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"Retrato de Dorian Gray fiscal" mudou 17 vezes o ADCT por DRU e Teto

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29 de novembro de 2022, 8h00

Há pouco mais de seis anos escrevi nesta coluna um artigo que me parece bastante oportuno resgatar para refletirmos acerca do que presentemente temos vivenciado nas finanças públicas brasileiras. Em 27 de setembro de 2016, eu questionava o manejo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias como uma espécie de "Retrato de Dorian Gray fiscal".

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Tal como a decrepitude de Dorian Gray foi escondida em uma pintura que lhe retratara a alma, na célebre obra de Oscar Wilde; o ADCT tem se prestado a acomodar, de forma tergiversadora, estratégias controversas de redefinição das regras do texto permanente da Constituição em relação às vinculações de receitas, aos deveres de gasto mínimo, ao orçamento da seguridade social e demais instrumentos de garantia de custeio dos direitos fundamentais.

Naquela ocasião, eu havia tematizado a oitava emenda de desvinculação de recursos da União (DRU) nos artigos 71, 72 e 76 do ADCT, comparando tal trajetória de redesenhos constitucionais sucessivos com o que ainda era a PEC 241/2016 e que pouco tempo depois iria se transformar no "Novo Regime Fiscal" dado pela EC 95/2016.

Os anos se passaram e, neste final de 2022, parece que o Brasil segue preso a um ciclo vicioso de respostas fiscais curtas. Assim se sucedem regras de reduzido fôlego temporal que se revelam ineptas tanto na dimensão qualitativa, quanto na quantitativa.

O acúmulo de emendas ao ADCT impõe concomitantemente uma inflação normativa e o rebaixamento da força cogente da Constituição de 1988. A estreiteza analítica é assustadora. Aliás, essa só não é maior que o cinismo dos que acreditam conferir racionalidade orçamentária mediante tantas e tão sucessivas alterações constitucionais via "disposições transitórias" que se pretendem vigentes por décadas a fio.

A tabela abaixo consolida as 17 alterações já acumuladas no ADCT, direta ou indiretamente causadas por força dos regimes jurídicos estabelecidos pela DRU e pelo Teto, sem contar, é claro, a iminência de uma nova emenda que decorreria da aprovação e promulgação da aventada "PEC da Transição":

 

Desvinculação de receitas da União

(FSE, FEF e DRU)

Teto de despesas primárias

("Novo Regime Fiscal")

Instituição

Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1º de março de 1994 (regime de desvinculação inicialmente concebido para os anos de 1994 e 1995)

Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016

Vigência estimada no ADCT

1994 a 2023

2016 a 2036

1ª Alteração

Emenda Constitucional nº 10, de 4 de março de 1996 (alteração dos arts. 71 e 72 do ADCT para, entre outros fins, ampliar a vigência da desvinculação até 30/6/1997)

Emenda Constitucional nº 102, de 26 de setembro de 2019 (acrescentou inciso V no §6º do art. 107 do ADCT)

2ª Alteração

Emenda Constitucional nº 17, de 22 de novembro de 1997 (alteração dos arts. 71 e 72 do ADCT para, entre outros fins, ampliar a vigência da desvinculação até 31/12/1999)

Emenda Constitucional nº 106, de 7 de maio de 2020 ("regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia")

3ª Alteração

Emenda Constitucional nº 27, de 21 de março de 2000 (inclusão do art. 76 no ADCT, com desvinculação até 2003)

Emenda Constitucional nº 108, de 26 de agosto de 2020 (alterou inciso I do §6º do art. 107 do ADCT)

4ª Alteração

Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003 (alteração do art. 76 do ADCT, para prorrogar a desvinculação até 2007)

Emenda Constitucional nº 109, de 15 de março de 2021 (alteração do art. 109 do ADCT e auxílio emergencial "residual" no art. 3º da EC 109)

5ª Alteração

Emenda Constitucional nº 56, de 20 de dezembro de 2007 (alteração do art. 76 do ADCT, para prorrogar a desvinculação até 2011)

