Opinião

Marco regulatório da criptoeconomia e sua repercussão no campo penal (parte 2)

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

14 de outubro de 2022, 6h06

Continua parte 1

4 O conflito aparente entre o crime de pichardismo e o crime de estelionato em delitos de pirâmide com criptoativos
Apesar das positivas repercussões criminais do Parecer 40, ainda permanece em aberto a questão dos criptoativos que não sejam enquadráveis no conceito dúplice de valores mobiliários divisado pela CVM. Na hipótese de tais criptoativos não serem considerados valores mobiliários, afasta-se a incidência do artigo 7º da Lei 7.492/1986 em proveito do artigo 2º, inciso IX, da Lei 6.385/1976.

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Volta-se, então — mas apenas nestes casos —, a considerar a imputação, agora perante a Justiça Estadual, do crime de pirâmide financeira ("pichardismo"), do artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951, que se apresenta em conflito aparente com o crime de estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal.

Em tal cenário de confronto, por motivos que ainda precisam ser melhor esclarecidos nos acórdãos, o STJ vem decidindo que prevalece o crime contra a economia popular, por sobre o delito de estelionato, ainda que haja uma ou mais de uma vítima identificável.

O fato de a Lei de Economia Popular ter sido quase inteiramente derrogada por diplomas posteriores — como a Lei 8.137/1990 (sobretudo seus artigos 4º e 7º) e pela Lei 7.492/1986 — deveria ser levado em conta pelo STJ.

Também parece relevante considerar a evolução das novas tecnologias, seu amplo alcance e sua grande potencialidade criminosa para o cometimento de crimes plurilocais e a distância, o que ensejou, por exemplo, a introdução no Código Penal do crime de fraude eletrônica no §2º-A do artigo 171 do CP, como forma qualificada do crime de estelionato.

Por fim, tendo em vista a dimensão dos prejuízos — milionários e às vezes bilionários – provocados pelos faraós construtores das novas pirâmides (em verdade, miragens no deserto digital), os tribunais devem levar em conta a desproteção dos bens jurídicos em jogo, tornando-se insuficiente a aplicação isolada do crime de pichardismo. Não se trata de criar direito penal novo; simplesmente cuida-se de corrigir a interpretação pretoriana.

O mínimo que se pode esperar é a possibilidade de cumulação das imputações: pichardismo (artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951) com o crime do artigo 7º da Lei 7.492/1986 (se houver o encaixe dos criptoativos como valores mobiliários); ou o concurso do pichardismo com o delito artigo 171 do Código Penal (se tal encaixe não for possível). Apesar do elemento fraude ser inerente a esses dispositivos incriminadores, os bens jurídicos por eles tutelados são diversos: a economia popular, o SFN e o patrimônio, respectivamente.

Para a 6ª Turma do STJ, a mera identificação de algumas das vítimas da conduta não autoriza a responsabilização do agente pela prática de estelionato. Seria de se dar incidência apenas ao delito de pirâmide, previsto na Lei dos Crimes contra a Economia Popular como pichardismo:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO FARAÓ. CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR. ESTELIONATO. BIS IN IDEM. OCORRÊNCIA. TRANCAMENTO DO PROCESSO QUANTO AOS AVENTADOS CRIMES DE ESTELIONATO. RECURSO PROVIDO.
1. A controvérsia em análise cinge-se à configuração de crime único e à ocorrência de bis in idem, diante da imputação, ao ora recorrente, da incursão nos arts. 171 do Código Penal e 2º, IX, da Lei n. 1.521/1951.
2. Importante distinção entre os aspectos material e processual do ne bis in idem reside nos efeitos e no momento em que se opera essa regra. Sob a ótica da proibição de dupla persecução penal, a garantia em tela impede a formação, a continuação ou a sobrevivência da relação jurídica processual, enquanto que a proibição da dupla punição impossibilita tão somente que alguém seja, efetivamente, punido em duplicidade, ou que tenha o mesmo fato, elemento ou circunstância considerados mais de uma vez para se definir a sanção criminal.
3. No caso em análise, vê-se que a descrição das circunstâncias fáticas que permeiam os ilícitos imputados ao recorrente crime contra a economia popular e estelionatos são semelhantes, pois mencionam a prática de "golpe" em que ele e os coacusados induziriam as vítimas em erro, mediante a promessa de ganhos financeiros muito elevados, com o intuito de levá-las a investir em suposta empresa voltada a realizar apostas em eventos esportivos. A diferença está na identificação dos ofendidos nos estelionatos.
4. Em situação similar, esta Corte Superior já decidiu que, nas hipóteses de crime contra a economia popular por pirâmide financeira, a identificação de algumas das vítimas não enseja a responsabilização penal do agente pela prática de estelionato. Precedentes.
5. Recurso provido para, diante do bis in idem identificado na hipótese, determinar o trancamento do processo, em relação ao ora recorrente, no que atine aos crimes de estelionato (fatos 4º ao 29º da denúncia).[1]

