Garantias do Consumo

Sharenting exige proteção das crianças como consumidoras por equiparação

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5 de outubro de 2022, 8h00

O excesso de compartilhamento em rede de informações sobre as crianças, realizado pelos próprios genitores ou representantes legais, exige uma atenta análise do setor jurídico, sobretudo quando envolve fins econômicos, eis que são sujeitos sem capacidade e poder de discernimento. A utilização dos dados pessoais dos infantes, com a finalidade mercantil ou o desiderato de obtenção de retorno financeiro, denomina-se sharenting comercial, publicitário ou monetizado, e requer especial atenção dada a gravidade do problema [1]. Dados existentes sobre o tema desvelam-se alarmantes, pois, segundo a AVG Digital Diaries, desde 2010, as crianças encontravam-se na web nas mais tenras idades e 81% destas já possuíam "pegada digital" quando atingiam dois anos de idade [2]. Pesquisa realizada pela empresa de tecnologia Nominet registrou que, no Reino Unido, aproximadamente 200 fotos de crianças, com menos de 5 anos, são postadas anualmente e que ao atingirem tal faixa etária, terão mais de 1.500 imagens disseminadas online [3].

O uso excessivo de mídias sociais pelos pais para a disseminação de conteúdo baseado em seus filhos foi examinado, em 2011, por Katusha Sol e Martje van Ankeren que apresentaram opinião sobre o fenômeno [4]. Nesse mesmo ano, o psicanalista francês Serge Tisseron referiu-se à "extimidade" como a revelação voluntária dos sujeitos em ambientes de sociabilidade ou perante terceiros, como nas redes sociais, expondo a sua intimidade ou identidade pessoal, para o enriquecimento pessoal a partir do outro [5]. O jornalista americano Steven Leckart, em 2012, utilizou o termo oversharenting para abordar a "tendência, por parte dos pais, de compartilhar muitas informações e fotos de seus filhos online" [6]. Em 2015, a CBS New York divulgou o vídeo intitulado Sharenting' — A Growing Problem On Social Media?, vindo a popularizar o tema [7].

A partir da célere profusão do sharenting, o Collings English Dictionary incorporou o termo em seu acervo em 2016, definindo-o como a prática dos pais de uso regular das mídias sociais para comunicar informações detalhadas sobre seus filhos [8]. O assunto tem sido explorado e debatido por veículos de comunicação [9] e, em 2020, pesquisa Avast registrou a informação de que, em média, 26% dos pais publicam imagens ou vídeos dos filhos, em redes sociais, sem a consulta prévia destes, sendo que, no Brasil, este percentual atinge 33% [10]. A gravidade do fenômeno conduziu a União Europeia a instituir projeto-piloto destinado à proteção dos infantes. A questão também impulsionou a Organização das Nações Unidas a editar, em março de 2021, o Comentário nº 25 e, no item XII, constam necessárias e relevantes orientações para se evitar e combater a exploração econômica dos menores no ambiente virtual [11].

O sharenting, designadamente comercial ou publicitário, engendra sérios prejuízos para as crianças que reverberam no campo material e moral e exigem imediatas e firmes providências. No âmbito interno, atinge a socialização e a autoimagem de seres em tenra idade, e, na seara externa, viabiliza infrações penais, sobressaindo-se os sequestros digitais, aliciamentos, estupros e a pedofilia. Inquestionáveis consequências negativas podem advir para o seu saudável desenvolvimento físico, psíquico e emocional, visto que parte do tempo, para o lazer e o descanso, termina sendo substituído pela prática [12]. A educação e as atividades físicas — essenciais, respectivamente, para a futura formação profissional e a saúde — são atingidas [13]. A perda da chance de se ter uma infância equilibrada e harmônica, as dificuldades de, na fase adulta, conseguirem eliminar os dados disseminados, além da exposição a crimes, são preocupantes aspectos que vindicam medidas. Ademais, a destinação dos recursos financeiros, angariados pelos pais ou representantes legais, em prol de objetivos que não os contemplam, é outro ponto a ser seriamente observado [14].

A alegação de que, no Brasil, inexistem normas jurídicas que disciplinem a problemática não poderá ser justificativa para a inércia dos órgãos públicos competentes e da sociedade civil, que não devem quedar-se inertes, eis que, como visto alhures, existem diplomas normativos que possibilitam prementes diligências. As crianças, submetidas ao compartilhamento exagerado de informações pessoais, em ambientes virtuais, são consumidoras por equiparação e se encontram imersas em ofertas/publicidades, explicitamente, abusivas. A responsabilidade civil deverá ser atribuída, em caráter solidário e objetivo, não somente aos genitores, mas, também, é preciso agir perante os fornecedores de produtos e as plataformas digitais. Aquelas são sujeitos hipervulnerabilizados, cujos direitos da personalidade e o melhor interesse são aviltados ao alvedrio da Constituição Federal, do ECA, do Código Civil Pátrio, bem como do CDC, Marco Civil da Internet e da LGPD. O Ministério Público e o Conselho Tutelar devem, respectivamente, cumprir as suas missões na prevenção e no combate do sharenting monetizado [15].

