Fábrica de Leis

"Para inglês ver": o caso da Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831

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29 de novembro de 2022, 8h00

Ao longo da recém-nascida coluna Fábrica das Leis, vimos argumentos e desafios desfiados e enfrentados em torno do tema da avaliação legislativa. Se vamos propor reflexões sobre as etapas de um processo orientado de planejamento que considere as condições para a maior eficácia da legislação, precisamos compreender o tipo de mentalidade que modula essa forma de se pensar a gênese normativa. De fato, há condicionantes imponderáveis e simbólicas no planejamento de ações aptas a catalisarem ou diminuírem impactos malfazejos daquilo que "deve-ser". A vida como ela é, assim como as leis, não se restringe à forma de "bula". Todavia, se o conhecimento do futuro da incidência normativa passa por metodologia e métodos verificáveis e justificados pela reconstrução do seu respectivo contexto/cenário presente, as consequências identificadas em processos legislativos passados nos trazem algumas valiosas lições, por meio do que podemos chamar de uma avaliação legislativa reversa. Através da observação de legislações publicadas e prontas para produzir efeitos (ainda que formalmente), podemos verificar o que não poderia ser repetido.

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Nosso alvo de análise, hoje, será a Lei Feijó (Ponto 1, a proposição legislativa tem uma autoria, mas o Parlamento é uma instituição que foi concebida para muito além dos personalismos), publicada em 7 de novembro de 1831 — nossa primeira lei abolicionista, que tinha como objeto o fim do comércio de pessoas para serem escravizadas. Nesse mesmo dia, com o fim de executar uma Resolução da Assembleia Geral, foi publicado Ato do Executivo, um decreto cujo objeto era a regulamentação do ensino jurídico. Dois atos normativos, aparentemente sem ligação, porém nada mais longe do olhar desavisado do que a sua conexão com os problemas que cercariam a plena eficácia da lei se tornou a metáfora da descrença da lei: "para inglês ver".

Os cursos de Direito, em terras brasileiras, somente existiam em São Paulo e Pernambuco, e quem tivesse meios e coragem, se arriscaria em travessia marítima para escolas na Europa (com acesso à cultura, bibliotecas e fontes aqui então inexistentes). Assim, no Brasil, o currículo mínimo contido no Decreto de 7 de novembro de 1831 previa uma cadeira de direito natural público, a disciplina diplomacia, mas duas cadeiras específicas de direito marítimo e mercantil, um estudo sobre a Constituição no primeiro ano e uma cadeira de economia política. Finanças públicas, ou mesmo matérias processuais (além da disciplina do direito civil) eram inexistentes. Aqui temos o Ponto 2, do aprendizado reverso, se aqueles que lidarão com a legislação e a aplicação do direito não forem devidamente formados para organizarem bons procedimentos na produção de normas, de modo eficiente, em condições de produzirem efeitos que façam sentido, inovando na administração pública e atuando conforme direitos fundamentais, leis continuarão sendo mais conjuntos de palavras e menos uma sequência de atos, condutas, procedimentos que levem ao cotidiano, direitos, deveres, competências. Uma reforma curricular geral nos cursos de Direito é urgente para incorporar disciplinas com temas em processo legislativo, regulação, advocacy, direito parlamentar etc. Em 2018, a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) inova e cria uma estrutura transdiciplinar entre Direito e Ciência Política, no seu ensino jurídico e nos cursos de gestão pública e ciências do estado, o LegisLab. Reformar é preciso.

A avaliação legislativa, assim como a avaliação de impacto regulatório tem sua história enraizada nas práticas parlamentares inglesas e no modelo de gestão pública do Reino Unido. Assim como hoje, modelos jurídicos e mentalidades provenientes de outras realidades ainda que não hegemônicas, localmente, induziram mudanças legislativas, como foi o caso do tema sobre o fim do comércio de pessoas africanas no Brasil.

A importação de modelos jurídicos, por vezes significou (e significa) a antecipação de tendências e novas visões de mundo que pudessem amenizar conflitos e que acabam por se imiscuírem no modo brasileiro de lidar com seus temas. E não só isso, organismos estrangeiros, sejam estados ou organizações internacionais (como a OCDE) criam condições de melhoria na governança legislativo-regulatória para que um estado faça parte do grupo, comercialize com vantagens, acesse crédito e fundos e se um país tiver uma grande proeminência terá grandes possibilidades em exercer a sua influência sobre os demais, inclusive impulsionando legislações e regulações que vão da economia circular à reforma tributária.

