Território Aduaneiro

Messi, Neymar e as Regras de Origem

Autores

  • Ricardo Xavier Basaldúa

    é doutor em Ciências Jurídicas (UCA) corredator do Código Aduaneiro da Nação Argentina (Ley 22.415/1981) e delegado argentino no Comitê Técnico Permanente do Conselho de Cooperação Aduaneira de 1971 a 1992 tendo presidido o Comitê de 1982 a 1983. Foi vogal (de 1992 a 2019) e presidente do Tribunal Fiscal da Nação Argentina (2016-2019). Integrante da Lista de Terceiros Árbitros para Solução de Controvérsias no Mercosul. Membro fundador da Academia Internacional de Direito Aduaneiro e membro honorário do Instituto Argentino de Estudos Aduaneiros.

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  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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29 de novembro de 2022, 8h00

Em "tempos de Copa do Mundo", não há como tratar de Direito Aduaneiro sem recorrer a analogias futebolísticas, ainda mais em relação ao tema que elegemos para a coluna de hoje: "as Regras de Origem".

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Legenda

Dos 832 jogadores que disputarão o mundial, 137 não jogarão com a camisa de seu país de nascimento. Apenas quatro seleções não contarão com atletas nascidos no exterior, entre elas a Argentina e o Brasil, sempre favoritos, e que são reforçadas com os craques que constam no título deste artigo.[1]

Mesmo sem "naturalizados", Argentina e Brasil terão elenco recorde de jogadores que atuam no exterior. Na seleção brasileira, apenas três dos 26 jogadores convocados atuam em clubes que disputam o campeonato nacional,[2] e, na seleção argentina, apenas um.[3]

Os dois craques que mencionamos são um exemplo da "globalização" no futebol. Neymar jogou profissionalmente no Brasil pelo Santos de 2009 a 2013, e depois pelo Barcelona/Espanha (2013-2017) e pelo PSG/França (desde 2017). Messi teve trajetória semelhante, saindo da equipe argentina Newell's Old Boys (1995-2000) para uma carreira profissional na Espanha (Barcelona, de 2003 a 2021) e na França (PSG, desde 2021).[4]

A "globalização" do futebol é fenômeno relativamente recente, de meados do século passado, assim como a "globalização" do comércio internacional. Por isso, não é de se estranhar a pouca importância que era dada ao tema, historicamente, pois, assim como não havia clubes formados majoritariamente por jogadores nascidos no exterior, as mercadorias importadas e exportadas não eram comumente obtidas a partir de processos produtivos envolvendo diversos países, sendo habitual que a origem coincidisse com a procedência.[5]

No Direito Aduaneiro, a "globalização", intensificada nas últimas décadas, resulta que nos processos produtivos das empresas cada vez mais sejam utilizados insumos estrangeiros, de diversas fontes, compondo produtos finais cuja origem nem sempre é fácil determinar. Nesse cenário reside a importância de "Regras de Origem",[6] tema que passou a constar expressamente em acordo multilateral celebrado na Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais, e que figura ainda nas versões original e revisada da Convenção de Quioto,[7] e em diversos acordos preferenciais, embora ainda seja tratado em reduzido número de obras jurídicas.[8]

"Origem" evoca a ideia de "causa" ou "nascimento", pelo que se pode afirmar que investigar a origem de uma mercadoria é buscar conhecer "de onde ela é", onde foi criada ou produzida.[9] Essa determinação pode ser simples no que se refere a produtos totalmente obtidos a partir de insumos nacionais, mas demanda normas específicas em situações mais complexas, mormente quando se estabelece um tratamento preferencial ou não preferencial em função da origem, em operações de comércio internacional.[10]

As regras de origem são, então, primordiais, como instrumento para determinar o tratamento aplicável a uma mercadoria, seja ele favorável ou desfavorável. As regras de origem que disciplinam os tratamentos favoráveis são denominadas de regras de origem preferencial, e são empregadas em regimes comerciais autônomos, com concessões tarifárias sem reciprocidade — v.g., Sistema Geral de Preferências (SGP) — ou em regimes contratuais, como os que regem os blocos econômicos de integração regional, a exemplo do MERCOSUL.[xi]

Por sua vez, as regras de origem não preferencial destinam-se a normatizar tratamentos que não trazem benefícios, mas sim situações desfavoráveis, como a aplicação de direitos "antidumping" e compensatórios, ou de medidas de salvaguarda, e a imposição de restrições quantitativas.[12]

Tão importante quanto compreender o que é a origem (preferencial ou não) de uma mercadoria, é saber com quais atributos a origem não se confunde. E, inicialmente, cabe alertar que não se confunde com a nacionalidade, tema aqui utilizado somente a título de oportuna analogia, visto que a origem não decorre de opção pessoal, mas de características objetivas normativamente determinadas.

