Opinião

Mais armas, mais crimes ou menos armas, menos crimes?

Autor

  • Francisco Sannini

    é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pós-graduado com especialização em Direito Público professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo professor do Damásio Educacional do QConcursos e da pós-graduação em Segurança Pública do Curso Supremo e delegado de polícia do estado de São Paulo.

29 de novembro de 2022, 13h10

Desde há muito tempo e com intensificação na atualidade, discute-se a conveniência ou não da limitação do acesso da população, sem antecedentes criminais, a armas de fogo para fins de autodefesa pessoal e patrimonial [1]. Afirma-se que os obstáculos legais somente têm efetividade quanto ao acesso às armas de fogo pelas pessoas não envolvidas em criminalidade ou que não tenham por fim essas práticas. Quanto aos criminosos, como é de sua natureza, pouco se lhes importa as proibições ou autorizações legais. Essa alegação é realmente procedente. O infrator da lei realmente não se importa nem mesmo um mínimo que seja com a existência ou não de um Estatuto do Desarmamento. Por outro lado, a população em geral, não envolvida em práticas criminosas, se vê às voltas com toda uma burocracia legal para a posse e, especialmente, a autorização do porte legal de uma arma de fogo.

Ocorre que a questão da liberação ou atenuação das limitações à posse e porte legais de arma de fogo não se reduz a essa obviedade. Há sérias dúvidas quanto aos efeitos do armamento civil e sua possível relação com um aumento de confrontos lesivos e letais em situações do cotidiano, bem como uma possível facilitação do acesso dos criminosos a essas armas que estariam então de posse da população civil. Do mesmo modo, questiona-se se a flexibilização do acesso às armas poderia resultar na redução dos índices criminais, como defendem os armamentistas.

Antes, porém, de nos aprofundarmos nesse debate, é preciso destacar que o comércio de armas de fogo, acessórios e munição no Brasil não foi proibido pelo Estatuto do Desarmamento, uma vez que durante referendo realizado em outubro de 2005, 63% dos brasileiros votou de modo favorável à comercialização desses artefatos. Com efeito, observados os requisitos legais, qualquer cidadão maior de 25 anos pode adquirir armas de fogo para mantê-las no interior de sua residência ou em seu local de trabalho, desde que seja o proprietário ou responsável legal pelo estabelecimento ou empresa (artigo 4º, do Estatuto do Desarmamento).

Feita essa observação, destacamos que vários fatores são relevantes neste debate. Um argumento utilizado correntemente contra a liberação das armas à população diz respeito ao grande número de homicídios que marca as estatísticas criminais brasileiras. Em resposta a isso, os defensores da liberação destacam que a estatística crua não revela o fato de que a quase totalidade desses homicídios é perpetrada por criminosos contumazes com armas ilegais ou por jovens violentos que não teriam acesso às armas legalizadas [2].

Em contraponto, salienta-se o fato de que o armamento da sociedade não afetaria o comércio ilegal de armas de fogo, pelo contrário, a viabilização desse comércio fatalmente acarretaria na redução dos valores das armas no "mercado ilegal", afinal, a maior oferta de um produto tende a resultar na redução do seu custo. Estima-se que um fuzil custe hoje aproximadamente R$ 30 mil no comércio ilegal, sendo que com a flexibilização das regras sobre o tema esse valor fatalmente seria reduzido pela metade.

Justamente por isso, acredita-se ser ilusória a percepção de que a mudança na lei tornaria possível um maior controle sobre a circulação de armas no país, vez que, além dos criminosos, muitos "cidadãos de bem"” também optariam pelo comércio ilegal cujos valores seriam bem mais atrativos e a aquisição ainda menos burocrática.

Fato é que hoje em dia o Brasil apresenta uma enorme deficiência no controle de suas fronteiras, o que repercute não apenas no comércio ilegal de armas, mas no tráfico de drogas, contrabando, descaminho etc. A Polícia Federal, órgão com atribuição para o controle das fronteiras (secas e molhadas), conta com efetivo extremamente reduzido. O Exército, por sua vez, que também tem atribuição de controle sobre as armas de fogo, acessório e munição, não vem conseguindo dar conta de realizar seu trabalho fiscalizador diante do enorme aumento do número de armas adquiridas no país desde 2019 [3]. Resta evidente, portanto, a necessidade de investimento nessa área!

Outro temor existente é o de que o civil armado, ao tentar resistir a uma abordagem de um criminoso, num roubo, por exemplo, venha a se ferir ou mesmo a ser morto, aumentando a letalidade já enorme em nosso país e ainda ensejando ao infrator a possibilidade de subtração de mais uma arma de fogo e munição. Demais disso, sustenta-se que armas de fogo são, sobretudo, instrumentos de ataque e não de defesa, o que, ao menos em tese, traria mais riscos aos cidadãos armados.

