Processo Novo

Risco de retrocesso na disciplina da desconsideração da personalidade jurídica

Autores

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

  • Rafael Guimarães

    é pós-doutorando na Universidade de Bologna (Itália) doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP especialista em administração de escritórios de advocacia pela Harvard Law School (EUA) e Fordham Law School (EUA) professor nos cursos de pós-graduação da Universidade Paranaense (Unipar) e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados.

30 de novembro de 2022, 8h00

Projeto de Lei que acaba de ser aprovado no Congresso Nacional e enviado à Presidência da República para sanção cria embaraços à desconsideração da personalidade jurídica e, com isso, pode tornar ainda mais difícil a situação daqueles que vão ao Poder Judiciário em busca da satisfação de seus créditos, sobretudo nos casos em que réus e executados se utilizam abusivamente de pessoas jurídicas para frustrar o pagamento de suas dívidas.

Spacca
Mas essa história não começou recentemente.

Há quase 20 anos, na Câmara dos Deputados, teve início a tramitação do Projeto de Lei 2.426/2003, com a seguinte ementa: "Regulamenta o disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, disciplinando a declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica e dá outras providências". A proposta foi apresentada pelo deputado Ricardo Fiuza, que, pouco tempo antes, atuara como relator do Projeto de Lei 634/1975 já em sua fase final de tramitação. Este projeto foi transformado no Código Civil de 2002.

A ideia de providenciar uma disciplina normativa para o processamento da desconsideração da personalidade jurídica, à época, fazia sentido. Afinal, tinha por propósito regulamentar procedimento para instituto que então se apresentava como "novo", ao menos na codificação civil [1]. O Projeto de Lei 2.426/2003, porém, não avançou, e acabou arquivado.

Posteriormente, em 2008, os dispositivos constantes da proposta de 2003 viriam a servir de inspiração a novo projeto. De fato, praticamente todas as ideias sugeridas em 2003 viriam a ser contempladas no Projeto de Lei 3.401/2008, apresentado pelo deputado Bruno Araújo, ainda que com algumas variações. Naquele momento, diante da lacuna normativa, ainda se mostrava oportuno debater sobre um procedimento para a declaração judicial da desconsideração da personalidade jurídica. Naquela época, a desconsideração da personalidade jurídica poderia ser deferida no processo de execução sem participação da parte atingida, que muitas vezes tinha de se socorrer por meio dos embargos de terceiro. Diante desse cenário, a regulamentação realmente era justificável.

Mas o projeto de 2008 tramitou muito lentamente. Aprovado na Câmara dos Deputados em 2014, viria a sofrer alterações significativas no Senado. Esta casa legislativa, a nosso ver com acerto, aprovou em 2018 substitutivo condizente com o novo ambiente jurídico que então existia. Afinal, o Código de Processo Civil de 2015 já disciplinava o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. A saída encontrada pelo Senado consistia em adicionar um artigo à então nova lei processual, que vigorava desde 2016, prevendo sua aplicação também ao processo trabalhista e às ações consumeristas. Além disso, acrescentava parágrafos ao art. 50 do Código Civil de 2002, acomodando algumas das ideias contidas no projeto inicial da Câmara. Esta casa, no entanto, rejeitou o substitutivo do Senado. Com isso, prevaleceu a versão aprovada pela Câmara dos Deputados em 2014.

E essa versão, concebida em 2008 e inspirada naquela proposta inicial de 2003, acaba de ser enviada à Presidência da República. O prazo para sanção (ou veto) esgota-se em 13/12/2022. Se o projeto vier a ser sancionado sem vetos, a nova lei entrará em vigor na data de sua publicação (artigo 9º), aplicando-se "imediatamente a todos os processos em curso perante quaisquer dos órgãos do Poder Judiciário, em qualquer grau de jurisdição" (artigo 8º).

Alguns dos problemas que poderão advir:

