www.poder360.com.br/energia/governador-do-rio-veta-projeto-que-taxaria-setor-de-petroleo/. Acesso dia 30 de setembro de 2022.

[10] Sobre as competências atribuídas aos municípios na Constituição Federal consultar:  CABRAL, Lucíola Maria de Aquino. Competências constitucionais dos Municípios para legislar sobre meio ambiente: a efetividade das normas ambientais. Curitiba: Letra da Lei, 2008; MATOS, Eduardo Lima de. Autonomia municipal e meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2001; e TORRES, Marcos Abreu. Conflito de normas ambientais na Federação. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2016.

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