Defesa da Concorrência

Livre concorrência e livre-comércio: o fim de uma era?

Autor

  • Alessandro Octaviani

    é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e autor entre outros de Recursos genéticos e desenvolvimento Estatais (em coautoria com Irene Nohara) e Estudos Pareceres e Votos de Direito Econômico (vols. I e II).

3 de outubro de 2022, 19h39

You vitriolic, patriotic, slam fight, bright light
Feeling pretty psyched

… It's the end of the world as we know it
(R.E.M)

 

A explicitação de conteúdos jurídicos protecionistas e de "segurança econômica nacional" exarados pelas principais economias do mundo, visando a remodelar seu ordenamento básico referente à livre-concorrência e ao livre-comércio, é um fato rotineiro da última década.

ConJur
A Alemanha fornece um desses exemplos, principalmente porque se notabilizou, ao longo de todo reinado de Merkel, como uma das cidadelas do aglomerado retórico de "austeridade + livre-comércio + livre-concorrência" (as mais de 15 mil empresas estatais alemãs não figuram nesse amálgama porque são reais demais para a manutenção da ideologia…).

A recente reformatação de sua disciplina jurídica do setor energético é marcante. Após a consistente escalada da Otan e da União Europeia rumo aos escombros da antiga URSS, absorvendo espaços geoeconômicos e geopolíticos sob a égide ocidental, a Rússia deflagrou a reação que teóricos do "realismo ofensivo", como John Mearsheimer, em seu influente The Tragedy of Great Power Politics, previam: uma guerra que busca limitar tal avanço, podendo migrar para pressões crescentes no fornecimento de energia e ataques contra infraestruturas críticas.

A atual infraestrutura de energia alemã foi estrategicamente modelada pelo período Merkel, tendo como símbolo máximo a construção dos gasodutos do sistema Nord Stream. A configuração do setor de energia tinha (1) como premissa uma relação amistosa com a Rússia e (2) como utopia a suposição de que o livre-comércio e a livre-concorrência criariam (paulatina, mas inexoravelmente) uma convergência institucional entre estratégias nacionais de desenvolvimento e ordenamentos jurídicos [1]. Superando esse momento retórico, a nova doutrina da Alemanha e da União Europeia (ameaçadas pela posição de compradora exercida pela China, pela detenção das Big Techs pelos EUA e pela dependência energética em relação à Rússia) remete ao termo "autonomia estratégica", durante décadas ridicularizado e escanteado pelo pensamento liberal que a OCDE e os centros bem-pensantes empurraram para os desavisados consumidores de jurisdições periféricas, dentre as quais o Brasil [2]. Demonstrando que, para os alemães, livre-concorrência e livre-comércio são conceitos mutáveis e imersos no pragmatismo que sempre deve manter seu país no cume, o governo de Olaf Scholz nacionalizou as subsidiárias alemãs da estatal petrolífera russa Rosneft, tomando o controle das refinarias e submetendo-as juridicamente ao Bundesnetzagentur, autoridade reguladora do mercado energético alemão, fato qualificado pelo ministro da Economia como "fundamental para garantir a segurança de sua cadeia nacional de abastecimento energético", afastando o livre-comércio em área sensível à segurança econômica nacional: "The trust management will counter the threat to the security of energy supply" [3].

Esse não é um ato isolado. Há método na sanidade germânica. A conjunção da Außenwirtschaftsgesetz, lei de comércio exterior e pagamentos, com o Außenwirtschaftsverordnung, seu regulamento concretizador, organiza estruturas e condutas em conformidade com os ditames da segurança nacional e dos interesses externos do país, abrindo imenso leque retórico para imposição de restrições e obrigações a fim de "garantir os interesses essenciais à segurança alemã e membros da União Europeia", visando a "prevenir distúrbios na coexistência pacífica das nações" ou "nas relações internacionais do país", e para "implementar decisões do Conselho Europeu" ou "impor sanções econômicas no escopo da política comum de defesa europeia". São sujeitos a tais restrições e obrigações, em particular, os não-residentes da União Europeia que tentarem adquirir empresas ou meramente participações acionárias de companhias alemãs que possam ameaçar, por qualquer flanco, os interesses essenciais de sua segurança econômica nacional. Da mesma maneira, os atuais diplomas reguladores dos comportamentos em mercados "de relevante interesse coletivo", como as normativas administrativas para definição de infraestruturas críticas, dispõem diversas hipóteses de controle administrativo e judicial de investimentos estrangeiros que "representem possível risco à segurança nacional", destinando-se a proteger setores inteiros da economia alemã de concorrência estrangeira.

Como se vê, um dos atuais impulsos econômicos alemães é o velho e conhecido nacionalismo econômico. A erosão da retórica liberal no centro da disciplina jurídica da economia mais relevante da Europa revela o que ainda no Brasil temos dificuldade de assumir: nos países centrais, os anos do neoliberalismo e dos modelos mentais jurássicos de livre-comércio e livre-concorrência ficaram para trás. Chegaram a "concorrência estratégica", "autonomia estratégica", "políticas contra a vulnerabilidade externa", "políticas contra a dependência", "cadeias locais de produção", "segurança econômica nacional" e outras expressões do gênero. It's the end of the world as we know it, como anunciou o clássico do R.E.M. Só a bailarina que não tem, responderiam Chico e Edu Lobo.

 

 


[1] Entre tantos exemplos, cf. REUTERS. Merkel defends nuclear power exit despite climate challenges. Disponível em: https://www.reuters.com/business/energy/exclusive-merkel-defends-nuclear-power-exit-despite-climate-challenges-2021-11-17/. Acesso em 26/9/2022. BBC. Nord Stream gas pipeline opened by Merkel and Medvedev. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-15637244. Acesso em 26/9/2022.

[2] FOREIGN POLICY. Scholz and Macron Have a Perilous Ambition for Europe. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/09/08/european-strategic-autonomy-eu-security-macron-scholz-ukraine-defense-nato/. Acesso em 27/9/2022.

[3] THE ECONOMIST. Germany's government seizes Russian energy assets. Disponível em: https://www.economist.com/business/2022/09/22/germanys-government-seizes-russian-energy-assets. Acesso em 27/9/2022. AL JAZEERA. Germany seizes Russian oil firm Rosneft’s refineries. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2022/9/16/germany-seizes-russian-oil-firm-rosnefts-refineries. Acesso em 27/9/2022.

Autores

  • é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP; ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade); e autor, entre outros, de "Recursos genéticos e desenvolvimento", "Estatais" (em coautoria com Irene Nohara), e "Estudos, Pareceres e Votos de Direito Econômico" (vols. I e II).

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