Emenda Constitucional nº 113, de 8 de dezembro de 2021 (alteração do art. 107, §1º, II e revogação do art. 108, ambos do ADCT)

6ª Alteração

Emenda Constitucional nº 68, de 21 de dezembro de 2011 (alteração do art. 76 do ADCT, para prorrogar a desvinculação até 2015)

Emenda Constitucional nº 114, de 16 dezembro de 2021 (inclusão dos arts. 107-A e 118 no ADCT)

7ª Alteração

Emenda Constitucional nº 93, de 8 de setembro de 2016 (alteração do art. 76 do ADCT, para prorrogar a desvinculação até 2023, com inclusão também dos arts. 76-A e 76-B no ADCT, para instituir a desvinculação de receitas dos Estados e dos municípios)

Emenda Constitucional nº 123, de 14 de julho de 2022 ("estado de emergência decorrente de elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais dela decorrentes")

8ª Alteração

Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019 (inclusão de §4º no art. 76 do ADCT, para excluir da DRU as contribuições sociais destinadas ao custeio da seguridade social)

PEC da Transição

Fonte: elaboração própria a partir da Constituição de 1988.

 

À luz do elenco acima, fica claro o quanto o debate contemporâneo sobre mais uma proposta de emenda constitucional para abrir brecha contingente ao teto se assemelha ao modo como a DRU foi prorrogada sucessivas vezes no ADCT.

Muito embora seja inegável que o teto é iníquo e disfuncional, sua sobrevivência é assegurada por meio de várias emendas curtas e ineptas (liberações de "fura-teto" a conta-gotas), em movimento que objetiva, em última instância, atender às supostas expectativas do mercado financeiro, enquanto aumenta o custo de intermediação de parlamentares fisiológicos que querem a constitucionalização do Orçamento Secreto.

Acumulamos dezessete emendas constitucionais para acomodar e arrastar os efeitos questionáveis da DRU e do Teto, porque "o" mercado quer algum instrumento fantasioso para precificar risco e pressionar juros, às custas do esvaziamento dos instrumentos constitucionais de vinculação orçamentária que amparam os direitos sociais.

Vale lembrar que, na DRU, foi mitigado estruturalmente o Orçamento da Seguridade Social e agora são prensados os pisos em saúde e educação com mera correção monetária ao longo de 20 anos.

Persiste, pois, o sério e cínico impasse na tentativa de ocultar dentro do ADCT tudo o que a sociedade brasileira e, em especial, os governos não conseguem pactuar honesta e estruturalmente no texto permanente da Constituição de 1988.

Se fosse operador do direito no Brasil atual, Oscar Wilde poderia perfeitamente adaptar seu O Retrato de Dorian Gray para a persistência da DRU e do Teto no ADCT. Tantos e tão sucessivos redesenhos ali denotam uma imagem horrenda e cínica da nossa realidade, enquanto o texto constitucional permanente segue formalmente belo e atraente em suas promessas civilizatórias de dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais oponíveis ao Estado.

A equiparação do ADCT a uma espécie de "Retrato de Dorian Gray fiscal" segue triste e forte, mesmo após seis anos da sua veiculação nesta coluna, porque ela remete à duplicidade moral do jovem Dorian Gray que vende sua alma e deposita na pintura escondida toda a sua corrupção física e espiritual, para que a sua aparência exterior falsamente seja mantida jovem, bela e impecável.

O medo de envelhecer e o excessivo apego à aparência superficial marcam o cinismo e a hipocrisia moral na adoção de subterfúgio como um retrato que apenas formalmente carrega consigo o peso da decadência da alma de quem nele busca esconder suas face e identidade reais.

Se considerarmos que a nossa Constituição chegou fiscalmente erodida ao seu 34º aniversário, a tensão entre o que é permanente e o que é transitório quanto aos seus preceitos fundamentais e à sua aplicação concreta soa como absolutamente sintomática do nosso mal estar. Até porque, do ponto de vista das finanças públicas brasileiras, a desvinculação parcial de receitas tem sua vigência "transitória" constitucionalmente projetada de 1994 até 2023 (quase 30 anos!) e o "Novo Regime Fiscal" corresponde a uma imposição "transitória" de limites de despesas primárias que se estenderá até 2036 (20 anos).

