Ambiente Jurídico

O julgamento da ADI 2.142 e a autonomia dos municípios em matéria ambiental

Autor

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

3 de julho de 2022, 9h37

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.142 foi interposta perante o Supremo Tribunal Federal pelo MDB com o objetivo de questionar o dispositivo da Constituição do estado do Ceará que prevê a aprovação pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente do parecer técnico relativo ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA):

Art. 264. Qualquer obra ou atividade pública ou privada, para as quais a Superintendência Estadual do Meio Ambiente – SEMACE, exigir Estudo de Impacto Ambiental, deverá ter o parecer técnico apreciado pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente – COEMA, com a publicação da resolução, aprovada ou não, publicada no Diário Oficial do Estado.

Spacca
Essa redação foi dada pela Emenda Constitucional 22, que foi aprovada em 14 de dezembro de 1991 e publicada no Diário Oficial do estado em 21 de dezembro de 1991. Não obstante a matéria poder e até dever ser disciplinada por lei ou mesmo por ato normativo infralegal, a exemplo de decreto, resolução ou portaria, em princípio a redação não parece abrigar qualquer grau de inconstitucionalidade. Afinal de contas, estabeleceu-se apenas a exigência de submissão do parecer técnico do licenciamento ambiental sujeito à EIA pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente, cautela essa que seria justificada pelo fato de se tratar de atividades significativamente poluidoras, que são aquelas consideradas como de maior caráter degradador.

Isso implica dizer que nesses casos a etapa final do licenciamento ambiental deixa de ser um ato do órgão estadual de meio ambiente (no caso, a Semace) para se tornar um ato do Conselho Estadual do Meio Ambiente, a quem cabe deliberar sobre o assunto e publicar uma resolução aprovando ou não a concessão da licença ambiental requerida. Ao instituir tal exigência, criando mais uma instância de controle ambiental e aumentando a transparência social, é evidente que o estado do Ceará agiu dentro da sua autonomia política, legislativa e administrativa, além de ter prestigiado o princípio da participação.

Ocorre que o governo do estado do Ceará, por meio da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e da Semace, estava tentando impor aos Municípios a assinatura de convênio de cooperação técnica para a descentralização do licenciamento, das sanções administrativas e da fiscalização das atividades de interesse local predominante, tentando obrigá-los ao cumprimento do artigo 264 da Constituição do estado do Ceará. Mesmo Fortaleza, que é a capital do Estado e uma das maiores cidades do país, teria sofrido tal investida.

O intuito da ADI foi garantir a intepretação conforme para restringir a aplicação da norma ao âmbito estadual, bem como fazer com a competência concorrente estadual em matéria ambiental não tenha o condão de afastar a atribuição municipal no que diz respeito aos assuntos de interesse local predominante. Por unanimidade, a ação foi julgada procedente e fixada a seguinte tese:

É inconstitucional interpretação do art. 264 da Constituição do Estado do Ceará de que decorra a supressão da competência dos Municípios para regular e executar o licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos de impacto local.

O cerne da discussão é o federalismo, forma de Estado consagrada pela Constituição Federal de 1988. Na federação, o Estado é organizado por meio de entidades dotadas de autonomia administrativa, legislativa, política, orçamentária e tributária, os quais se agrupam por meio de um pacto federativo para formar um governo central. Isso significa que não existe hierarquia entre os entes federativos, todos são capazes de exercer direitos e contrair obrigações, dentro, obviamente, dos seus limites constitucionais.

Do ponto de vista da formação do Estado brasileiro, a maior novidade trazida pela Constituição Federal de 1988 foi a inclusão dos municípios como membros da federação, ao lado da União, dos estados e do Distrito Federal. O município se tornou parte da organização política do país na condição de ente federativo, passando a gozar de autonomia, conforme determinam o caput do artigo 1º, o caput do artigo 18 e a alínea "c" do inciso VII do artigo 34 da Constituição Federal.

