Território Aduaneiro

As medidas de defesa comercial sob a ótica do Direito Aduaneiro

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

22 de novembro de 2022, 8h00

A defesa comercial é tema de elevada importância dentro do contexto do comércio internacional, possuindo relevantes consequências sobre a política comercial de cada país. Atualmente no Brasil estão vigentes 141 medidas, sendo 138 casos de direitos antidumping e três casos de medidas compensatórias, o que faz do país um dos maiores usuários desse tipo de ferramenta dentre os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC).

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Apesar disso, este continua sendo tema espinhoso e pouco tratado no universo aduaneiro nacional, o que nos motiva a utilizar a coluna de hoje para trazer alguns esclarecimentos e provocações sobre a matéria.

De início, cabe esclarecer que, diferente do que o nome sugere, as medidas de defesa comercial não são mecanismo de proteção contra a entrada de produtos estrangeiros no território nacional. Criadas no contexto do Gatt/1947, sob o qual prevalece a busca pela liberdade comercial e a redução das barreiras ao comércio, essas medidas possuem como função neutralizar práticas comercias distorcivas e predatórias, como o dumping e os subsídios, e buscando o reestabelecimento das relações comerciais internacionais de forma justa e livre de manipulações.

Neste sentido, o problema de compreensão parece estar na tradução para o português, já que nas línguas oficiais da OMC tais medidas são denominadas de forma a salientar seu caráter corretivo/reparador, como se verifica pelos termos "trade remedies" (inglês), "mesures correctives commerciales" (francês) e "medidas comerciales correctivas" (espanhol).

Assim, mesmo diante de sua aplicação indicar certa ingerência governamental sobre o comércio internacional — ainda que autorizada pelas normas multilaterais —, a finalidade jamais deverá ser o fechamento e a reserva de mercado ou o favorecimento/proteção de produtos nacionais em detrimento de seus similares importados.

A principal razão para o tema não receber o devido destaque e estudo dentro do mundo aduaneiro parece estar relacionada ao fato de que as competências relativas ao estabelecimento de medidas de defesa comercial estão fora do escopo de atuação da Receita Federal do Brasil (RFB), cabendo à Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia, por meio da Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCom) realizar as investigações de práticas desleais e à Câmara de Comércio Exterior (Camex) a decisão sobre a aplicação das medidas.

Conforme estabelecem o Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009) e as normas específicas que regulamentam os procedimentos de investigação e aplicação de medidas antidumping e compensatórias, Decretos nº 8.058/2013 e 10.839/2021, a competência reservada à aduana, na figura na RFB, se restringe ao recolhimento dos valores referentes às medidas impostas, à imposição e à cobrança de eventuais garantias e às restituições que se façam necessárias. Trata-se, portanto, de função bastante procedimental e que destoa das demais questões aduaneiras, em que a RFB possui competências amplas e que incluem a concepção e a implementação de normas e regras sobre o comércio exterior.

A restrição da competência da aduana à arrecadação das medidas de defesa comercial possui diversos reflexos, os quais precisam ser avaliados de forma cuidadosa, visto que eventuais trasbordamentos levam a conflitos de competência e autuações sem fundamentação adequada. Dentre os pontos relevantes, destaca-se: (1) natureza não tributária das medidas de defesa comercial; (2) o tratamento administrativo na importação de bens sujeitos à medidas de defesa comercial não é determinado pela classificação da mercadoria; (3) o escopo de aplicação da medida não está aberto à interpretação no momento do despacho aduaneiro; e (4) eventuais fraudes e evasões das medidas em vigor precisam ser endereçadas por meio de procedimento específico no âmbito da SDCom, não cabendo resolução por meio de processo administrativo fiscal.

Quanto à natureza das medidas de defesa comercial, a Solução de Divergência Cosit nº 7/2015 sedimentou entendimento de que se tratam de medidas administrativo-regulatórias e não tributárias, visto que possuem como função específica a neutralização de práticas desleais de comércio que afetem a indústria nacional. No mesmo sentido, o Carf já pacificou essa separação sob o fundamento de que as medidas em questão não se enquadram em quaisquer das espécies de tributos previstas no ordenamento jurídico pátrio, não se submetem ao princípio da legalidade nos termos do artigo 130, I da CF e do artigo 3º do CTN, além de possuir destinação orçamentária diversa. Como consequência, os valores recolhidos a título de medidas de defesa comercial necessitam ser precisamente destacados, em campo próprio, na declaração de importação, com comprovação do respectivo recolhimento [1].

Dentre as consequências desse entendimento, tem-se a aplicação do voto de qualidade como método de desempate de votação nos julgamentos administrativos sobre a matéria no âmbito do Carf, por força do que dispõe a Portaria ME nº 260/2020.

