Ambiente Jurídico

Lei, mercado, desenvolvimento sustentável e as normas ambientais

Autor

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

26 de novembro de 2022, 8h00

O desenvolvimento das ações envolvendo a proteção ambiental no Brasil, que se iniciaram na década de 1980, com a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, com iniciativas governamentais para o estabelecimento de áreas protegidas e o controle de atividades poluidoras, bem como as ações regulatórias do Conselho Nacional do Meio Ambiente, todas iniciativas impulsionadas pelo poder público, criaram, em primeira mão, em terras nacionais, as bases para a construção de um modelo de país que ao mesmo tempo que se desenvolve, também conserva seus recursos naturais.

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Nos últimos 40 anos proliferou-se um arcabouço normativo vasto, entre leis, decretos, resoluções e atos regulamentares infralegais, ao que se denomina o conjunto de políticas públicas que se estabeleceram, visando cumprir o mandamento constitucional do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A par do arcabouço normativo, a cargo, nas esferas superiores, do Poder Legislativo, também foram sendo estabelecidos órgãos ambientais nas três esferas de governo, conselhos de meio ambiente, dentre outras instâncias, vinculadas ao Poder Executivo, com o objetivo de implementar a legislação de referência e dar cabo ao desafio do desenvolvimento sustentável.

Por sua vez, o Poder Judiciário incrementou varas especializadas na temática ambiental, promoveu capacitação em larga escala de juízes, estabelecendo uma forte atuação e jurisprudência em favor da causa ambiental.

Em atuação muito significativa não se pode olvidar o importante papel dos Ministérios Públicos, no mais das vezes, impulsionando o Executivo na implementação adequada das leis e provocando o Judiciário no mesmo sentido, além da sua profícua atuação na esfera da responsabilidade civil e criminal dos poluidores.

Também é preciso mencionar o papel atuante das organizações não governamentais que se inseriram de forma bastante ativa na formulação, acompanhamento e até na execução direta das políticas de meio ambiente.

Paulatinamente, as pessoas físicas e jurídicas, envolvidas na dinâmica econômica nacional e, no mais das vezes, as que utilizam recursos naturais ou executam atividades potencialmente poluidoras, vem se adequando, em maior ou menor grau, às políticas públicas ambientais estabelecidas.

Apesar de todos os esforços, contudo, ainda há questões relevantes a serem superadas, como o aumento do desmatamento, perda contínua de biodiversidade, poluição em larga escala de cursos d'água, produção de energia de matriz suja, degradação de solos, exploração insustentável de recursos naturais, dentre tantas outras questões que precisam de enfrentamento.

A lista interminável de problemas ambientais passa invariavelmente por uma análise da medida da nossa ineficiência na implementação das políticas públicas, pelos sujeitos de Estado mas, sobretudo, no campo das atividades econômicas que são os grandes promotores da degradação, ao passo em que, ao mesmo tempo, ajudam a conduzir o Brasil a um outro patamar de desenvolvimento e por conseguinte, também são responsáveis pelas melhorias da qualidade de vida da população, a eliminação da fome e da miséria e os avanços nos indicadores de saúde e desenvolvimento humano. É um fato de que a qualidade de vida está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento e este, por sua vez, está baseado, historicamente, em modelos de produção à custa dos ecossistemas naturais.

Há um fator chave nessa discussão, como elemento indissociável do debate, para o qual é preciso que se traga mais luz, pois todos os atores envolvidos precisam dar sua parcela de contribuição à promoção do desenvolvimento sustentável. Colocamos atenção aqui ao chamado "mercado".

Muito recentemente, às voltas com uma fala do presidente da República, recém-eleito, sobre o teto de gastos e as políticas sociais, houve uma reação em cadeia da bolsa de valores e os ativos financeiros, todos em queda, explicitada por meio de uma frase muito significativa que correu pela mídia nacional que foi: "o mercado está nervoso".

Imediatamente declarações foram prestadas sobre responsabilidade fiscal, nomes cogitados para posições estratégicas no novo governo foram afastados e assim, "o mercado", voltou à normalidade.

A questão que se coloca é que nunca se viu movimentos bruscos do mercado, queda de índices da bolsa de valores ou aumento do dólar quando a notícia é aumento do desmatamento ou perda de biodiversidade.

No tema ambiental, "o mercado", esse ente subjetivo, oculto e não nominável nas figuras de quem o integram, não se recente da degradação ambiental, o que é um fato. Jamais houve qualquer reação diante da realidade ambiental nacional e até mundial, ainda que estejamos envoltos em uma crise climática sem precedentes, conforme anunciou o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, na última reunião das partes, a COP27, no Egito, em que referenciou com veemência que "pessoas e comunidades em todos os lugares devem ser protegidas dos riscos imediatos e crescentes da emergência climática".

