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Resistência judicial à erosão democrática no Brasil

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  • Evelyn Melo Silva

    é advogada mestranda em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro especialista em Direito Digital e membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-RJ.

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12 de outubro de 2022, 8h00

Relatório lançado em 2020 pela Freedom House — entidade sem fins lucrativos que monitora a expansão da liberdade e da democracia pelo mundo — aponta que nos últimos 14 anos de pesquisa, consecutivamente, o mundo sofre uma deterioração do pluralismo, dos direitos políticos e liberdades individuais, chegando à conclusão de que as democracias estabelecidas estão em declínio. O estudo mostra que mais da metade dos países monitorados estão passando por um processo de erosão democrática.

A erosão democrática é um processo lento de decadência democrática, no qual governantes populistas democraticamente eleitos minam, aos poucos, os pilares do Estado de Direito e da competição democrática, como liberdades políticas, eleições limpas e imprensa livre, enfraquecendo substancialmente as instituições democráticas, contribuindo para a degradação democrática e constitucional (DIAMOND, 2015; GINSBURG, HUQ, 2018; LAEBENS; LÜHRMANN, 2021).

Atualmente, a Hungria, a Turquia, a Polônia, a Venezuela, a Índia e o Brasil são exemplos de países em que ocorrem esse processo.

No mesmo sentido da Freedom House, no Relatório de Democracia 2022, do Instituto V-Dem — ligado ao Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo (Suécia), cujo objetivo é conceituar e medir a democracia —, o Brasil é apontado como um país com um líder identificado como autoritário — presidente Jair Bolsonaro — em razão do seu descompromisso com o processo democrático, do desrespeito aos direitos das minorias, por estimular a demonização de opositores políticos e a violência política. Ainda, Bolsonaro é citado expressamente pelas reiteradas tentativas de desacreditar a higidez do sistema eleitoral e por ter enfrentado a resistência do Supremo Tribunal Federal.

No processo de erosão democrática, a polarização política – a divisão da sociedade entre um grupo versus o outro, cujos membros têm visões negativas e desconfiam uns dos outros – pode se tornar tóxica quando as diferenças de opinião resultam em grandes choques de pontos de vista, e acabam por arruinar a coesão social e a estabilidade política. O Instituto V-Dem aponta que a polarização política começou em 2013 e se intensificou com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. De lá para cá, o próprio presidente aderiu às manifestações pedindo intervenção militar, o fechamento do Congresso e do STF, promoveu uma militarização em larga escala de seu governo e estimulou uma desconfiança pública no sistema de votação.

O relatório finaliza apontando a democracia brasileira em 59º lugar, em um ranking com 179 países, informando uma queda substancial da pontuação do Brasil nos últimos dez anos, em um nível estatisticamente significativo, em todos os seis indicadores como democracia liberal e eleitoral, componente liberal, igualitário, participativo e deliberativo. A título de comparação, apenas o Brasil, a Turquia, o Iêmen e o Afeganistão pontuaram negativamente em todos os indicadores.

Observa-se que desde o início de sua gestão, Jair Bolsonaro promoveu uma série de desinformações ou notícias distorcidas, que foram catalogadas pela agência de checagem Aos Fatos [1]. Até o dia 8 de setembro de 2022, foram contabilizados 1.346 dias à frente da gestão presidencial e Jair Bolsonaro deu 6.195 declarações falsas ou distorcidas. Citam-se, como exemplo, fala sobre ditadura militar: "Nunca teve ditadura no Brasil" [2]. Em discurso contrário às minorias, afirmou que: "(…) [Somos uma pátria] que não admite a ideologia de gênero" [3]. Lançando desconfiança na higidez do processo eleitoral, o Presidente afirmou: "As urnas são inauditáveis (…)" [4].

No dia 7 de setembro de 2021, foi realizado um ato político em Brasília e em São Paulo, com a presença do presidente legitimando os discursos antidemocráticos. Em ambos os atos, Bolsonaro desafiou o Supremo Tribunal Federal, destacando-se a fala realizada na capital paulista: "Quero dizer aqueles que querem me tornar inelegível em Brasília: 'só Deus me tira de lá'. Aviso aos canalhas: não serei preso"; e em sinal de desrespeito — e até mesmo violação ao artigo 4º, VIII, da Lei Federal nº 1.079/1950 —, afirmou que "Digo a vocês que qualquer decisão do ministro Alexandre de Moraes esse presidente não mais cumprirá" [5].

