DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais e o 34º aniversário da Constituição Federal

Autores

8 de outubro de 2022, 16h00

Embora desde a sua promulgação não tenham faltado ataques dos mais diversos à Constituição Federal (CF) em vigor, oscilando entre períodos de maior calmaria, e outros, como se tem vivenciado com perplexidade nos últimos tempos, marcados por particular intensidade e mesmo níveis dantes pouco previsíveis de acentuada virulência, o texto constitucional, especialmente no concernente aos seus elementos nucleares e estruturantes, manteve-se substancialmente íntegro. 

Spacca

É evidente, e tal aspecto não pode ser simplesmente varrido para debaixo do tapete, que a grande quantidade de emendas constitucionais promulgadas (até a data da redação do presente texto, 7/10, mais de 130, incluídas as emendas de revisão) ao longo desses trinta e quatro anos promoveu mudanças significativas e, ao mesmo tempo, alterou, inseriu e excluiu muitas centenas de dispositivos do texto constitucional, que, de modo particularmente impactante, atingiram a administração pública, a ordem econômica, a ordem social, a organização dos poderes e do Estado, tributação, finanças e orçamento, mas também os direitos e garantias fundamentais.

Por outro lado, já é mais do que sabido que não é necessariamente o número de emendas que representa um problema real no que diz respeito à preservação, ou não, da identidade constitucional, ou seja, daquele núcleo essencial que, caso afetado, de fato implicaria a erosão da obra do constituinte originário.

Isso, por sua vez, se revela ainda de maior importância quando se trata dos princípios fundamentais estruturantes e dos direitos e garantias fundamentais, porquanto esses podem ser gravemente avariados ainda que neles não se toque diretamente, mas sim, mediante intervenções em outras partes do texto constitucional que os densificam lhes dão uma configuração e funcionalidade mais concreta, que é, aliás, o procedimento mais frequente.

Além disso, também é notório (ou, pelo menos, deveria ser), que mesmo no caso de poucas emendas constitucionais ou até nenhuma (hipótese, por óbvio, altamente improvável e mesmo em regra equivocada), uma constituição não é passível de ser alterada e esvaziada apenas pelos assim chamados instrumentos formais de mudança constitucional, no caso brasileiro, uma vez esgotada a revisão constitucional, as emendas à constituição.

Isso se prende ao fato de que os mecanismos/instrumentos informais, mediante os quais se dão os processos de mutação constitucional, podem contribuir tanto para o aperfeiçoamento e desenvolvimento do sistema constitucional, sem alteração no plano textual, quanto para a sua erosão. Em relação a ambas as possibilidades é possível afirmar que não faltam exemplos dignos de nota entre nós, mas que aqui não serão listados.

Mas mesmo para além das mudanças formais e informais, uma Constituição não escapa de uma série de outras possibilidades de solapamento, incluídas aqui questões, dentre outras, relacionada à sua legitimação ao longo do tempo e ao nível da eficácia social (ou efetividade) do seu programa normativo. A falta de cumprimento espontâneo, e, preferencialmente consciente, dos comandos constitucionais, bem como o déficit da capacidade de, por meio dos órgãos estatais legitimados, se levar a cabo o cumprimento, pelo menos suficiente e tendencialmente majoritário, dos deveres estatais de concretização e proteção do programa normativo, em especial dos direitos e garantias fundamentais, são fatores muitas vezes não apenas concorrentes, mas inclusive com maior peso nesse contexto. Para citar apenas um exemplo, dentre tantos outros que se poderia invocar somete nos últimos tempos, calha relembrar da tristemente célebre afirmação, de um determinado Ministro de Estado do atual Governo, no sentido de que se estaria diante da hora mais oportuna para se permitir, silenciosamente, "a passagem da boiada".

Também as propostas, nem sempre pautadas com base em razões sinceras e fundadas em argumentos sustentáveis, frequentes apontados a necessidade de uma ampla revisão da CF, de uma "mini Constituinte" (seja lá o que isso de fato possa significar para uma linguagem constitucional séria), ou mesmo da convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte, abrindo as portas para a superação de cláusulas pétreas, podem ser enquadradas (a depender especialmente do seu conteúdo) como configurando, mesmo quando motivadas com a melhor das intenções, como uma espécie de ataque à ordem constitucional vigente.

Sendo esta coluna dedicada aos direitos fundamentais, é claro que não se poderia renunciar a pelo menos algumas notas sobre esse recorte de importância tão central para a nossa e qualquer outra constituição de um Estado Democrático de Direito.