Doutra banda, autores como John R. Lott Jr., demonstram que estatisticamente o fato de haver uma população armada inibe a atuação de criminosos e diminui o número de confrontos. Lott Jr. trabalha com fontes diretas de números que comprovam sua tese, inobstante sejam números referentes a países anglo-saxões e europeus, nada havendo sobre a realidade brasileira, mesmo porque não passamos pela experiência da liberação das armas [4]. A idêntica conclusão, com base também em fontes estatísticas diretas, chega Joyce Lee Malcolm, com relação à "experiência inglesa" [5].

Ocorre que em excelente estudo sobre o tema, Cerqueira e Mello, pesquisadores do Ipea, indicam pesquisas que demonstram exatamente o contrário, senão vejamos:

Alguns autores examinaram não a relação entre armas de fogo e crimes, mas se a presença da arma dentro das residências faz aumentar a probabilidade de vitimização dos próprios residentes. Entre estes, Kellermann et al. (1993), com base nas informações obtidas nos registros policiais e em visitas aos domicílios, empregaram técnicas de matching com regressão logística condicional para concluir que a arma de fogo mantida em casa para a proteção, pelo contrário, é um fator de risco de homicídio no domicílio, independentemente de outros fatores. Nesta mesma linha de investigação, Cummings et al. (1997) analisaram os casos de suicídio e homicídio, com base em modelos georeferenciados, em que se consideraram as informações de registros de armas de fogo (curtas), de 1940 a 1993, nos EUA. A partir de regressões logísticas, os autores concluíram que famílias com histórico de aquisição de armas possuem um risco de algum membro se suicidar ou sofrer um homicídio duas vezes maior que aquelas famílias que não possuem armas, e que este risco persiste por mais de cinco anos após a aquisição da arma de fogo [6].

Na mesma linha, John J. Donohue demonstra em estudo mais recente a falácia do lema Mais Armas, Menos Crimes, em contraponto ao estudo de Lott Jr., já citado. Donohue estima que a adoção de leis mais permissivas ao armamento da população eleva em até 15 % o índice de crimes violentos [7].

Em estudo semelhante, McClellan examina o impacto das leis Stand Your Ground (que viabilizam o acesso às armas de fogo) sobre homicídios e lesões por armas de fogo nos EUA. Usando dados mensais estaduais e uma estratégia de identificação diferença-diferença, conclui-se que essas leis resultam em aumento de homicídios. De acordo com as estimativas do autor, pelo menos 30 indivíduos são mortos a cada mês como resultado das leis Stand Your Ground. Além disso, ele documenta evidências que sugerem que essas leis também estão associadas a um aumento nas internações relacionadas a lesões infligidas por armas de fogo. Em conjunto, as descobertas neste artigo suscitam sérias dúvidas contra o argumento de Lott Jr., no sentido de que mais armas resultam em menos crimes [8].

Reforçando essas conclusões, mas com foco na realidade brasileira, Cerqueira demonstra, por meio de análise de dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e do Ministério da Saúde, o seguinte:

As evidências encontradas aqui sugerem que, no período analisado, houve efetivamente uma diminuição na prevalência de armas de fogo em São Paulo; e que o desarmamento gerou efeitos importantes para fazer diminuir os crimes letais, mas não impactou significativamente os crimes contra o patrimônio, o que, indiretamente, implica a irrelevância do suposto efeito dissuasão ao crime pela vítima potencialmente armada. Ou seja, ao que tudo indica: "Menos armas, menos crimes" [9].

Outra questão que vem passando ao largo deste debate sobre o armamento da sociedade civil envolve valores éticos e morais de um povo e seu grau de civilidade. Quanto mais atrasada uma sociedade, maior a necessidade de se regulamentar tudo através de lei. Infelizmente vivemos em um país onde não se respeita o idoso e nem deficientes físicos, um país conhecido pelo "jeitinho", em que muitos procuram obter benefícios em prejuízo de outros. Será que armar uma sociedade repleta de conflitos interpessoais, seja num acidente no trânsito ou em uma discussão entre vizinhos, seria prudente? Em um país onde valores éticos e morais não são bem desenvolvidos, é no mínimo temerário o armamento do seu povo.

Voltando aos apontamentos empíricos sobre o tema, vale citar importante estudo realizado nos EUA, pela Universidade de Chicago, em que foi verificado, entre 2019 e 2020, o aumento de 13% para 23% do número de armas de fogo que, dentro de 06 meses de sua regular aquisição, apareceram em uma cena de crime (Weapon´s Tim-to-Crime[10]. Ainda de acordo com o FBI, em 2020, ano em que houve um recorde na compra de armas de fogo, cerca de 77% dos assassinatos ocorridos nos EUA foram cometidos com o emprego de arma de fogo, o que representa o maior índice desde 1960, reforçando, destarte, a tese de que mais armas representam mais crimes.

Caminhando para o final deste estudo, que não tem a pretensão de exaurir o tema, nos parece pertinente as lições de Ehrlich:

No mundo todo há uma enorme variação nos índices de porte de armas. Do mesmo modo, a proporção de crimes violentos muda de um país para outro. Por exemplo, países como Israel, Finlândia e Suíça têm alta média de posse de armas e baixo índice de crimes violentos, enquanto em muitos outros lugares a situação é inversa. No geral, parece não haver no mundo todo uma correlação entre o acesso a armas e quantidade de crimes violentos. Isso não chega a ser surpresa, tendo em vista as diferenças legais, econômicas e culturais registradas por todo o planeta [11].