Recentemente, durante a corrida presidencial para as eleições gerais de 2022, voltou a atacar Lula, seu opositor político, em primeiro lugar nas pesquisas, chamando-o de capeta e afirmando que ele quer implantar o comunismo: "Temos um mal pela frente, um capeta pela frente que quer impor o comunismo no nosso Brasil" [6].

Seus discursos de polarização tóxica podem ter culminado no homicídio de Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, durante sua festa de aniversário, cujo tema era o Partido dos Trabalhadores. Instantes antes do homicídio, o assassino gritou: "Aqui é Bolsonaro" [7]. Outro homicídio foi provocado pela polarização política. Benedito Cardoso dos Santos foi morto a facadas por Rafael Silva Oliveira durante uma discussão. Segundo o delegado que investiga o caso, "o que levou ao crime foi a opinião política divergente. A vítima estava defendendo o Lula e o autor, defendendo o Bolsonaro" [8].

Mas essas atitudes autoritárias não são as únicas responsáveis pela desestabilidade democrática. É preciso mencionar que a desigualdade social e fatores estruturais, como renda, economia e acesso à cultura, também contribuem para a decadência democrática, por isso, para que haja uma participação popular equilibrada, essas desigualdades também precisam ser superadas (LOEWENSTEIN, 1979; HUQ, 2018; LAEBENS, LÜHRMANN, 2021).

No entanto, para impedir ou interromper a erosão democrática, o país conta com três mecanismos de responsabilização, como fontes de resiliência democrática. O primeiro é o horizontal, aquele desempenhado pelo Poder Judiciário. As eleições e os partidos políticos funcionam como o segundo mecanismo, o vertical. O terceiro é o diagonal, como a sociedade civil mobilizada e a imprensa (LAEBENS; LÜHRMANN, 2021).

Especificamente sobre o mecanismo horizontal, destacam-se seis inquéritos como resistência judicial à erosão democrática no Brasil

O primeiro (4.781/DF ) é o responsável por reunir as investigações contra as ditas fake news, que colocam em xeque a lisura do processo eleitoral, da honorabilidade do STF e seus ministros, e que investiga o dito "Gabinete do Ódio". Deste inquérito decorreu a Ação Penal nº 1.044/DF que resultou na prisão e condenação do deputado federal Daniel Silveira, e a notícia-crime contra o próprio presidente Jair Bolsonaro, por ter divulgado dados sigilosos e levantado suspeita sobre a higidez do processo eleitoral.

O segundo (4.828/DF) tratava de investigar os atos antidemocráticos, decorrentes das manifestações que reivindicavam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, a intervenção militar e a volta do Ato Institucional nº 5. Arquivado, a pedido da Procuradoria-Geral da República, se desdobrou em outro inquérito, a pedido de mais apuração da Polícia Federal.

Então, foi instaurado o inquérito 4.874/DF, oriundo do arquivamento do anterior, para investigar uma "milícia digital", que conta com o apoio de empresários, agentes políticos e pessoas em cargo em comissão, que supostamente usam as dependências e os recursos do Poder Legislativo e Executivo para produzir e disseminar desinformação, atentando contra a democracia e o Estado de Direito.

Quanto às ilações do presidente Bolsonaro sobre hackeamento das urnas eletrônicas, o Tribunal Superior Eleitoral enviou notícia-crime ao STF, para investigá-lo por ter divulgado informações sigilosas da Polícia Federal em uma live, para ampliar o discurso fraudulento de vulnerabilidade das urnas eletrônicas. Assim, foi instaurado o inquérito nº 4.878/DF.

Ato seguinte, foi instaurado o inquérito nº 4.879/DF para investigar apoiadores de Jair Bolsonaro que se organizavam para financiar e convocar atos antidemocráticos, no dia 7/9/2021, para atentar contra a democracia e o regular funcionamento das instituições. O inquérito se desdobrou na prisão de alguns investigados, proibição de aproximação da Praça dos Três Poderes, bloqueio das suas redes sociais e proibição de participarem de qualquer ato ou manifestação nas ruas e perto dos monumentos do Distrito Federal.