Com o propósito de resguardar as crianças no ambiente publicitário, o legislador infraconstitucional previu, como abusiva, toda e qualquer divulgação que se aproveite da deficiência de julgamento e de experiência destes seres em desenvolvimento, conforme o parágrafo 2º do art. 37 da Lei nº 8.078/90 [16]. O intento normativo foi preservar os valores essenciais vigentes em determinada sociedade, cuja transgressão causará impactos negativos para a coletividade como um todo [17]. O sharenting remunerado corresponde a uma modalidade de divulgação de produtos e/ou serviços que se utiliza dos dados pessoais dos infantes ao alvedrio do seu melhor interesse e sem considerar as peculiaridades do crescimento físico e intelectual. Há a "dessacralização da intimidade" [18], da privacidade de sujeitos em fase inicial de vivência [19], além de outros direitos personalíssimos, e a desconsideração da "autodeterminação informativa" no ambiente virtual [20].

A liberdade de expressão ou de manifestação dos sujeitos, incluindo-se os pais, conquanto consagrada no artigo 5°, inciso IX, da Constituição Federal de 1988, não apresenta caráter absoluto e, no setor publicitário, suscita limites e fiscalização. Nessa senda, no caso do sharenting, não há que se questionar que os genitores estariam totalmente autorizados a realizarem as divulgações que desejarem sem, em contrapartida, observarem os malefícios causados para as crianças e as normas que as protegem [21]. Apesar de o CDC não conter regras que tratem, especificamente, do tema, a análise do conceito de consumidor equiparado e dos princípios regentes possibilita a conclusão de que o compartilhamento de dados pessoais dos infantes, para fins de oferta, ainda que velada de bens, deverá ser evitado e combatido. Ora, estes seres podem ser considerados consumidores by standard ou in abstracto, de acordo com o 17 do CDC, na condição de "vítimas do evento" [22]. Os genitores, que se utilizam deste expediente publicitário, encaixam-se na definição de fornecedor albergada pelo artigo 3o, caput, deste microssistema.

Sob a ótica principiológica, importante ressaltar que não se trata de simples conjunto normativo apenas voltado para a regulamentação das relações jurídicas estabelecidas entre consumidores e fornecedores, mas, também, de acordo com o artigo 1°, um conglomerado jurídico de natureza pública e interesse social. Isso significa afirmar o objetivo do CDC não é tão somente a pacificação dos problemas entre um destinatário final e certo empreendedor, estendendo a proteção para sujeitos fragilizados — como as crianças no sharenting — inseridos no contexto mercadológico. O princípio da vulnerabilidade ou favor debilis tem previsão no artigo 4o, inciso I, da Lei nº 8.078/90, e é considerado o núcleo basilar do microssistema consumerista. Dúvidas não pairam que há uma desmedida exploração da "hipervulnerabilidade" dos menores por parte dos genitores que compartilham os dados pessoais destes no contexto da disponibilização de produtos e/ou serviços no ambiente digital [23]. Transgridem também os princípios da harmonia e da solidariedade que devem primar nas relações econômicas e familiares [24].

As crianças, na condição de consumidoras vítimas da exposição desmedida e monetizada por parte dos pais, possuem direitos básicos absurdamente violados, que dizem respeito à vida, saúde e à segurança. São bens essenciais sem os quais os indivíduos não podem manter o seu estado vital regular, tendo o legislador infraconstitucional previsto a sua imprescindível proteção contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos. Nota-se ainda transgressão à prerrogativa de proteção contra a publicidade abusiva e demais expedientes arbitrários [25]. Aproveitam-se os fornecedores, incluindo-se os pais dos menores, da sua idade e conhecimento, para lhes impingir a disseminação indevida dos seus dados pessoais na Internet, incidindo a prática abusiva prevista no artigo 39, inciso IV, do CDC. A exploração dos infantes, por meio de contratos firmados entre os pais e as empresas, ultraja também a boa-fé, colocando-lhes em desvantagem exagerada, já que a sua incolumidade física, psíquica e moral termina sendo afetada [26].

Não há que se questionar a impossibilidade de imediata proteção dos infantes à vista desta prática aviltante, especialmente, na sua vertente econômica, uma vez que, leciona Adriano De Cupis, os direitos personalíssimos "independem de qualquer preceito escrito para serem protegidos" [27]. A futura atualização normativa deverá prever novas prerrogativas, mas o contexto normativo existente é um manancial a ser manejado para posturas enérgicas e imediatas. Conclui-se que a instituição de disposições normativas, específicas para o tratamento da problemática, constitui-se de inquebrantável relevância. Contudo, os órgãos públicos competentes devem, de modo urgente e enérgico, responsabilizar os detentores do poder familiar, que aviltam os direitos da personalidade de seres em desenvolvimento, as empresas e plataformas digitais, que se aproveitam da oferta/publicidade abusiva exploradora de consumidores, por equiparação, hipervulnerabilizados.