Uma primeira observação que se poderia fazer, representativa da evolução de 5/10/1988 para cá, é que, pelo ângulo textual, não houve supressão de direitos e garantias, mas sim, sua expansão, dada a inserção, mediante emendas, de diversos direitos, designadamente, a razoável duração do processo (judicial e administrativo), do direito à moradia, direito à alimentação, direito ao transporte, direito à uma renda básica familiar e, por último, o direito fundamental à proteção de dados pessoais, isso sem prejuízo de uma série de avanços no que diz respeito à inclusão de uma série de dispositivos que, embora não definindo diretamente direitos e garantias, aperfeiçoaram e reforçaram a sua proteção e concretização.

Nesse contexto, um importante exemplo a ser colacionado, é o do acréscimo dos parágrafos terceiro e quarto ao artigo 5º, CF. Ao passo que o parágrafo terceiro estabelece que os tratados e convenções internacionais de direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional em dois turnos de votação, nas duas casas do Congresso e por três quintos dos votos dos respectivos membros , terão valor equivalente ao das emendas constitucionais, o parágrafo quarto prevê a sujeição do Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Com isso, saem fortalecidos os tratados em matéria de direitos humanos ratificados pelo Brasil, mas também a posição e a responsabilidade assumida pelo Estado brasileiro no âmbito da comunidade internacional.

Dentre tantos outros exemplos que ainda poderiam ser citados nessa mesma perspectiva, assume destaque a inserção no texto constitucional da questão climática. O novo inciso VIII inserido no § 1º do art. 225 da CF pela Emenda Constitucional 123/2022, encarregou-se de contemplar os deveres de proteção climática do Estado, promovendo a descarbonização da matriz energética e economia e neutralização climática, relativamente às emissões de gases do efeito estufa decorrente da queima de combustíveis fosseis, ao "manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes (…)". A medida em questão expressa os deveres estatais de mitigação, no sentido da redução da emissão de gases do efeito estufa derivada da queima de combustíveis fosseis, inclusive estimulando mudanças e inovações tecnológicas na matriz energética brasileira rumo

Outro aspecto a destacar, ainda no concernente à ampliação do espectro constitucional em matéria de direitos fundamentais,  diz respeito à recorrente invocação, pelo STF, do disposto no artigo 5º, § 2º, da CF, naquilo em que estabelece uma cláusula de abertura material do catálogo constitucional de direitos, ao prescrever que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do seu regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

Com base nesse poder-dever atribuído à jurisdição constitucional, a nossa Suprema Corte, já poucos anos após promulgação da CF, passou a reconhecer uma série de direitos fundamentais dispersos no texto constitucional (para além do Título II) e mesmo um conjunto significativo de direitos fundamentais implicitamente positivados.

À guisa de exemplos referentes ao primeiro grupo, direitos constantes do texto, mas em outras partes que não o Título destinado aos direitos e garantias fundamentais (artigo 5º ao artigo 17, CF), referem-se aqui os casos do direito de greve dos servidores públicos, do direito à motivação das decisões judiciais, da igualdade dos filhos e dos cônjuges, do livre planejamento familiar, do direito a um meio ambiente saudável e equilibrado, da entidade familiar, da liberdade de ensino e pesquisa, da autonomia universitária, das garantias fundamentais do contribuinte em face do poder de tributar do Estado, entre outras.

No que toca ao segundo grupo, dos direitos implicitamente positivados, é possível citar o direito geral de personalidade, o sigilo fiscal e bancário, o direito ao conhecimento da origem genética, o direito à ressocialização do preso, a livre autodeterminação informacional, a união de pessoas do mesmo sexo, apenas para colacionar alguns dos mais importantes.

Da mesma forma não é possível deixar de mencionar o fortalecimento, na e pela CF, do próprio conceito e, em especial, do regime jurídico reforçado dos direitos fundamentais, seja no plano terminológico (pela primeira vez se utilizou o termo direitos fundamentais), seja no que diz respeito a fundamentalidade em sentido formal, aqui compreendida como o conjunto de garantias que asseguram aos direitos fundamentais um nível de proteção e força normativa reforçado, distinto em termos qualitativos de grande parte das outras normas constitucionais. Aqui assumem posição central a aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais (artigo 5º, § 1º) e a sua condição de limites materiais ao poder de reforma constitucional (artigo 60, § 4º, II e IV).