Não se ouviu falar, em qualquer canto desse planeta, em uma reação do mercado, o que nos chama a atenção ao fato de que a degradação ambiental provocada pelo uso de combustíveis fósseis como fonte de energia, pelo desmatamento para atividades econômicas, queimadas, dentre outras, está inserida como parte estruturante ou estruturada do modelo de produção, muitas vezes inclusive dentro do fator de enriquecimento, na medida em que se privatizam os lucros e se socializam os danos ambientais, ou seja, as consequências adversas ao meio ambiente não são contabilizadas nos custos da produção.

Em outras palavras, investir em sustentabilidade e em ações e medidas para reduzir a degradação ambiental na estrutura de produção, implica em redução de lucros, ao que "o mercado" costuma ser avesso.

Ademais, também é circunstancial o fato de que boa parte do sucesso de algumas políticas públicas, nos últimos anos, está ligado diretamente ao mercado. É o caso das licenças ambientais e outorgas de uso de recursos hídricos exigidas pelos bancos para a concessão de financiamentos.

De fato, o financiamento tem se mostrado como um importante instrumento de proteção ao meio ambiente quando as instituições financeiras incluem a variável ambiental em suas políticas de concessão de crédito.

Os compromissos das instituições financeiras com o tema ambiental, é importante que se diga, não nasceram espontaneamente, mas decorrem da legislação nacional, em especial o artigo 12 da Lei 6.938/81 e o artigo 2º, §4º da Lei 11.105/05, que estabelecem que as entidades e órgãos de financiamento condicionarão a aprovação de projetos ao licenciamento ambiental e demais atos autorizativos, sob pena de se tornarem corresponsáveis pelos eventuais danos ambientais decorrentes.

Nessa seara, o Poder Judiciário consolidou uma forte jurisprudência confirmando a responsabilidade solidária das instituições financeiras, quando da concessão de créditos que decorram em práticas danosas ao meio ambiente.

É possível dizer, sem medo de errar, que o envolvimento dos bancos tem sido muito mais eficaz para o licenciamento ambiental, lato sensu, do que as ações de controle, exercidas por meio da fiscalização, dos autos de infração, da responsabilidade penal e assim por diante. Isso porque, o aparelho de Estado, por mais eficiente que seja, não consegue atuar no controle de todas as atividades produtivas a tempo e a hora. Ainda encontramos milhares de atividades sendo executadas sem licenciamento ambiental, quando o financiamento não é necessário ao empreendedor.

O leitor poderá estar se perguntando, a essa altura, no que o raciocínio até aqui trazido, se relaciona com o direito, no âmbito de um artigo de âmbito jurídico.

E aqui nos deparamos com o tema da validade e da vigência normativa e seus pressupostos. A lei que tem por finalidade balizar as condutas das pessoas que vivem em comunidade para que seja possível harmonizar interesses e resultados sociais, restringindo liberdades, depende da coparticipação de todos os envolvidos, do contrário, continuaremos a ter, de forma sui generis, no Brasil, as leis que "pegam" e as leis que "não pegam".

O certo é que para uma proposição legislativa ter valor e eficácia não basta ter validade ou vigência. Precisa ser observada, cumprida e fiscalizada por todos os atingidos. É quase uma falácia, notadamente no tema do meio ambiente, em que se exige condutas propositivas em cada palmo de chão de nosso território continental, achar que o Estado é o único responsável pela efetividade dos mandamentos normativos.

Os bilhões de reais investidos na estruturação dos entes públicos para atuar nas políticas de meio ambiente, nos milhares de servidores públicos, equipamentos, processos judiciais, contraditório, ampla defesa, exercício da advocacia e por aí adiante, são todos necessários, porém, demonstram baixa eficácia quando um ator fundamental do processo produtivo, como é o mercado, não se envolve e se responsabiliza pela parte que lhe cabe.

Explico. O mercado, esse ente etérico, não é representado apenas pelas instituições financeiras. Há uma cadeia de produção estabelecida em todas as áreas e setores econômicos e que, invariavelmente, não se vê envolvida e não se responsabiliza, integrando em suas políticas, as variáveis ambientais.

Por exemplo, no mercado de veículos automotores, há uma cadeia enorme de produção que nasce com a mineração, pois todos os veículos possuem peças metálicas, avança para os plásticos, couros, combustíveis, dentre outros, que, portanto, perpassam desde o setor primário para a produção desses insumos, até fabricantes, montadoras e vendedoras.

No curso dessa enorme e significativa cadeia de produção, há exigências de caráter ambiental para a produção dos insumos, porém não há efetividade em exigências, para fabricantes, montadoras e vendedoras, por exemplo. Logo, não há rastreabilidade ambiental desses materiais e portanto, não se sabe, se o veículo que estamos usando hoje é composto por elementos sustentáveis em toda sua composição.