Quanto à forma de determinação do escopo das medidas de defesa comercial, diferente dos demais temas aduaneiros — cuja regra geral é a utilização da classificação das mercadorias para determinação do tratamento administrativo aplicável —, esta se dá por meio da descrição das mesmas, cabendo a análise das características essenciais do produto para fins de verificação sobre a incidência ou não de direitos, independente da classificação em que a mesma se enquadre.

Obviamente, por razões de celeridade e organização procedimental, a classificação da mercadoria é utilizada como um indicativo para auxiliar os sujeitos passivos e a fiscalização quanto ao tratamento administrativo correto, ainda que a utilização de determinada NCM não possa, por si só, ensejar qualquer tipo de imposição ou cobrança à título de defesa comercial.

Portanto, o escopo das medidas ser determinado a partir da descrição objetiva de características e aplicações do produto importado, o qual é determinado por meio de Resoluções da Camex publicadas em diário oficial a partir da constatação de quais são os produtos similares nacionais que estariam sofrendo danos decorrentes da prática desleal estrangeira. Em razão disso, não cabe à RFB, enquanto autoridade responsável unicamente pelo recolhimento dos direitos, realizar qualquer tipo de interpretação sobre a extensão do escopo no curso do despacho ou em sede de revisão aduaneira.

Esse talvez seja um dos pontos mais controvertidos da prática aduaneira atual. Isto porque não raramente a fiscalização se depara com situações que desafiam a própria lógica sobre a qual a aduana costuma operar. Por exemplo, o procedimento padrão da fiscalização é aplicar as regras gerais de interpretação do sistema harmonizado (RGI) e as notas explicativas (NESH) para determinar as regras incidentes sobre determinada importação, visto que os tratamentos administrativos e aduaneiros costumam ser designados em razão da classificação da mercadoria. Por outro lado, isto não pode ser utilizado nos casos de defesa comercial. Ainda que um importador indique classificação incorreta da mercadoria, a detecção do erro pela fiscalização não enseja a imediata aplicação de direitos antidumping ou de medidas compensatórias, apenas de uma eventual multa por erro de classificação.

Mais especificamente, essa constatação implica no fato de que a fiscalização não poderia se valer de regras de classificação para aplicar medidas de defesa comercial a situações de mercadorias inacabadas, ainda que já possuam características essenciais ou a matérias que possuam misturas diversas, ainda que os demais elementos não comprometam sua função e apresentação — situações que nas regras aduaneiras gerais, e com base no sistema harmonizado, ensejariam na aplicação do tratamento conferido à classificação do bem acabado ou puro, respectivamente [2].

Para fins de medidas de defesa comercial, poderá haver a cobrança de direitos antidumping ou medidas compensatórias apenas sobre aquelas importações cuja descrição do produto seja compatível com aquela expressamente contida na resolução que os ampara, não havendo espaço para interpretação do agente sob o caso concreto [3].

Sobre essa questão, importa frisar que existe, dentro da competência da Secex/SDCOM, procedimento específico para esclarecimento de quais produtos estão sujeitos a determinada medida de defesa comercial. Trata-se da avaliação de escopo, procedimento previsto no Decreto nº 8.058/2013 e que visa garantir a todos as partes interessadas o acesso a esclarecimentos sobre a aplicação ou não da medida a produto específico. Todavia, ainda a ferramenta seja constantemente utilizada por importadores e interessados, chama a atenção o fato de que não é comum sua utilização por parte da fiscalização.

Por fim, o último ponto, e que decorre dos anteriores, se refere à existência de procedimentos específicos para que a evasão das medidas de defesa comercial seja contida. Nos casos aduaneiro-tributários em geral, a constatação de que houve algum tipo de fraude do importador com a finalidade de furtar-se do pagamento do tributo ou da submissão a tratamento administrativo específico já seria suficiente para ensejar o lançamento de multa e da cobrança dos valores devidos.

Por outro lado, no caso da defesa comercial, ainda que a fraude em si possa ser penalizada pela autoridade aduaneira por prestação de informação incorreta, prejuízo ao controle aduaneiro ou classificação incorreta, a identificação da fraude, por si só, pode não ser suficiente para a cobrança dos direitos no caso concreto.

Para ilustrar a situação vale utilizar o exemplo da triangulação. Essa prática normalmente ocorre por meio do desvio da mercadoria por um terceiro país antes da chegada ao destino, como forma de "mascarar" a sua real origem. Em alguns casos, pequenos procedimentos que não configuram industrialização e não modificam a natureza da mercadoria podem ser utilizados para evitar desconfianças, como montagem, porcionamento ou acondicionamento. Essa situação caracteriza a chamada circunvenção e, por mais que seja prática elisiva a ser combatida, somente ensejará a aplicação de direitos após a autoridade investigadora realizar procedimento específico chamado de revisão anticircunvenção e que a recomendação para extensão da aplicação da medida às importações do terceiro país seja acatada e publicada pela Camex.