Para o fortalecimento do regime jurídico dos direitos fundamentais foi (e tem sido) também de particular importância o papel do STF, que, ao longo do tempo, evoluiu muito na sua função de guardião da CF, mas aqui em especial a de garante dos direitos fundamentais. Acerca deste ponto, o que aqui se sublinha, é o gradual reconhecimento de um regime jurídico substancialmente único, aplicável a todos os direitos fundamentais, ainda que resguardadas as peculiaridades de determinados direitos ou categorias de direitos, como é o caso de alguns direitos sociais. Dito de outro modo, isso significa que até o presente momento, para o STF todos os direitos são, ao menos em regra, veiculados por normas imediatamente aplicáveis, as normas de todos os direitos fundamentais vinculam diretamente todos os poderes públicos e mesmo os atores privados (sem adentrar aqui as especificidades da matéria) e todos os direitos são "cláusulas pétreas".

Mais do que isso, o STF também consagrou, a despeito de fundadas críticas que tem sido feitas no que diz com o quando e como aplicar tais institutos, o reconhecimento e amplo manejo do princípio da proporcionalidade, da proibição de proteção insuficiente e da salvaguarda do núcleo essencial dos direitos, acionados quando em causa o controle da legitimidade constitucional de intervenções restritivas.

A postura claramente (pelo menos em nível majoritário) progressista do STF em matéria de direitos e garantias fundamentais tem sido demonstrada igualmente por uma série de decisões, como é o caso do reconhecimento da constitucionalidade das pesquisas com células tronco obtidas de embriões excedentes, da união homoafetiva e toda a série de julgados em favor dos direitos da comunidade LGBT+, da proteção das comunidades indígenas, da proteção ambiental (com certeza na maioria dos casos), dos direitos da comunidade afrodescendente (aqui, entre outras, as decisões chancelando as políticas de ações afirmativas), dos direitos das pessoas com deficiência, dos direitos sociais em termos gerais, embora de modo mais tímido no campo dos direitos dos trabalhadores, das garantias processuais civis, penais e processuais penais, ademais das liberdades fundamentais, destaque para as liberdades comunicativas e sua, em regra, posição preferencial.

Mas nem tudo são flores e os percalços não têm sido poucos, a exemplo do que há foi referido mais acima. Mais recentemente, de modo mais preciso a partir do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, da "lava jato" e das eleições de 2018 para cá, passando pelo longo período em que se teve de conviver com a epidemia da Covid-19 e todos os seus desdobramentos, a crise econômica, o aprofundamento das desigualdades, e, por fim, desembocando no processo eleitoral ora ainda em curso, o que se tem passado no Brasil, numa quadra em que se deveria poder contar com a consolidação da democracia e do Estado de Direito, beira ao surreal e dá fundadas razões aos que temem pelo futuro da ordem constitucional, dos seus princípios basilares e dos direitos fundamentais.

Há décadas que não se via tantos ataques frontais às instituições democráticas; tanta disseminação do ódio, da violência, do estímulo à discriminação; da deturpação do papel fulcral da liberdade de expressão como esteio da democracia, mor meio de seu manejo despudorado justamente endereçado contra todas as virtudes de uma sociedade democrática, plural e inclusiva.

Ainda assim, a Constituição resiste e prevê os instrumentos para a sua defesa, da mesma forma como o STF, ainda que se possa discutir sobre o acerto de várias de suas decisões, mediante o uso legítimo, moral e juridicamente, da crítica, tem sido um bastião de resistência contra os ataques promovidos contra a ordem constitucional democrática, razão pela qual não são poucos os que buscam se valer disso para enxovalhar a Corte e seus integrantes, ao  mesmo tempo chegando a pregar a sua extinção, dentre outros desmandos que se tem vivenciado nos últimos tempos. A propósito, somente a proposta de se aumentar o número de Ministros (vinda especialmente do recém eleito Senador da República pelo RS), evidentemente apenas no caso da vitória de determinado candidato para ao longo de eventual futuro Governo poder fazer a maioria na Corte, merece veemente repúdio e nos faz lembrar dos tristes acontecimentos na Hungria e Polônia, apenas para invocar dois dos exemplos recentes mais emblemáticos.

Mas o balanço, sempre contextualizado e vigilante, que se pode fazer, ao fim e ao cabo é positivo e permite que se possa ter confiança na nossa Constituição Cidadã, nas suas virtudes e no seu futuro. Mas é também tarefa e dever cívico de cada um fazer tudo o que estiver ao seu alcance e que seja moral e juridicamente legítimo, para que a CF e o Estado Democrático de Direito por ela instituído e formatado tenham um futuro.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!