Por isso é tão difícil marcar uma posição segura sobre o tema, considerando a realidade brasileira em comparação com outros países e culturas. Deixamos, portanto, aos leitores, a formação da própria opinião, porém, com a capacidade crítica e o acesso a uma bibliografia aqui visitada. É importante, para a formação de uma opinião "informada" e "bem formada" que se tenha acesso a toda a rede de argumentações em um debate franco e aberto.

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Referências:
CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro; MELLO, João Manuel Pinho de. Menos Armas, Menos Crimes. IPEA. Texto para Discussão nº 1721, 2012. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2927/1/TD_1721.pdf . Acesso em 15.03.2018.

CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro. Causas e Consequências do Crime no Brasil. Rio de Janeiro: BNDES, 2014.

DONOHUE, John J. Right-to-CarryLawsandViolent Crime: A ComprehensiveAssessmentUsingPanel Data, the LASSO, and a State-LevelSyntheticControlsAnalysis. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w23510 . Acesso em 15.03.2018.

EHRLICH, Robert. As nove ideias mais malucas da ciência. Trad. Valentim  Rebouças e Marilza Ataliba. São Paulo: Ediouro, 2002.

LOTT JR., John R. Mais Armas Menos Crimes? Trad. Giorgio Capelli. São Paulo: Makron Books, 1999.

MALCOLM, Joyce Lee. Violência e Armas. Trad. Flávio Quintela. Campinas: Vide Editorial, 2014.

MCCLELLAN, C.; TEKIN, E. Stand Your Ground Laws, Homicides, and Injuries. JournalofHumanResources, p. 0613–5723R2, 17 ago. 2016. Disponível em: http://jhr.uwpress.org/content/early/2016/08/15/jhr.52.3.0613-5723R2 . Acesso em 15.03.2018.

SANTOS, Luiz Afonso. Armas de Fogo Cidadania e Banditismo  O outro lado do desarmamento civil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999.

QUINTELA, Flávio, BARBOSA, Bene. Mentiram para mim sobre o desarmamento. Campinas: Vide Editorial, 2015.

 


[1] Para um estudo mais profundo, recomendamos nosso Tratado de Legislação Especial Criminal, publicado em coautoria com o professor Eduardo Cabette, pela Editora Mizuno.

[2] SANTOS, Luiz Afonso. Armas de Fogo Cidadania e Banditismo O outro lado do desarmamento civil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999, p. 9.

[3] Hoje existem mais de um milhão de armas de fogo adquiridas por pessoas com registro de CAC (Caçadores, Atiradores e Colecionadores). De maneira ilustrativa, um CAC pode adquirir até 60 armas de fogo na atualidade, sendo até 30 fuzis.

[4] LOTT JR., John R. Mais Armas Menos Crimes? Trad. Giorgio Capelli. São Paulo: Makron Books, 1999, "passim".

[5] MALCOLM, Joyce Lee. Violência e Armas. Trad. Flávio Quintela. Campinas: Vide Editorial, 2014, "passim".

[6] CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro; MELLO, João Manuel Pinho de. Menos Armas, Menos Crimes. IPEA. Texto para Discussão nº 1721, 2012. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2927/1/TD_1721.pdf . Acesso em 15.03.2018.

[7] DONOHUE, John J. Right-to-CarryLawsandViolent Crime: A ComprehensiveAssessmentUsingPanel Data, the LASSO, and a State-LevelSyntheticControlsAnalysis. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w23510 . Acesso em 15.03.2018.

[8] MCCLELLAN, C.; TEKIN, E. Stand Your Ground Laws, Homicides, and Injuries. JournalofHumanResources, p. 0613–5723R2, 17 ago. 2016. Disponível em: http://jhr.uwpress.org/content/early/2016/08/15/jhr.52.3.0613-5723R2 . Acesso em 15.03.2018.

[9] CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro. Causas e Consequências do Crime no Brasil. Rio de Janeiro: BNDES, 2014.

[10] Myths and Realities: Understanding Recent Trends in Violent Crime. Disponível: https://www.brennancenter.org/our-work/research-reports/myths-and-realities-understanding-recent-trends-violent-crime . Acesso em 18.11.2022.

[11] EHRLICH, Robert. Op. cit., p. 141.

Autores

  • é mestre em direitos difusos e coletivos, pós-graduado com especialização em Direito Público, professor da pós-graduação da Unisal/Lorena, professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo, professor da pós-graduação em segurança pública do Curso Supremo, professor do Damásio Educacional, autor de livros jurídicos, delegado de polícia do estado de São Paulo, titular do primeiro Setor de Combate à Corrupção, Organização Criminosa e Lavagem de Dinheiro (Seccold) do Estado de São Paulo.

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