No Código Civil, a disciplina da desconsideração da personalidade jurídica foi há pouco atualizada pela Lei 13.874/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Por exemplo, o artigo 50, caput, do Código Civil, em sua nova redação, dispõe que os efeitos da desconsideração alcançam "bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso". Vê-se que o critério, aqui, consiste em saber se o sócio foi beneficiado pelo ato abusivo — de modo parecido, aliás, com o que previa o antigo Projeto de 2003, em seu artigo 2º, que se referia a "atos abusivos praticados e os administradores ou sócios deles beneficiados", não exigindo, portanto, participação ativa da pessoa beneficiada pelo ato abusivo. Já o artigo 6º do Projeto recém aprovado vale-se de outro critério, estabelecendo que a desconsideração somente pode ser aplicada em detrimento de sócio que tenha praticado o ato abusivo em detrimento dos credores da pessoa jurídica e em proveito próprio. Assim, passa-se a exigir dois elementos para que se dê a desconsideração, somente se atingindo o patrimônio do sócio que tiver praticado o ato. Disposições como o inciso I do § 2º do artigo 50 do Código Civil (na redação da Lei 13.874/2019) podem restar inteiramente esvaziadas. Nessa hipótese, afirma-se que há confusão patrimonial a autorizar a desconsideração da personalidade jurídica quando houver "cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa". Ora, a prevalecer a solução apontada pelo Projeto, no caso do artigo 50, § 2º, inciso I do Código Civil, o patrimônio do sócio beneficiado pela confusão patrimonial não tiver praticado o ato não poderá ser atingido. Fica aberto o caminho para a realização de atos abusivos em prejuízo dos credores.

Interessante notar que o projeto, no ponto, aproxima-se da concepção subjetiva, prevalecente na primeira metade do século XX na doutrina e jurisprudência alemãs, mas ultrapassada naquele país, que passou a orientar-se pela boa-fé objetiva para a construção dos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica. A teoria objetiva acabou se consolidando no modelo europeu [2]. Também o artigo 50 do Código Civil, na redação da Lei 13.874/2019, é condizente com a concepção objetiva.

Além disso, aspectos processuais tratados na proposta, rigorosamente, em nada inovam.

O artigo 3.º, caput, do projeto, dispõe que, antes de decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica, "o juiz estabelecerá o contraditório, assegurando-lhes o prévio exercício da ampla defesa". O Código de Processo Civil de 2015 já contém disposições nesse mesmo sentido, pois não se decide sobre a desconsideração da personalidade jurídica senão após a citação do sócio ou da pessoa jurídica e a produção de provas, se necessário (cf. artigos 134, § 2º, 135 e 136, caput, todos do CPC/2015).

O artigo 4º do Projeto estabelece que "o juiz não poderá decretar de ofício a desconsideração da personalidade jurídica", o que também se mostra despiciendo, pois o artigo 133, caput, do CPC/2015, já condiciona a instauração do incidente "a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo".

A propósito do Ministério Público, aliás, há grave inconveniente: de acordo com o artigo 5.º, caput, 1ª parte, do projeto, "o juiz somente poderá decretar a desconsideração da personalidade jurídica ouvido o Ministério Público". A exigência de atuação do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica (como custos legis, ou custos juris, como se costuma dizer no jargão jurídico) em causas em que estão em jogo interesses eminentemente patrimoniais e disponíveis de particulares é injustificável. Um paralelo interessante: o artigo 178, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 2015, fazendo coro a antiga jurisprudência, dispõe que nem mesmo a participação da Fazenda Pública no processo, por si só, faz com que se apresente interesse público a exigir a intervenção do Ministério Público. Mas, se sancionado o projeto de lei, o Ministério Público obrigatoriamente deverá intervir no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, apesar da evidente ausência de interesse público ou social nesse caso. Além de criar nova tarefa para o Ministério Público, essa solução fará com que o processamento do incidente demore ainda mais, com prejuízo não apenas aos credores, mas ao próprio desempenho da atuação jurisdicional.

A 2ª parte do caput do artigo 5º do projeto contém disposição igualmente preocupante, ao estabelecer que somente se decretará a desconsideração "nos casos previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva". Essa disposição acaba por contrariar a própria história do instituto. Há muito, por exemplo, admite-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica, que se dá quando, em execução movida contra sócio, realiza-se a desconsideração a fim de se atingir bens da pessoa jurídica. A hipótese é referida no § 2º do artigo 133 do Código de Processo Civil e no § 3º do artigo 50 do Código Civil (na redação da Lei 13.874/2019). Mas o projeto passa a admitir a desconsideração apenas em sua feição tradicional, isso é, apenas "para fins de estender obrigação da pessoa jurídica a seu membro, instituidor, sócio ou administrador", o que é evidente retrocesso.

Doutrina e jurisprudência há muito evoluíram para admitir também outras modalidades de desconsideração, como as apelidadas de expansiva (para se responsabilizar o sócio oculto) e indireta (atingindo-se a empresa controladora, integrante do mesmo grupo econômico), desde que presentes as condições previstas no artigo 50 do Código Civil [3]. Nesse mesmo sentido é o Enunciado 11 da Jornada de Direito Processual Civil CEJ/CJF: "Aplica-se o disposto nos arts. 133 a 137 do CPC às hipóteses de desconsideração indireta e expansiva da personalidade jurídica".