Também não se confunde a origem de uma mercadoria com o local de onde esta provém (local de procedência) ou onde foi adquirida (local de aquisição). É certo que se um tratamento preferencial de importação fosse dado a uma mercadoria, v.g., unicamente em função de sua procedência de determinado país, isso soaria como um convite ao importador para que solicitasse que o transportador fizesse uma "escala" em tal país, unicamente para gozar da preferência.[13]

Outra confusão frequente se refere às "marcas de origem", e à "denominação de origem", temas tratados no Artigo IX do Gatt, que estabelece, em seu último parágrafo, que as Partes Contratantes deveriam colaborar entre si para evitar que as marcas comerciais sejam utilizadas de forma a induzir em erro quanto à verdadeira origem da mercadoria em detrimento das denominações de origem regional ou geográfica.

As exigências de marcação para identificação de mercadorias (v.g., rotulação ou fixação de etiquetas) podem ser fundadas em aspectos legítimos, como a proteção ao consumidor, mas, às vezes, são, de fato, uma medida protecionista disfarçada (pelo que tal tema é hoje tratado no Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio, também celebrado na Rodada Uruguai).[14]

E a "denominação de origem", como "indicação geográfica", igualmente recebeu disciplina específica na Rodada Uruguai, dentro do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (conhecido como "ADPIC" ou "Trips"), que estabelece que tais atributos identificam "um produto como originário do território de um Membro, ou região ou localidade deste território, quando determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto seja essencialmente atribuída à sua origem geográfica".

Voltando às regras de origem em Direito Aduaneiro, cabe, em face do exposto no atual cenário globalizado, complicar um pouco as coisas, tratando de produtos que não são totalmente obtidos ou fabricados a partir de insumos nacionais. Isso faz com que tenhamos que recorrer a critérios comumente utilizados em acordos internacionais para a determinação da origem, atrelados a uma "transformação substancial".

Embora o tema esteja primordialmente ligado ao acordo internacional aplicável para a determinação da origem no caso concreto, há normas gerais nacionais, tanto no Brasil quanto na Argentina, que estabelecem diretrizes a serem adotadas de forma subsidiária.

No Brasil, dispõe o artigo 9o do Decreto-Lei 37/1966, reproduzido no artigo 117, § 1o, do Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009): "Respeitados os critérios decorrentes do ato internacional de que o Brasil participe, entender-se-á por país de origem da mercadoria aquele onde houver sido produzida ou, no caso de mercadoria resultante de material ou mão-de-obra de mais de um país, aquele onde houver recebido transformação substancial".

Na Argentina, o artigo 14 do Código Aduaneiro (Ley 22.415/1981) dispõe que, na ausência de disposições especiais, a origem da mercadoria importada será determinada a partir de regras ali enumeradas (item 1, alíneas "a" a "f", e item 2), delimitando mais especificamente o que seria a transformação substancial, a partir de mudança na posição ("partida") da mercadoria na nomenclatura aplicável, ou de agregação de valor, entre outros.

A Convenção de Quioto Revisada adota o critério da "transformação substancial", em seu Anexo Específico "K", Capítulo 1, contemplando tanto o uso da nomenclatura do Sistema Harmonizado (prática recomendada 4) quanto o valor agregado (prática recomendada 5), entre outros, estabelecendo ainda critérios negativos (ou seja, que não atribuem origem — prática recomendada 6).

O Acordo sobre Regras de Origem da OMC, por sua vez, contém, em seus nove artigos, a disciplina básica das regras de origem não preferencial, esclarecendo, logo ao início, no artigo 1o, que não se aplica à regulação de "… regimes comerciais contratuais ou autônomos". Sobre as regras de origem preferencial, o acordo limita-se a externar "Declaração Comum", no Anexo II.