O último inquérito estudado tramita no Tribunal Superior Eleitoral e foi instaurado para investigar o presidente Bolsonaro a partir da divulgação de dados sigilosos sobre um suposto ataque hacker ao TSE, em 2018, que se correlaciona com o inquérito do STF nº 4.878/DF. Deste inquérito decorreu a ordem para proibir a monetização de canais nas redes sociais que divulgavam desinformação sobre o sistema eleitoral.

Assim, conclui-se que, para enfrentar a erosão democrática, é preciso a união dos cidadãos, eleitores, partidos políticos, representantes democraticamente eleitos para o parlamento, membros do Poder Judiciário e integrantes de todo sistema de justiça, para coibir os arroubos autoritários de figuras populistas que exerçam o poder. Especialmente, com os Inquéritos nº 4.781/DF, 4.828/DF, 4.874/DF, 4.878/DF, 4.879/DF, 0600371-71.2021.6.00.0000, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral demonstram-se vetores estabilizadores da democracia e mecanismos de interrupção da erosão democrática.

 


Referências

DIAMOND, Larry. Facing Up to the Democratic Recession. Journal of Democracy, vol. 26, n° 01, 2015.

FREEDOM HOUSE. Freedom in the world 2020: a leaderless struggle for democracy. Disponível em: https://freedomhouse.org/sites/default/files/2020-02/FIW_2020_REPORT_BOOKLET_Final. pdf. Acesso em: 26 ago. 2022.

GINSBURG, Tom; HUQ, AZIZ Z. How to save a constitutional democracy. University of Chicago Press, 2018.

HUQ, Aziz. Democratic Erosion and the Courts: Comparative Perspectives. 93 NYU Law Review Online 21. 2018.

LAEBENS, Melis G.; LÜHRMANN, Anna. What halts democratic erosion? The changing role of accountability. Democratization. Volume 28, 2021 – Issue 5: Resilience of Democracies: Responses to Illiberal and Authoritarian Challenges; Guest Editors: Wolfgang Merkel and Anna Lührmann. pp. 908-928. DOI: 10.1080/13510347.2021.1897109.

LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Traducción: Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Editorial Ariel, 1979.

V-DEM INSTITUTE. Democracy Report 2022: Autocratization Changing Nature? University of Gothenburg, Sweden. Disponível em: https://v-dem.net/media/publications/dr_2022.pdf. Acesso em: 26 ago. 2022.

[1] Disponível em: https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/. Acesso em: 10 set. 2022.

[2] Disponível em: https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/913/. Acesso em: 10 set. 2022.

[3] Disponível em: https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/12964/. Acesso em: 10 set. 2022.

[4] Repetida 34 vezes. Em 2020: 16.nov, 20.nov, 15.dez. Em 2021: 07.jan, 15.jan, 06.mai, 08.mai, 09.mai, 12.mai, 15.mai, 27.mai, 28.mai, 10.jun, 17.jun, 24.jun, 25.jun, 26.jun, 28.jun, 01.jul, 02.jul, 05.jul, 09.jul, 22.jul, 29.jul, 02.ago, 12.ago. Em 2022: 13.mai, 07.jul, 18.jul. Disponível em: https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/12471/. Acesso em: 10 set. 2022.

[5] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/bolsonaro-discurso-manifestacao-avenida-paulista/. Acesso em: 10 set. 2022.

[6] Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/bolsonaro-chama-lula-de-capeta-em-comicio-no-interior-de-sao-paulo/. Acesso em: 15 set. 2022.

[7] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/07/5021309-video-mostra-momento-em-que-dirigente-do-p t-e-assassinado-por-bolsonarista.html. Acesso em: 10 set. 2022.

[8] Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/bolsonarista-mata-apoiador-de-lula-a-facadas-por-motivacao-polit ica-diz-policia/. Acesso em: 10 set. 2022.

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  • é advogada, mestranda em direito público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, especialista em direito digital e membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-RJ.

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