No que diz respeito ao meio ambiente, a autonomia do ente local se faz presente por meio do reconhecimento de sua competência administrativa e legislativa para atuar na área, consoante dispõem os incisos III, VI e VII e o parágrafo único do artigo 23 e os incisos I e II do artigo 30 da Lei Fundamental. A Lei Complementar 140/2011, que fixou as normas de cooperação entre os entes federativos nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção do meio ambiente, procurou disciplinar de forma específica a competência licenciatória dos municípios no inciso XII do artigo 9º, o que até então não tinha previsão específica em lei federal.

A decisão do STF na ADI 2.142, que teve como relator o ministro Luís Roberto Barroso, reafirma a condição dos municípios como entes federativos, reforçando a sua competência administrativa e legislativa para tratar das questões ambientais locais. Ao tentar abranger os procedimentos efetuados pelos municípios, não se limitando a cuidar da atuação dos órgãos estaduais, fica evidente a inconstitucionalidade da imposição de critérios e parâmetros de concessão de licença/autorização e de análise de estudos ambientais.

Esse entendimento guarda semelhança com o julgado da ADI 6.602, quando o STF declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição do estado de São Paulo que impunham restrições aos entes locais para modificar a destinação, os fins e os objetivos originários de loteamentos definidos como áreas verdes. De forma unânime, reconheceu-se o conferiu protagonismo municipal a respeito do tema, que envolvia tanto o Direito Urbanístico quanto o Direito Ambiental.

Quanto à tentativa de impor aos municípios a assinatura de convênios administrativos, é claro que esse mecanismo é de grande utilidade para dirimir conflitos e para viabilizar a troca de informações entre os órgãos ambientais, bem como para estimular os Municípios a criarem a estrutura necessária para atuar na área ambiental. Contudo, é preciso destacar que os entes federativos têm a liberdade para aderir ou não a tais convênios, bem como para romper com eles a qualquer momento, uma vez que possuem autonomia administrativa. De mais a mais, as municipalidades têm competência originária para cuidar das atividades de interesse local predominante, só podendo receber por convênio as atribuições que forem originárias da União e dos estados.

Esse julgamento é importante porque demonstra uma tendência a ser adotada na interpretação da Lei Complementar 140/2011, a qual dispôs sobre a competência administrativa ambiental ao regulamentar os incisos III, VI e VII do caput e o parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal de 1988. Não se pode esquecer que em breve deverá ser pautado o julgamento da ADI 4.757, cujo objetivo é declarar a inconstitucionalidade integral dessa lei (ou ao menos dos seguintes dispositivos, que foram questionados com maior ênfase: artigo 4º, V, VI, artigo 7º, XII, XIV, "h" e parágrafo único, artigo 8º, XIII e XIV, artigo 9º, XIII e XIV, artigo 14, parágrafos 3º e 4º, artigo 15, artigo 17, parágrafos 2º e 3º, artigo 20 e artigo 21). Isso significa que é possível antever o entendimento da Corte, ao menos no que diz respeito à autonomia dos entes locais em matéria de competência administrativa ambiental.

Na esteira da decisão da ADI 6.288, também recente e unânime, essa decisão reforça a autonomia municipal para atuar na seara ambiental, seja em matéria de fiscalização, de sanções administrativas ou de licenciamento ambiental. A diferença é que a ADI 2.142 versou também sobre a afirmação da competência legislativa municipal em matéria ambiental, possuindo, portanto, um escopo ainda mais amplo.

Não há dúvidas acerca da competência administrativa originária dos municípios em matéria ambiental nas atividades de interesse local predominante, sendo inconstitucional qualquer norma que dispuser sobre a matéria de forma diferente. Em vista disso, a discussão a ser travada agora diz respeito às condições materiais para o exercício dessas atribuições, posto que o baixo grau de descentralização é uma das principais lacunas da Política Nacional do Meio Ambiente.

Autores

  • Brave

    é advogado e professor da UFPB e da UFPE. Doutor em direito pela Uerj com estágio de doutoramento na Universidade de Paris 1 (Pantheón-Sorbonne). Autor de publicações nas áreas de direito ambiental e urbanístico.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!