Um dos casos conhecidos de circunvenção ocorridos no Brasil diz respeito às importações de cobertores de fibras sintéticas. Após a imposição de medidas antidumping sobre os cobertores importados da China, em 2010, identificou-se que os produtores passaram a realizar triangulação via Paraguai e Uruguai, onde os produtos passavam por transformação marginal, apenas para tentar evitar desconfianças quanto à origem. Diante da verificação e investigação da prática elisiva, os direitos antidumping vigentes sobre importações da China foram estendidos para as importações desses dois novos países por meio de decisão específica publicada em 2012 pela Camex [4].

Outro caso célebre se refere às importações de laminados planos (chapas grossas) de ferro ou aço não ligado da China. Após a publicação de direitos antidumping em 2013, os exportadores passaram a realizar pequenas alterações no produto com o objetivo de fugir do escopo da medida vigente e evitar a cobrança dos direitos nas importações do Brasil. Com a verificação das práticas elisivas, investigações e extensões da medida vigente foram realizadas, o que motivou novas mudanças pelo produtor chinês na tentativa de continuar elidindo a aplicação dos direitos antidumping. Ao final, foi necessário realizar cinco procedimentos de anticircunvenção, os quais levaram a extensão da aplicação da medida às chapas grossas em bobinas, pintadas e adicionadas de boro, cromo ou titânio [5].

Como se verifica pelos pontos e exemplos trazidos acima, a defesa comercial é tema complexo e que possui tratamento e procedimentos próprios, os quais necessitam ser conhecidos e respeitados.

A impossibilidade de alargamentos na aplicação desses direitos no curso do despacho ou por meio de mera interpretação do caso concreto deriva da própria lógica das normas da OMC, em que barreiras ao comércio são combatidas e intervenções dos governos no comércio exterior, para além do imposto de importação, devem ser realizadas de forma excepcional e justificada.

Não obstante, o que se verifica no Brasil é que a defesa comercial ainda é tema restrito a pequenos grupos de estudiosos do direito do comércio internacional especializados no Direito da OMC, de forma que empresas, advogados e auditores-fiscais que atuam no dia-a-dia do comércio exterior acabam por desconhecer como tais procedimentos são realizados e as razões que embasam a aplicação das medidas, situação que, não raramente, leva a problemas de interpretação e aplicação de direitos antidumping e medidas compensatórias.

No âmbito do Carf a situação não é muito diferente. Além do número de conselheiros que possuem intimidade com a matéria ser ínfimo, a ausência de turmas especializadas em comércio exterior e o excesso de processos que são levados ao judiciário de forma concomitante faz com que não haja muito espaço para um maior amadurecimento do tema, sendo o número de julgados relevantes sobe a matéria bastante reduzido.

A despeito das preocupações que a situação gera, verifica-se que os desafios relativos à defesa comercial no universo aduaneiro podem ser enfrentados e superados com iniciativas relativamente simples, como o incentivo às empresas para que busquem advogados especializados nas defesas dos casos no CARF; o investimento em formação e atualização de fiscais e julgadores sobre as normas aplicáveis; a intensificação no diálogo entre Secex, Camex e RFB; e a criação de turmas aduaneiras no Carf. O curioso é que esta última alternativa, apesar de ser a mais complexa, parece ser a que está mais próxima de ser implementada, o que apenas reforça a necessidade de que esforços públicos e privados sejam empreendidos para a popularização e tratamento adequado da defesa comercial em âmbito aduaneiro.

 


[1] CARF. Acórdão n. 3402-004.830 no Processo nº 10120.001882/200701. Cons. rel. Thais De Laurentiis Galkowicz. Dj 29/1/2018.

[2] A este respeito, ressalta-se caso concreto relevante que precisou ser resolvido por meio de esclarecimento formal da Camex por meio da Resolução nº 50/2016, visto que soluções de consulta realizadas pela RFB estavam sendo utilizadas para evitar a cobrança de direitos antidumping sobre tecidos de felpa longa de fibras sintéticas.

[3] Sobre o tema, convido o leitor a conhecer voto vencedor proferido no Acórdão Carf nº 3401-008.760 de 24/2/2021.

[4] Resolução Camex nº 12/2012

[5] Resoluções Camex nº 82/2015, 119/2015, 2/2016 e 8/2017.

Autores

  • é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

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