Escritos de Mulher

Nomeação do procurador-geral da República e a lista tríplice

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

23 de novembro de 2022, 18h27

A Constituição de 1988 inovou fortemente ao introduzir o capítulo IV, designando o Ministério Público entre as funções essenciais da Justiça. Deu contorno diferenciado a essa instituição na nova ordem democrática que se instalava, fixando grandes atribuições, redefinindo funções e estabelecendo um novo sistema.

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Inovou ao estabelecer que o procurador-geral da República (PGR) será nomeado pelo presidente da República entre integrantes da carreira, maiores de 35 anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução (artigo 128, § 2º, CF).

A escolha do chefe da instituição sempre teve regramento constitucional (artigo 95 da CF 1969; 138, da CF de 1967; 126 e 127, na CF de 1946; 99 da CF de 1937; 95/98 da CF de 1934 e 58 § 2º da CF de 1891), por fazer parte do núcleo do Estado.

Pois bem, de uns tempos para cá, procuradores da República, por meio de associação de classe, entenderam que a categoria teria melhores condições de fazer a indicação e, sem qualquer amparo constitucional, passam a exigir que o presidente da República nomeie o mais votado numa lista tríplice por eles criada a partir da votação de seus membros.

Querem impingir um sistema que não se compatibiliza com o regime democrático e com a forma republicana, que é a prevista na Constituição.

A ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), conforme consta de seu site, entende que deve ser usado o modelo estabelecido pela Constituição, para os Ministérios Públicos dos estados (artigo 128, § 3º, CF), que determina a elaboração de lista tríplice pelos membros ativos, que é enviada aos governadores, que ficam vinculados a um dos três nomes apresentados. Mas mesmo com essa previsão, quando a escolha não recai sobre aquele que foi mais votado, há uma enxurrada de manifestações de promotores alegando que a escolha não é democrática, como se a lista fosse vinculante e como se o poder de escolha fosse da carreira. Recordo, neste momento, que assim aconteceu com o governador de São Paulo, Mario Covas, e creio que também com o governador do Rio Grande do Sul, Olivio Dutra.

Desde 2001 a ANPR, em atenção ao clamor de seus membros, procuradores da República, passou a indicar os três que consideram os mais preparados para gerir a instituição. Desse modo passaram a apresentar uma lista ao presidente da República e exigem e se inflam quando não atendidos, acusando os presidentes de antidemocráticos, em que pese afirmar que a lista não é obrigatória. A situação é tal, que foi noticiado que a ANPR realizou pressões para que os candidatos se comprometessem com a lista, de modo que o discurso de que a lista não é vinculativa não se coaduna com a pratica e com o discurso, quando não atendidos.

Alguns presidentes acolheram e nomearam o primeiro colocado (Dilma Rousseff e Lula da Silva); outros não atenderam (Fernando Henrique Cardoso e Jair Bolsonaro) e outro nomeou componente da lista, mas não o primeiro colocado (Michel Temer).

Certamente, diante do novo desenho constitucional, os constituintes entenderam que a melhor escolha só poderia ser feita pelo presidente da República, em razão da legitimidade colhida pelos milhões de votos recebidos diretamente da população brasileira que participa das eleições, mas com crivo de outro Poder da República, o Senado, que tem em si a representação de todos os estados e do Distrito Federal, com composição temporal diversa do mandato do presidente da República, o que permite que as injunções políticas não sejam casadas.

Não é correto afirmar que tal sistema fere a independência do Ministério Público Federal, o qual, diga-se, foi altamente contemplado, pois, diferentemente da Constituição anterior, exige-se que o PGR seja escolhido dentre os membros da carreira. Ainda, há mandato, diferentemente de outros tempos da história brasileira, nos quais o PGR era demissível ad nutum. Afora a gama de atribuições fixadas na Constituição, que permitem a atuação de seus membros no mister da defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Muito além, os constituintes rechearam o MP de garantias que são próprias da magistratura, como a vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídio e, para complementar, estabeleceram vedações para que a garantia não fosse vulnerada, como a proibição de exercer atividade político partidária e exercer outras funções públicas etc. Acrescente-se a autonomia funcional e administrativa (artigo 127, §2º).

Devem ver que o prestígio almejado pela classe vem do correto exercício da função constitucional, que cada um cumpre e no respeito à Constituição.

O caráter democrático de escolha do PGR vem da Constituição. Não pode advir de uma entidade privada, com fins corporativistas, que evidentemente são importantes, mas não são guias dos interesses públicos que regem a nação.

É certo que a lealdade do PGR não é com quem o nomeia, mas com o povo brasileiro, na exata medida dos princípios estabelecidos na Constituição.

A história recente bem comprova que a nomeação pela mais alta autoridade do Executivo em nada interfere na independência. Basta observar fatos recentes no que diz respeito ao Ministério Público e ao próprio Judiciário.

Há no imaginário popular que aquele que é indicado, para um cargo do Judiciário ou do Ministério Público, fica vinculado e manietado ao presidente que o nomeou. Vale lembrar que na época da ditadura civil militar (1964/1985) foi usado o estratagema de aumento de número de cargos no Supremo Tribunal Federal com o objetivo de se obter a maioria com os novos nomeados. Mas, como sabemos, tal não ocorreu. E como dito, os fatos mais recentes, referente ao governo Dilma e Lula e tantos outros, bem mostram que essa relação fica mesmo no imaginário e não é uma relação de causa e efeito.

Por certo que é possível democratizar o sistema, mas dentro da legalidade, sem que qualquer entidade se arvore como legitimada a fazer a indicação, tal como ocorre com a lista tríplice.

É preciso pensar e refletir sobre as reais possibilidades de democratização. A título de exemplo, na Argentina, durante o governo Néstor Kirchner, o presidente expediu um decreto que abriu a oportunidade de organizações, universidades etc. se manifestarem sobre o possível indicado, dando elementos para a escolha do presidente. Também seria possível pensar na possibilidade de perguntas serem formuladas no segundo momento, na sabatina do Senado, por membros da academia, movimentos sociais, entidades de classe etc.

Enquanto não está estabelecida outra forma, qualquer exigência fora do quadro é antidemocrática, por ferir o que não foi determinado pelos constituintes, não sendo aceitável o presidente abrir mão de um poder, que a rigor não lhe pertence, mas ao povo soberano.

Não tardará para que outras listas apareçam, se esse mecanismo continuar a ser reproduzido. Não me surpreenderia se alguma associação de juízes passasse a indicar uma lista para indicação dos ministros do STF; ou que tenhamos uma lista de presidenciáveis preparada por funcionários e acionistas do Banco Central.

São estruturas de Estado, razão pela qual o constituinte entregou a enorme responsabilidade de escolha para os que têm maior legitimação popular, o presidente da República e os representantes dos estados, os senadores.

Respeitemos a Constituição e todos os cidadãos brasileiros, e não apenas uma categoria profissional.

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