Opinião

Advocacia Pública nos tempos da brilhantina

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29 de novembro de 2022, 21h40

A brilhantina é um cosmético na forma de pomada utilizado para modelar o cabelo, sendo muito famosa entre os anos 1950 e 70, servindo inclusive como nome para o musical Grease, estreado por John Travolta e de grande sucesso [1].

Ora, tendo em vista a época em que foi utilizado, serviu como norte para o discurso a ser apresentado nesse texto.

A prática tem nos mostrado que a Advocacia Pública, salvo raras exceções, tem evoluído a passos deveras lentos, praticamente ainda estando na época da brilhantina.

Com efeito, ainda vigora o princípio da litigiosidade sem fim entre a grande maioria dos advogados públicos.

Talvez isso ocorra pelo fato de que as legislações hoje em vigor sejam bastante restritivas quanto à autonomia do advogado público, ou até mesmo por medo ou superstição dos profissionais.

Nesse diapasão, a Constituição é bastante lacônica com o tratamento da Advocacia de Estado, ao contrário do que fez com o Ministério Público (artigo 127, §1º) e com a Defensoria Pública (artigo 134, §4º), aos quais assegurou expressamente a independência funcional.

Em relação à advocacia em geral, a Constituição Federal assentou que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei (artigo 133), norma essa com ares de cláusula pétrea implícita, pois corolário dos direitos fundamentais ao contraditório e a ampla defesa nos processos judiciais e administrativos.

Prosseguindo, verbi gratia, a Lei Complementar nº 15 de 2017 do município paulista de Areias prevê que são atribuições do Procurador-Geral do Município autorizar a não interposição de recursos, considerando a natureza da matéria e o valor envolvido (artigo 8º, inciso XIV) [2]. Portanto, aqui, a regra é a interposição de recursos.

De seu turno, a Lei Complementar nº 330 de 2022 do município paulista de Santa Bárbara do Oeste prescreve competir ao Procurador-Chefe fixar normas gerais e analisar situações específicas de dispensa de interposição de recursos judiciais em matérias consolidadas (artigo 28, inciso VIII) [3]. Ou seja, caso não haja autorização da chefia do órgão, devem os procuradores recorrer, mesmo em matérias consolidadas, o que se afigura um desatino.

Tais normas, em certa medida, conflitam com o artigo 18 da Lei Federal nº 8.906/94, segundo o qual a relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia.

Destarte, o que se percebe no âmbito da Advocacia Pública é um certo açodamento quando ao tema da litigiosidade judicial, em nome da relação de hierarquia existente entre os servidores do Poder Executivo.

De seu turno, para o Supremo Tribunal Federal, a despeito do julgado se referir à Procuradoria-Geral do Estado, se aplica por simetria à Procuradoria dos Municípios, verbis:

"A Procuradoria-Geral do Estado é o órgão constitucional e permanente ao qual se confiou o exercício da advocacia (representação judicial e consultoria jurídica) do Estado-membro (CF/88, artigo 132). A parcialidade é inerente às suas funções, sendo, por isso, inadequado cogitar-se independência funcional, nos moldes da Magistratura, do Ministério Público ou da Defensoria Pública (CF/88, artigo 95, II; artigo 128, §5º, I, b; e artigo 134, §1º). A garantia da inamovibilidade é instrumental à independência funcional, sendo, dessa forma, insuscetível de extensão a uma carreira cujas funções podem envolver relativa parcialidade e afinidade de ideias, dentro da instituição e em relação à Chefia do Poder Executivo, sem prejuízo da invalidação de atos de remoção arbitrários ou caprichosos. [ADI 1.246, relator ministro Roberto Barroso, j. 11-4-2019, P, DJE de 23-5-2019]."

Outrossim, conforme escreve o Procurador Estadual Guilherme Barros sobre a independência funcional e a isenção técnica [4]:

"Em termos práticos, a ausência de independência funcional significa a necessidade de que a atuação do advogado público esteja alinhada ao planejamento e às diretrizes da chefia da Instituição. Nesse contexto, o STF entende possível a previsão de autorização prévia do Procurador-Geral do Estado para propositura de ação de improbidade administrativa."

Entretanto, o Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 85, §11, estabelece que o tribunal, ao julgar recurso, majorará os honorários fixados anteriormente levando em conta o trabalho adicional realizado em grau recursal, visando obstar a interposição de recursos com diminuta chance de êxito.

Nessa senda, o próprio procurador estadual assinala que o CPC prevê expressamente a não incidência de honorários advocatícios em caso de cumprimento de sentença em que o ente público não oferece resistência. Além disso, ressalta que:

"Por exemplo, o servidor pretende um enquadramento funcional a que julga ter direito. Judicializada a questão, se a advocacia pública identifica que houve efetivamente falha da Administração Pública, é possível (e desejável) que se reconheça a procedência do pedido, com a expedição de orientação de cumprimento voluntário da decisão judicial. Ganham todos: o servidor público que vê seu pedido atendido; o Judiciário que promove uma prestação jurisdicional célere; e o Poder Público, que cumpre seu papel de implementador de direitos e economiza no custo da condenação [5]."