A 5ª Turma do STJ, por sua vez, numa abordagem mais coerente, tendo em vista a diversidade dos bens jurídicos lesados e sua relevância na sociedade digital, tem entendido que é possível o concurso material entre o estelionato (artigo 171 do CP) e o crime de pirâmide (artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951).

Foi o que se deu no julgamento do caso Vik Traders, tendo a 5ª Turma da Corte Nacional de Justiça mantido a ação penal por crime contra a economia popular e por estelionato, infrações imputadas simultaneamente a um grupo acusado de operar esquema de pirâmide financeira envolvendo investimentos em criptomoedas. Observe-se que, segundo o posicionamento do MPF e da CVM, tais fatos enquadrar-se-iam, em verdade, no crime contra o SFN previsto no artigo 7º da Lei 7.492/1986.

No seu voto, o ministro Ribeiro Dantas, do STJ, destacou que "paralelamente ao ato voltado contra o público em geral (site para angariar vítimas), verificam-se condutas autônomas de aliciadores voltadas contra o patrimônio particular de vítimas específicas", apontou o ministro ao reconhecer a possibilidade, em tese, do concurso de crimes entre o delito contra a economia popular e o estelionato".[2] O caso Vik Traders ficou assim ementado:

HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR E ESTELIONATO. NE BIS IN IDEM. AVERIGUAÇÃO DO CASO CONCRETO. AGENCIAMENTO PARTICULARIZADO DE VÍTIMAS. FRAUDE CONTRA O PATRIMÔNIO DE VÍTIMA DETERMINADA. ESTELIONATO. IDENTIFICAÇÃO GENÉRICA DE PARTICULARES LESADOS, SEM INDIVIDUALIZAÇÃO DA CONDUTA QUE ATINGIU CADA UMA DAS VÍTIMAS INDIVIDUALMENTE. CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR. CONCURSO DE CRIMES. POSSIBILIDADE. ABSORÇÃO. AÇÃO PENAL PARCIALMENTE TRANCADA. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO EM PARTE.
1. Configura crime contra a economia popular "obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ('bola de neve', 'cadeias', 'pichardismo' e quaisquer outros equivalentes)", nos termos do art. 2o, IX, da Lei 1.521/1951.
2. Já o crime de estelionato (art. 171, caput, do CP) é dirigido contra o patrimônio individual.
3. Como regra, a pirâmide financeira ou a criação de site na internet sob o falso pretexto de investimento em criptomoedas subsume ao delito do art. 2o, IX, da Lei 1.521/1951.
4. Assim, narrados casos de prejuízos genéricos por infinidade de usuários, sem verificação de conduta transcendente, mas mero cooptação pelo site eletrônico, ainda que possível identificar algumas vítimas, verifica-se apenas o crime contra a economia popular. Porém, havendo o aliciamento particularizado, mediante induzimento e convencimento, de vítimas determinadas, através de emissários dos agentes criminosos principais, torna-se possível falar, em tese, em concurso de crimes entre o delito contra a economia popular e o estelionato. Isto porque, paralelamente ao ato voltado contra o público em geral (sítio eletrônico para angariar vítimas), verificam-se condutas autônomas de aliciadores voltadas contra o patrimônio particular de vítimas específicas, cuja adesão ao site (instrumento para a fraude) se revela apenas como exaurimento do estelionato.
5. Recurso em habeas corpus parcialmente provido para determinar o trancamento do feito em relação a alguns delitos de estelionato cometidos contra vítimas que não tiveram as fraudes devidamente particularizadas na denúncia, mantidos os demais termos da denúncia pelos crimes de estelionato remanescentes, associação criminosa e infração contra a economia popular.[3]

5 Conclusão
Como se vê, apesar do avanço propiciado pelo Parecer 40 da CVM e pela Instrução Normativa 1.888/2019 da RFB, a insegurança jurídica ainda estará presente no campo da criptodelinquência até que o Congresso Nacional resolva as inconsistências de nossa legislação.