Mas sobre qual mal-estar especificamente estamos a debater? Com o devido perdão pelo trocadilho, alega-se, cada vez mais, que o Estado de Bem-Estar Social desenhado na Constituição não cabe no PIB e, por conseguinte, no orçamento público. Ocorre, contudo, que quem questiona o peso das despesas referidas ao custeio dos direitos fundamentais, opaca e maliciosamente tem se valido da majoração exaustiva das hipóteses de receitas a eles vinculadas para realocar o produto da sua arrecadação, de forma tergiversadora, em outras finalidades.

O que tem sido posto em xeque no Brasil, ao longo das mais de três décadas de Constituição Cidadã, é exatamente o arranjo constitucional de financiamento dos direitos sociais e, em especial, a relação de proporcionalidade entre receitas e despesas públicas destinadas a tal desiderato.

Em ambos os instrumentos, DRU e Teto, almeja-se um regime fiscal de formação de saldos positivos para o pagamento, direta ou indiretamente, das despesas financeiras, mitigando as vinculações de receitas, os deveres de gasto mínimo e até mesmo adiando a exigibilidade das despesas primárias obrigatórias, a exemplo do que se sucedeu com o parcelamento dos precatórios federais nas Emendas 113 e 114/2021.

As dezessete alterações ao ADCT, anteriormente arroladas, impuseram mecanismos de contenção linear do custeio dos direitos fundamentais no âmbito da União, independentemente dos deveres constitucionais e das demandas sociais. A bem da verdade, tamanho redesenho fiscal via DRU e Teto esconde a nossa histórica incompetência quanto ao controle anual sobre as receitas e as despesas. Daí decorre o caráter absolutamente frágil e insuficiente da avaliação das metas fiscais, inclusive para fins de concessão de renúncias de receitas, geração de novas despesas, dentre as quais, em especial, despesas com pessoal ativo e inativo, bem como incentivos creditícios ao mercado.

Não é admissível frustrar e adiar as obrigações impostas ao poder público para que manter desvinculação de receitas e um regime fiscal que, por concepção, discrimina despesas primárias em face das despesas financeiras, sem qualquer limite ou baliza para essas e sem qualquer proporcionalidade equitativa entre aquelas e o fluxo das receitas.

O mais dramático é que, tanto no que se refere à DRU (e suas congêneres DRE-DRDF-DRM), quanto no que diz respeito ao teto fiscal, a promessa de soluções fáceis para problemas antigos e complexos põe a perder estruturalmente o custeio constitucionalmente adequado dos direitos sociais, notadamente a seguridade social (em seu tripé previdência, assistência social e saúde) e a educação.

Em ambos os casos, cabe o aviso de que tais comandos no ADCT não podem simplesmente suspender a eficácia imediata dos direitos fundamentais, de que trata o artigo 5º, parágrafo 1º da CF, muito embora eles acabem por dar causa a uma espécie de opacidade e profunda frustração das finalidades constitucionais, como se fossem expressão caricata do "Retrato de Dorian Gray" na relação entre o ADCT e a Constituição de 1988.

Enquanto as sereias cantam promessas de ajuste fiscal fácil (embora doloroso) e de postergação da necessária reforma tributária via ADCT, nossa Constituição perece a perda da sua identidade nuclear. O retrato que fica é o de uma sociedade cinicamente administrada por quem não é capaz de, em seu nome e com ela, gerir legitimamente os conflitos distributivos do orçamento público.

Nossa Constituição Cidadã se olha no "retrato" do ADCT e duvida caber no orçamento, mas (tamanha a devassidão da realidade) parece esquecer que as receitas e as despesas estatais somente são legítimas à luz daquilo que o texto permanente definiu ser a sua feição primordial, a saber, a promoção dos direitos fundamentais e, por óbvio, a dignidade da pessoa humana.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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