O Mercosul, a exemplo de outros blocos, também possui regras de origem próprias (tratadas na Decisão CMC 1/2009 e suas alterações), admitindo, entre outros, a transformação substancial mediante valor agregado ou mudança de posição na nomenclatura.

Esse universo das regras de origem, menos explorado que os demais elementos aduaneiros de base internacionalizados (valoração aduaneira e classificação de mercadorias) ainda tem um vasto campo de desenvolvimento, com desafios como o da certificação eletrônica, da auto certificação, da acumulação de origem, da "triangulação" para afastamento (circumvention), e da dissociação (ou não) entre a etapa de investigação de origem e a etapa de exigência de direitos e penalidades decorrentes.

A presente coluna não pretende ser mais que um convite descontraído e informal ao leitor para mergulhar nesse interessante e pouco conhecido tema do Direito Aduaneiro, que, como o futebol, demanda dedicação e muita prática. Das regras de origem, no entanto, espera-se menos emoção que neste mundial!

Recordamos, por fim, que, na última Copa do Mundo, a França sagrou-se campeã com uma equipe em que 19 dos 23 jogadores teriam condições de ter disputado o mundial por outro país.[15] A "globalização", de fato, já está presente nas seleções que disputam a Copa do Mundo.

Ainda bem que no futebol as "regras de origem" não são tão rigorosas como no Direito Aduaneiro, e que jogadores não são "mercadorias". Imagine se Neymar e Messi, em sua longa temporada europeia, tivessem passado por uma transformação substancial que lhes conferisse nova individualidade! E nem se fale no critério de valor agregado!


[1] Segundo levantamento efetuado pelo jornalista esportivo equatoriano Jaime Macías (@Jaimefmacias). Marrocos, o maior “importador”, terá entre seus 26 convocados 14 jogadores nascidos no exterior, e a França, “maior exportador”, terá 38 nascidos em seu território atuando em outras seleções.

[2] Dos 26 jogadores que vestirão a camisa brasileira, 12 atuam no campeonato inglês, 5 no espanhol, 3 no italiano, 2 no francês e 1 no mexicano. Jogam em clubes brasileiros apenas o goleiro Weverton (Palmeiras), o meio-campista Everton Ribeiro (Flamengo) e o atacante Pedro (Flamengo).

[3] O goleiro Franco Armani, do River Plate. Dos 26 jogadores que vestirão a camisa argentina no Qatar, 9 atuam no campeonato espanhol, 6 no italiano, 5 no inglês, 2 no português, 2 no francês e 1 no alemão.

[4] Mais informações sobre os craques podem ser obtidas em seus sítios web oficiais: https://www.neymarjr.com/pt e https://messi.com/.

[5] Como assinala Juan José A. SORTHEIX (Evolución de los problemas de origen de las mercaderías em el resto de la legislación internacional y en la extranjera, Revista Derecho Aduanero, Contabilidad Moderna, 1973/1974, IV-A, pp. 16-29).

[6] Acordo sobre Regras de Origem, que figura no Anexo 1-A do Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio, da qual são membros tanto a Argentina quanto o Brasil.

[7] Na Convenção de Quioto Original (Convenção para a Simplificação e a Harmonização dos Regimes Aduaneiros), tratou-se de “regras de origem” no Anexo D-1; de “provas documentais das regras de origem” (Anexo D-2); e de “controle das provas documentais de origem” (Anexo D-3). Na Convenção de Quioto Revisada, Argentina e Brasil são partes contratantes, mas nenhum desses países aderiu ao Anexo Específico “K”, que trata do tema em seus Capítulos 1 (regras de origem), 2 (provas documentais de origem) e 3 ( controle das provas documentais de origem). Sobre a Convenção de Quioto, ver: BASALDÚA, Ricardo. El Convenio de Kyoto: Antecedentes y Principios Aduaneros Involucrados, in: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: LEX, 2022, pp. 81-120.