Alguns projetos tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado com a pretensão de sanar os problemas postos, com propostas para tipificação dos delitos de criptomoedas no Código Penal, como forma qualificada do estelionato (artigo 171), ou para sua inserção na Lei 7.492/1986, como crime contra o SFN.

Um deles é o Projeto de Lei 744/2021, que inclui o novo artigo 24-A na Lei 7.492/1986, para considerar crime contra o SFN, de competência federal as condutas de:

Art. 24-A. Estabelecer, operar, promover ou fazer com que seja promovido plano ou operação de venda, com repercussão interestadual ou mediante o uso da rede mundial de computadores, objetivando a obtenção de ganho em detrimento de número indeterminado ou determinável de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos e indicação ou afirmação enganosa sobre a existência, a natureza, a qualidade, o retorno ou o risco de produto ou serviço:
Pena – reclusão, de quatro a oito anos, e multa.

O PL 744/2021 também acrescenta um inciso VIII ao artigo 4º da Lei nº 8.137/1990, para determinar que será crime contra a ordem econômica "obter ou tentar obter ganho mediante plano ou operação de venda em detrimento de número indeterminado ou determinável de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos e indicação ou afirmação enganosa sobre a existência, a natureza, a qualidade, o retorno ou o risco de produto ou serviço". A pena será de reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Em consequência de tais alterações, o PL 744/2021 revoga expressamente o inciso IX do artigo 2º da Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951, eliminando uma conduta já defasada.

Outro projeto de lei, o PL 440/2021,[4] introduz um novo artigo 171-A no Código Penal, com o título de "fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros". A conduta estará configurada quando o agente "organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento". Projeta-se pena de reclusão, de quatro a oito anos e multa.

Mais abrangente que o texto antes analisado, o PL 4401/2021 altera o artigo 1º da Lei 7.492/1986 para atualizar o conceito de instituição financeira para fins penais. Assim, nos termos do inciso III do parágrafo único seria equiparada a instituição financeira "a pessoa jurídica que ofereça serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive intermediação, negociação ou custódia".

Além disso, o PL 4401/2021 modifica a Lei 9.613/1998, para criar uma nova causa especial de aumento de pena, no §4º do artigo 1º, quando o crime de lavagem de dinheiro for cometido "por meio da utilização de ativo virtual". Outra alteração mira a lista dos sujeitos obrigados, do artigo 9º da Lei 9.613/1998, que passaria a ter um novo inciso, para criar deveres administrativos e de conformidade (compliance) para "as prestadoras de serviços de ativos virtuais", conhecidas como virtual assets providers (Vasp). O inciso II do artigo 10 da mesma lei também seria alterado para prever como dever administrativo dos sujeitos obrigados: manter "registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ativos virtuais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas".

Diante da enorme importância da criptoeconomia e da necessidade de ampliar a segurança jurídica para investidores, consumidores, empresários e para o Estado diante dos riscos da criminalidade patrimonial e da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo por meio de tokens, é essencial que o Congresso construa o quanto antes um sólido marco regulatório para este segmento econômico e que também traga clareza para o cenário da criptocriminalidade. Chega de miragens.

 


[1] STJ, 6ª Turma, RHC 132.655/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 28/09/2021. Trata-se da Operação Faraó.

[2] STJ, 5ª Turma, RHC 161.635/DF, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 15/09/2022.

[3] STJ, 5ª Turma, RHC 161.635/DF, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 15/09/2022.

[4] BRASIL. Projeto de Lei 4.401, de 2021. Dispõe sobre a prestadora de serviços de ativos virtuais; e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e as Leis nº 7.492, de 16 de junho de 1986, e 9.613, de 3 de março de 1998, para incluir a prestadora de serviços de ativos virtuais no rol de instituições sujeitas às suas disposições. Brasília: Câmara dos Deputados, 9 dez. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2122466&filename=Tramitacao-PL+4401/2021+%28N%C2%BA+Anterior:+PL+2303/2015%29. Acesso em: 11 out. 2022. Nesta data, o projeto aguardava deliberação do plenário da Câmara dos Deputados.

Autores

  • é professor assistente de Processo Penal da UFBA (Universidade Federal da Bahia), professor do MBA em Lavagem de Dinheiro do IDP, Especialista MBA em Gestão Pública (FGV), mestre em Direito Público (UFPE), Doutorando em Direito (Uniceub), membro do Ministério Público brasileiro desde 1993, atualmente no cargo de procurador regional da República, editor do site jurídico www.vladimiraras.blog, membro fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

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