 


[1] SOL, Katusha; ANKEREN, Martje van. Willempje wil geen Facebookpagina. 2011. Disponível em: www.nrc.nl. Acesso em: 23 jun. 2021.

[2] O estudo foi realizado com 2200 mães que vivem nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Austrália, Nova Zelândia e Japão. Disponível em: https://now.avg.com/digital-abilities-overtake-key-development-milestones-for-todays-connected-children. Acesso em: 19 jul. 2021.

[3] NOMINET. Share with care. 2016. Disponível em: https://parentzone.org.uk.Acesso em 30 abr. 2021.

[4] SOL, Katusha; ANKEREN, Martje van. Op. cit..

[5] TISSERON, Serge. Intimité et extimité. In: CASILLI, Antonio A. (Org.). 88 – Cultures du numérique. Comunications, 2011, p. 84/89.

[6] LECKART, Steven. Seção Words of the Week, do The Wall Street Journal. 2015.

[7] STEINBERG, Stacey B. Sharenting: Children's privacy in the age of social media. Emory Law Journal, Atlanta, v. 66, p. 839-884, 2017, p. 883.

[8] STEINBERG, Stacey B. Sharenting: Children’s privacy in the age of social media. Emory Law Journal, Atlanta, v. 66, p. 839-884, 2017, p. 883.

[9] DN LIFE. Sharenting: Adolescentes não querem que pais partilhem fotos e vídeos sobre eles. Portugal, 2019. Disponível em: https://life.dn.pt/estudo-eu-kids online-miudos-entre-os-9-e-os-17-anos-explicaram-tudo-o-que-fazemonline/familia/348942/. Acesso em: 10 nov. 2020. Cf.: "Sharenting": por que a exposição dos filhos nas redes sociais não é necessariamente algo ruim. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/01/13/sharenting-por-que-a-exposicao-dos-filhos-nas-redes-sociais-nao-e-necessariamente-algo-ruim.ghtml. Acesso em: 13 dez. 2020.

[10] AVAST. Sharenting Survey Results. 2020. Disponível em: https://www.avast.com. Acesso em: 30 ju. 2021.

[11] Conferir: UN Committee on the Rights of the Child´s General Comment on children´s right in relation to the digital environment.

[12] BLUM-ROSS, A.; LIVINGSTONE, S. Sharenting: parent blogging and the boudaries of the digital self. Popular Communication, Londres, v. 15, n. 2, p. 110-125, maio 2017.

[13] Cf. DONOVAN, Sheila. "Sharenting": The Forgotten Children of the GDPR. In: Peace Human Rights Governance, 4 (1), março de 2020, p. 35-39.

[14] STEINBERG, Stacey B. Op. cit.

[15] SILVA, Joseane Suzart Lopes da Silva. Direito do Consumidor Contemporâneo. Análise Crìtica do CDC e de Importantes Leis Especiais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 470-479.

[16] Sobre o assunto, examinar: MOMBERGER, Noemi Friske. A publicidade dirigida às crianças e aos adolescentes: regulamentações e restrições. Porto Alegre: Memória Jurídica, 2002. HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Publicidade Abusiva dirigida à criança. Curitiba: Juruá, 2008.

[17] MARQUES, Cláudia Lima. Comentário ao art. 37 do CDC. In: MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIM, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 5ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 884.

[18] BOLESINA, Iuri. O direito à extimidade: as inter-relações entre identidade, ciberespeço e privacidade. Empório do Direito, 2017, p. 213.

[19] ALLEN, Anita L. Protecting one’s own privacy in a big data economy. Harvard Law Review, v. 130, p. 71-78, dez. 2016. p. 73.

[20] VIANA, Rafael Souza; SANTANA, Héctor Valverde. O compartilhamento de dados e informações pessoais de consumidores: o abuso dos fornecedores e as propostas apresentadas no PLS 181/2014. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, n. 1, p. 238-253, p. 246.

[21] PLIEGO, María Suárez. Qué es Oversharing, la sobreexposición en redes que nos persigue. 2018. Disponível em: <http://www.iniseg.es/blog/ciberseguridad/oversharing-conocelo-y-frenalo/>. Acesso em: 06 out. 2020.

[22] SILVA, Joseane Suzart Lopes da. Sharenting comercial viola dados pessoais e direitos da personalidade das crianças. Revista Consultor Jurídico, Coluna Direito Civil Atual, 31 de janeiro de 2022.

[23] NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; DENSA, Roberta. A Proteção dos Consumidores Hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes. Revista de Direito do Consumidor, v. 76, p. 13-45, out./dez. 2010.

[24] PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 850.

[25] Sobre a temática, examinar: CALAIS-AULOY, J. Le contröle de la publicité déloyale en France. In Unfair Advertising and Comparative Advertising. Publicité Déloyale et Publicité Comparative. Bruxelas Story Scientia, 83-92, 1988.

[26] BOURGOIGNIE, T. Éléments pour une Théorie du Droit de la Consommation. Paris: Dalloz,1988, 135.

[27] DE CUPIS, Adriano. I diritti della personalità. Milão: Giuffrè, t. II, 1961, p. 24.

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