Essas modalidades acabam sendo construídas porque os atos abusivos também vão evoluindo ao longo do tempo. O legislador não pode se considerar onisciente, como se tivesse condições de aprisionar no texto legal todos os modos e formas de abuso da personalidade jurídica que podem surgir no tráfego social e econômico. Em julgado expressivo do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em que se discutia sobre a possibilidade de haver desconsideração da personalidade jurídica entre empresas coligadas (algo que não seria admitido, à luz do projeto de lei aqui analisado), observou-se: "É possível coibir esse modo de atuação mediante o emprego da técnica da desconsideração da personalidade jurídica, ainda que, para isso, seja necessário dar-lhe nova roupagem. Para as modernas lesões, promovidas com base em novos instrumentos societários, são necessárias soluções também modernas e inovadoras. A desconsideração da personalidade jurídica é técnica desenvolvida pela doutrina diante de uma demanda social, nascida da praxis, e justamente com base nisso foi acolhida pela jurisprudência e pela legislação nacional. Como sói ocorrer nas situações em que a jurisprudência vem dar resposta a um anseio social, encontrando novos mecanismos para a atuação do direito, referida técnica tem de se encontrar em constante evolução para acompanhar todas as mutações do tecido social e coibir, de maneira eficaz, todas as novas formas de fraude mediante abuso da personalidade jurídica" [4].

Essas regras, segundo o artigo 8º do projeto de lei, devem ter aplicação imediata a todos os processos em curso, "perante quaisquer dos órgãos do Poder Judiciário, em qualquer grau de jurisdição". Isso significa que essas novas restrições podem incidir nos processos em que se está a reconhecer o abuso da personalidade jurídica nos termos da lei hoje em vigor, o que gera grave insegurança jurídica.

Os relatórios apresentados anualmente pelo Conselho Nacional de Justiça, intitulados Justiça em Números, apontam para elevadas taxas de congestionamento das execuções para cobrança de títulos judiciais (cumprimento de sentença) e extrajudiciais, causadas, em sua maior parte, pela não localização de bens de devedores. Mais do que isso, a taxa de efetividade na recuperação de crédito no Brasil não chega a 20%. Em um cenário em que os credores (particulares e também o fisco) têm cada vez mais dificuldades na recuperação de crédito, muitas vezes provocadas por grandes devedores, os entraves criados pelo projeto de lei aqui analisado só tendem a beneficiar réus e executados que ocultam patrimônio com o uso abusivo de pessoas jurídicas.

A proposta legislativa aprovada e enviada para sanção da Presidência da República tende a piorar esse quadro, na medida em que dificulta a responsabilização de pessoas físicas ou jurídicas beneficiadas por atos abusivos. Elaborado para um contexto social, econômico e jurídico que não existe mais, espera-se que o Projeto de Lei 3.401/2008 seja integralmente vetado.

 


[1] O Código de Defesa do Consumidor, de 1990, já previa a figura (art. 28 da Lei 8.078/1990). Poucos anos depois, em 1994, também a Lei de Defesa da Concorrência (também conhecida como "Lei do Cade") tratou do tema (art. 18 da Lei 8.884/1994; atualmente, o assunto é disciplinado pelo art. 34 da Lei 12.529/2011).

[2] José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araújo, baseando-se em lições de Menezes Cordeiro (que tratou do tema na obra O Levantamento da Personalidade Colectiva) e em célebres julgados do Bundesgerichtshof alemão, tratam das diferenças entre as figuras e da orientação condizente com o direito brasileiro no Código Civil Comentado, em notas ao art. 50 do Código (Editora Revista dos Tribunais, 5ª ed., 2022).

[3] A respeito, cf., amplamente, José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araújo, Código Civil Comentado, cit., em comentário ao art. 50 do Código Civil.

[4] STJ, REsp 1.259.020-SP, 3ª T., j. 09.08.2011, trecho do voto da relatora, ministra Nancy Andrighi.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM, ex-visiting scholar na Columbia Law School, em Nova Iorque (EUA), ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015, advogado, árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

  • é sócio-fundador do Medina Guimarães Advogados, pós-doutorando pela Universidade de Bolonha (Itália), doutor em Direito pela PUC-SP, especialista em Direito Ambiental e Mudanças Climáticas pela PUC-SP e professor na pós-graduação na Universidade Paranaense (Unipar).

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