[8] No Brasil, há somente um livro publicado especificamente sobre regras de origem, que consiste em coletânea de estudos promovidos por funcionários do então Departamento de Negociações Internacionais, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em 2007, como informa Rafael Cornejo, no prefácio – AGUIAR, Maruska (org.), Discussões sobre Regras de Origem. São Paulo: Aduaneiras, 2007. E a realidade não é significativamente diferente, no âmbito internacional, destacando-se poucas obras específicas sobre regras de origem, como a de Stefano INAMA, especialista dos quadros da UNCTAD (Rules of Origin in International Trade. New York: Cambridge University, 2009 – com segunda edição em 2022); a de Edurne NAVARRO VARONA (Las reglas de origen para las mercancías y servicios en la CE, EE. UU. y el GATT. Madrid: Civitas, 1995); a de Francisco PELECHÁ ZOZAYA (El origen de las mercancías en el régimen aduanero de la Unión Europea. Madrid: Marcial Pons, 1999); e, mais recentemente, a coletânea organizada por Germán PARDO CARRERO, com a participação de diversos membros da comunidade aduaneira internacional (Incidencia del Origen de la Mercancía en Materia Tributaria. Bogotá: Instituto Colombiano de Derecho Tributario, 2015) e o livro de Ricardo Xavier BASALDÚA, com a colaboração de Ana Lidia Sumcheski (El régimen de origen de las mercaderías. Buenos Aires: IARA 2018), que amplia, em suas referências, o universo de obras aqui citado.

[9] BASALDÚA, Ricardo Xavier. El régimen de origen…, op. cit., p. 11.

[10] Como assinala José RIJO, trazendo conceitos derivados da Comissão de Comércio Internacional do Estados Unidos da América (United States International Trade Comission) e do Tribunal de Justiça da União Europeia – As fontes normativas da origem das mercadorias, in: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo: LEX, 2015, pp. 90-91.

[11] As regras de origem preferencial, em regimes contratuais, como a própria designação sugere, são acordadas pelas partes contratantes, também prevendo, em geral, a emissão de Certificados de Origem por organismo oficial ou por ele autorizado, sem os quais as mercadorias não gozam do tratamento preferencial no país importador (TREVISAN, Rosaldo. O imposto de importação e o Direito Aduaneiro Internacional. São Paulo: LEX, 2017, p. 266).

[12] Stefano INAMA aponta como diferença entre as regras de origem preferencial e não preferencial que, no caso das primeiras, o comprovado afastamento da origem declarada implica a não concessão do benefício correspondente, enquanto que, no segundo caso, das regras de origem não preferencial, o simples afastamento da origem declarada não resolve a questão, devendo seguir a verificação da correta origem da mercadoria (Rules of Origin, op. cit., pp. 1-2).

[13] Não obstante a informação da procedência seja relevante, em termos aduaneiros, por exemplo, para aplicação de medidas sanitárias ou fitossanitárias.

[14] BASALDÚA, Ricardo Xavier. El régimen de origen…, op. cit., p. 26.

[15] Dois nascidos em outros países; dois nascidos em territórios que pertencem à França, mas possuem seleções próprias; onze com pais nascidos em outros países e que migraram para a França; e quatro com avós e antepassados em outros países (RIBEIRO, Diego; IANDOLI, Rafael. Os dois lados da migração: França tem 19 ‘gringos’ na seleção e 29 nativos em outros países da Copa, globo.com, 14/06/2018. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/selecoes/franca/noticia/os-dois-lados-da-migracao-franca-tem-19-gringos-na-selecao-e-29-nativos-em-outros-paises-da-copa.ghtml).

Autores

  • é doutor em Ciências Jurídicas (UCA), corredator do Código Aduaneiro da Nação Argentina (Ley 22.415/1981) e delegado argentino no Comitê Técnico Permanente do Conselho de Cooperação Aduaneira de 1971 a 1992, tendo presidido o Comitê de 1982 a 1983. Foi vogal (de 1992 a 2019) e presidente do Tribunal Fiscal da Nação Argentina (2016-2019). Integrante da Lista de Terceiros Árbitros para Solução de Controvérsias no Mercosul. Membro fundador da Academia Internacional de Direito Aduaneiro e membro honorário do Instituto Argentino de Estudos Aduaneiros.

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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