Nada obstante o judicioso entendimento, caso a chefia da Instituição entenda que deva haver o esgotamento dos recursos, ainda que por jurisprudência minoritária, fica o procurador público com sua atuação limitada, em prejuízo do interesse público primário e sujeito a majoração da sucumbência.

De outro vértice, para o ministro da Suprema Corte Luís Roberto Barroso, em relação ao sentido e alcance da noção de interesse público no direito contemporâneo [6]:

"Mesmo quando não esteja em jogo um direito fundamental, o interesse público pode estar em atender adequadamente a pretensão do particular. É o que ocorre, por exemplo, no pagamento de indenização pelos danos causados por viatura da polícia a outro veículo; ou, ainda, no conserto de um buraco de rua que traz desconforto para um único estabelecimento comercial. O interesse público se realiza quando o Estado cumpre satisfatoriamente o seu papel, mesmo que em relação a um único cidadão. À vista das ideias até aqui expostas, já é possível enunciar uma constatação. O interesse público secundário — i.e., o da pessoa jurídica de direito público, o do erário  jamais desfrutará de supremacia a priori e abstrata em face do interesse particular. Se ambos entrarem em rota de colisão, caberá ao intérprete proceder à ponderação adequada, à vista dos elementos normativos e fáticos relevantes para o caso concreto. Nesse ponto, adere-se à doutrina que sustenta a necessidade de se rediscutir e dessacralizar o chamado princípio da supremacia do interesse público. Mas há uma ponte na direção da posição tradicional. O interesse público primário, consubstanciado em valores fundamentais como justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional e democrático. Deverá ele pautar todas as relações jurídicas e sociais  dos particulares entre si, deles com as pessoas de direito público e destas entre si. O interesse público primário desfruta de supremacia porque não é passível de ponderação; ele é o parâmetro da ponderação. Em suma: o interesse público primário consiste na melhor realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar ou promover."

Ora, o magistrado, de forma lapidar, deixa claro que jamais o interesse público primário poderá ser relegado a segundo plano, ainda que por determinação do Procurador-Geral, segundo entendemos, pois consubstancia viga mestra do Estado democrático de Direito (artigo 1º, da CF).

Noutra quadra, para o advogado da União Ronny Charles, discorrendo sobre as formas consensuais como instrumento de resolução de problemas da Administração Pública [7]:

"A resolução de litígios pela Administração, mesmo no ambiente extrajudicial, é uma ação legítima e necessária na atual realidade. Embora seja questionada a falta de regulamentação legal sobre tais medidas (notadamente no ambiente extrajudicial), impõe-se refletir que exigir a judicialização de todas as demandas postas ao Poder Público é algo totalmente contrário ao desenvolvimento das relações jurídicas existentes entre a Administração Pública e os administrados (…) A complexidade e o volumoso número de demandas provenientes das relações jurídicas administrativas, quando depositadas exclusivamente sobre a tutela do Judiciário, apenas entulham os cartórios de varas, prejudicando sua atuação eficiente e desprezando operosos instrumentos de resolução de litígios, como o diálogo para a construção de consensos."

Finalmente, conforme já asseveramos em outra oportunidade, "as procuradorias jurídicas não são órgãos de governo, mas órgãos de Estado, como sói ser, por exemplo, as polícias civil e federal, não sendo sua criação ato discricionário do gestor, mas vinculado, haja vista a necessidade de fiscalização interna das políticas públicas adotadas pelo governo" [8].

Portanto, as procuradorias públicas, a despeito da falta de regulamentação legal em muitas situações, devem sempre buscar a satisfação do interesse público primário, ainda que haja discordância da chefia do órgão, sob pena de deslegitimar seu papel como função essencial à justiça e órgão de Estado.

Nesse sentido é a PEC 82/2007 em trâmite na Câmara dos Deputados, a qual visa atribuir autonomia funcional e prerrogativas aos membros da Advocacia Pública.

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Referências bibliográficas
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Poder Público em juízo. 12ª ed.  Salvador: Juspodivm, 2022.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 9ª Ed.  São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

TORMENA, Celso Bruno. A obrigatoriedade de instituição do órgão de advocacia pública nos municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, nº 6881, 4 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87772. Acesso em: 15 nov. 2022.

 


[1] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Brilhantina Acesso em: 15/11/2022.

[2] Disponível em: https://www.areias.sp.gov.br/leis-municipais/ Acesso em: 15/11/2022.

[4] Poder Público em juízo. 12ª ed.  Salvador: Juspodivm, 2022, pág. 34.

[5] Op. cit. pág. 77.

[6] Curso de direito constitucional contemporâneo. 9ª ed.  São Paulo: Saraiva Educação, 2020, pág. 88.

[7] Direito Administrativo. 12ª ed. — Salvador: Juspodivm, 2022, pág. 48.

[8] A obrigatoriedade de instituição do órgão de advocacia pública nos municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, nº 6881, 4 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87772. Acesso em: 15 nov. 2022.

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