A Inglaterra, em 1807, com status de protagonista no tabuleiro das relações internacionais, ao proibir o tráfico de pessoas para serem escravizadas, exige, dos países parceiros, medidas similares, afinal o desequilíbrio dos preços favorecia quem tinha o menor custo de mão de obra. Assim, tratados internacionais datados de 1814 e 1826 tinham como objetivo a erradicação do comércio de pessoas e, claro, novas mudanças legislativas. Somente o Brasil superava os números ingleses no tráfico de pessoas: cerca de 5 milhões de pessoas em estado de imigração forçada (e como a convenção social do jeitinho já prosperava por cá desde priscas eras, pode ser que a cifra seja, lamentavelmente, maior).

Assim chegamos no Ponto 3, a escolha do tipo de força que um ato normativo terá. A Lei de 1831 trouxe medidas coercitivas compatíveis com o desafio de alterar, normativamente, uma cultura escravista, porém faltou considerar o fato de que esse modelo se espalhava por todos os setores da sociedade brasileira e que sustentava a economia nacional. Restrições de liberdade fortes, podem ser identificadas nessa legislação como a instituição de crimes com penas físicas e pecuniárias, sanções premiais (nem todo nudge funciona sozinho, a depender do tipo de realidade sobre a qual a legislação vai atuar) em pecúnia para quem desempenhasse, o então fraco papel estatal de fiscalizar o movimento de "cargas" ilegais; a criação da figura jurídica da "reexportação" das pessoas apreendidas nos navios dos contrabandistas; vedação da propriedade de pessoas traficadas após a vigência da lei.

Parafraseando do episódio 2 do podcast "Projeto Querino", na Empresa Brasil, "o trabalho é negro e o lucro é branco". O resto da história da lei que quis acabar com o comércio de gente é do conhecimento geral: uma existência de lei flagrantemente violada. E pior, a desconsideração da lei, por diversas autoridades, facilitou o surgimento de convenções sociais eficazes a alimentar um modelo de corrupção em alta escala, o que também explica razão do fracasso da fiscalização e da sua execução.

Em meados da década de 1880, a lei passa a ser invocada judicialmente, o que também denota falhas graves na fiscalização e na percepção social da brutalidade e da ilicitude da escravidão. Se houve uma atividade com uma complexa e longa cadeia produtiva, a remunerar diversas categorias e ainda assim altamente rentável pelo risco que envolvia, atendia pelo nome de "tráfico negreiro". As esferas de decisão fossem judiciárias, mas sobretudo as legislativas, por força das condições para acesso aos cargos públicos favoreciam aqueles que tivessem um certo nível de renda, cujas atividades econômicas eram majoritariamente dependentes da escravidão.

Se as ações de uma política abolicionista expressas na Lei de 1831 tiveram como efeito benéfico o incremento de debates sociais e políticos, de cunho abolicionista, fortalecendo a pressão diplomática da Inglaterra para o fim do escravidão conforme farta demonstração de Beatriz Mamigonian (e aí temos um Ponto 4: a legislação simbólica pode pautar um tema na agenda pública ainda que não consiga dirimir a raiz do conflito).

A matriz econômica brasileira era escravista, desde o século 16 e sem grandes tecnologias, ou agentes políticos motivados a apoiarem modelos que permitissem uma transição para outro que não se apropriasse da vida e trabalho de um grupo específico de pessoas. Como ficaria toda a riqueza brasileira sem a mão de obra escrava, qual arranjo deveria ter sido pensado para não atirar os libertos e libertas na escravidão da pobreza?

E aí chegamos ao nosso Ponto 5, o apelo à adoção de modelos jurídicos de legislações (ou de modos de se legislar) impulsiona modificações sociais, porém nem sempre encontra desenhos institucionais capazes de ampararem a mudança assegurando a sua execução. Leis que fazem sentido e que tenham como contexto mudanças de mentalidade, necessitam de um planejamento sofisticado a partir de um rigoroso mapeamento dos afetados. Impactos podem ser dirimidos se forem identificados durante a fase de avaliação prévia, que pode exigir outras medidas, não exclusivamente legislativas.

Temas e pautas complexas exigem uma saudável polifonia, que deve ser assegurada nos processos de elaboração normativa, para que o presente não projete a vanguarda do atraso, perpetuando desigualdades, impedindo um círculo inclusivo de prosperidade.

As instituições agradecem.

Autores

  • é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora e mestre em Direito pela UFMG e coordenadora do Observatório para qualidade da Lei e do Legislab.

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