Será que o minério, que passou a ser um metal utilizado no veículo, veio de uma fonte ambientalmente adequada? Será que o couro que recobre a parte interna do veículo veio de uma área de produção bovina em que ocorreu o desmatamento ilegal? Será que a eficiência do motor na queima do combustível utiliza a melhor tecnologia que vise a redução das emissões de gases de efeito estufa? Será que a borracha dos pneus veio de uma exploração que respeita o meio ambiente? Será que a produção dos elementos plásticos respeitou a qualidade e disponibilidade da água para sua produção?

Essas são questões praticamente intocadas, quase tabus, porque quase não se ouve discussões a respeito da responsabilidade ambiental nas cadeias de produção. Assim, salvo honrosas e raras exceções, nascidas espontaneamente de um ou outro setor ou de iniciativas pontuais, as cadeias produtivas não se veem envolvidas com a sustentabilidade e cumprimento da legislação ambiental.

Aqui vale trazer a conhecimento alguns movimentos importantes na reconfiguração das cadeias produtivas, sob a perspectiva ambiental, que tem surgido e que merecem algumas reflexões, porque, como toda mudança, implica em consequências e num preço a se pagar.

Nesse mês de novembro, na COP27, o setor agropecuário, representado pelas 13 maiores empresas do mundo produtoras de commodities agrícolas, que estão no final da cadeia de produção, apresentaram um plano contendo suas contribuições para a redução de emissões de gases de efeito estufa, segundo mencionado, transformando compromissos, em ações efetivas.

Anunciaram a implementação da eliminação do desmatamento nas cadeias de suprimentos, no caso do Brasil, para os biomas da Amazônia, Cerrado e Pampas, para a produção de carne bovina e soja, conforme consta do documento intitulado Roteiro do Setor Agrícola 1,5°C [1].

No caso da soja, o compromisso estabelecido é de que até 2025 haverá a eliminação do desmatamento na cadeia de produção, seja o desmatamento ilegal, seja o legal, estimando-se, com essa medida, a proteção de mais de 14 milhões de hectares de terras, além daquelas já protegidas pelo Código Florestal Brasileiro. Essas áreas somadas as áreas de preservação permanente e reservas legais representam 74% do estoque total de carbono dentro das propriedades privadas no bioma Cerrado, segundo dados das empresas envolvidas. Também se propõe a verificação do cumprimento das leis de proteção florestal em todas as origens da soja.

Para tanto se propõe garantir a rastreabilidade ambiental na cadeia de produção da soja, da fazenda à mesa, apoiar a conformidade legal das propriedades rurais e expandir o envolvimento com os produtores, por meio de incentivos.

No setor pecuário, responsável por até 80% de todas as emissões de gases de efeito estufa provenientes de mudanças nas paisagens naturais no Brasil, a proposição é acabar com o desmatamento ilegal na cadeia produtiva, apresentando como data-alvo o ano de 2025 para a inexistência de desmatamento ilegal para fornecedores diretos e indiretos, na Amazônia e no Cerrado, sendo que, para a Amazônia, se utilizará a data de 01 de agosto de 2008 por desmatamento ilegal e no Cerrado, 1 de agosto de 2020 para toda a conversão de habitats. Admitir-se-á que os fornecedores adotem medidas para corrigir e remediar as não-conformidades.

Propõe-se apoiar os pecuaristas na regularização ambiental de suas propriedades e atividades agropecuárias e garantir a transição para a plena legalidade, fornecendo ainda serviços de extensão e assistência técnica aos pecuaristas para aumentar a produtividade.

Tais iniciativas das gigantes do agronegócio, para soja e pecuária, são louváveis, caso se transformem em realidade e ações efetivas e podem se constituir num salto significativo e talvez definitivo ao combate ao desmatamento ilegal na Amazônia e no Cerrado e sua consequente contribuição para o clima planetário.

Porém, como o próprio documento apresentado pelas empresas estabelece, há necessidade de um envolvimento forte com os governos nacional e subnacionais para o êxito da iniciativa.

Talvez se vislumbre aqui uma boa possibilidade para que a legislação florestal brasileira "pegue”" definitivamente. Como se vê, o desafio brasileiro quanto a eficácia das normas, vai muito além da teoria do direito, no que diz respeito a validade e vigência das leis. São necessários diálogos convergentes e auto responsabilidade de todos os atores envolvidos.

Deixamos aqui, para reflexão, as razões pelas quais a responsabilidade solidária das cadeias produtivas ainda não se tornou uma política pública, nem tampouco, jurisprudência no Brasil, no tema do clima e meio ambiente. Não terá sido falta de lei, já que os artigos 2º e 3º da Lei 9.605/98 estabelecem que “quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos, incide nas penas a estes cominadas” e as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente em razão das práticas ilícitas previstas na mesma norma.

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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