Paradoxo da Corte

Financiamento de demandas e limites do dever de revelação

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

22 de novembro de 2022, 8h00

Para o desenvolvimento desse tema é importante deixar claro que o custeio por um terceiro das despesas de um processo judicial nada tem de novo!

Spacca
Lembro que no antigo direito romano do período formular, o vindex, parente ou amigo da parte que litigava, apresentava-se diante do pretor para garantir não apenas o comparecimento do litigante em juízo, como ainda o pagamento das despesas processuais.

Em época medieval, nota-se que no âmbito do direito francês, muitos senhores feudais suportavam o custo do duelo e, mais tarde, do processo judicial, em troca de alguma parcela da vantagem que então era obtida pela parte assistida (v., a respeito, Loïc Cadiet, Itinéraires d’histoire de la procédure civile, Paris, IRJS, 2014, página 54 e segs.).

Esta situação que, à evidência, não configurava qualquer ilícito também vai se verificar na tradição lusitana do direito processual brasileiro, como se infere de forma muito clara das Ordenações Filipinas, pelo comportamento dos fidalgos em relação aos seus subordinados que não tinham condições materiais para litigar em juízo (cf. Antonio Manuel Hespanha, Poder e instituições na Europa do Antigo Regime, Lisboa, Gulbenkian, 1984, página 322).

No Brasil, como a praxe do foro demonstra, seja em tempos de outrora, seja no presente, a existência de financiamento informal dos ônus da demanda desponta deveras comum, por exemplo, pelo parente que custeia o processo de inventário de seu irmão falecido, para auxiliar a família de seus sobrinhos; ou pelos avôs que, na esfera do direito de família, arcam com os custos de processos judiciais de interesse de seus netos.

Trata-se, como claramente se observa, de uma forma providencial de garantir o acesso à Justiça a pessoas que, em princípio, não têm condições de contratar um advogado e suportar as despesas processuais.

Num importante livro escrito por Walther Habscheid, dedicado à comparação de modelos processuais, aborda ele o financiamento legal de demandas no sistema do common law, afirmando que tal mecanismo, a um só tempo, abre o acesso aos tribunais e constitui complemento da garantia do devido processo legal (Introduzione al diritto processuale civile comparato, Rimini, Maggioli, 1985, página 83).

Ademais, embora a prática seja mal-vista pela perspectiva da ética profissional, há bancas de advocacia que se associam à sorte da demanda, adiantando todas as custas do processo, para, em contrapartida, receber considerável percentual  quota litis  pelo sucesso alcançado.

E, nesse contexto, pouco importa se a estipulação entre os sujeitos contratantes é formalizada em caráter gratuito ou oneroso, até porque tal acerto interessa exclusivamente às partes envolvidas, vale dizer, o terceiro que responde pelas exigências financeiras do processo e o litigante beneficiado. A mais ninguém!

Cumpre-me outrossim deixar claro que não há, em nosso ordenamento jurídico, qualquer óbice legal a essa modalidade de contratar.

É de ter-se também presente que, no Brasil, há pelo menos três décadas existem fundos de investimento ou empresas especializadas focadas precipuamente no êxito de processos judiciais, ficando na posição de terceiros, estranhos ao litígio, ou mesmo ingressando nos autos, na condição de cessionários da posição processual do cedente. As empresas de financiamento legal fornecem um adiantamento aos litigantes em troca de uma porcentagem do benefício advindo da sentença de procedência do pedido ou de eventual transação. Apesar de alguma semelhança com um mútuo, o financiamento legal funciona, a rigor, de um modo diferente de um empréstimo. O financiamento de litígios geralmente não é considerado um empréstimo, mas sim uma forma de investimento com risco calculado.

O mercado brasileiro oferece inúmeros fundos de investimento, cujo objetivo é exatamente o de investir em processos judiciais pendentes, bem como na aquisição de respectivos direitos creditórios.

É correto afirmar que, nestes casos, o negócio entabulado com uma das partes não propicia, de forma alguma, qualquer alteração na legitimidade ad causam do litigante que recebe o financiamento.

Jamais, ao que se sabe, foi questionada a legalidade do escopo social de tais entidades financeiras, sendo de todo irrelevante a quantidade de demandas por elas financiada!

Saliente-se que se os contratantes desejarem manter sigilo acerca dos termos e pormenores que entre eles ficou acertado, não se pode admitir a ingerência de quem quer que seja. Tratando-se de sujeitos de direito capazes, da licitude da pactuação e da disponibilidade do objeto contratado, não se revela qualquer interesse maior em detrimento da confidencialidade por eles assentada.

Todavia, em particular, na esfera do processo arbitral, uma vez noticiada a existência de financiamento por terceiro, torna-se necessária a revelação de quem é o financiador. A razão do duty of disclosure nessa situação decorre da própria estrutura da arbitragem, em que os árbitros em regra são indicados pelas partes. Assim, para evitar eventual conflito de interesses que possa comprometer a independência e a imparcialidade dos árbitros, delineia-se imperioso que o tribunal arbitral tome conhecimento da identidade do terceiro que se dispôs a suportar os custos do processo arbitral (v., a propósito, com mais detalhes, Marcelo Roberto Ferro, O financiamento de arbitragens por terceiro e a independência do árbitro, na obra coletiva Direito empresarial e outros estudos de direito em homenagem ao Professor José Alexandre Tavares Guerreiro, São Paulo, Quartier Latin, 2013, p. 624 ss; Marcel C. Engholm Cardoso, Arbitragem e financiamento por terceiros, São Paulo, Almedina, 2020).

Ressalte-se no entanto que, em minha opinião, basta a revelação pela parte financiada, não sendo à evidência necessário que traga aos autos da arbitragem os termos do negócio jurídico formalizado entre ela e o financiador. Como bem conclui Bruno Barreto de Azevedo Teixeira, "é bem razoável exigir da parte financiada a revelação da existência do financiamento, seja para garantir a manutenção da independência e imparcialidade do tribunal arbitral, seja para permitir uma decisão informada sobre a antecipação de despesas. No entanto, a exigência de revelação das condições do financiamento pode ser um ônus extremamente pesado não apenas para a parte financiada, mas igualmente para o mercado de financiamento de disputas por terceiros. Exigir que a parte financiada revele as condições do financiamento é uma medida até certo ponto bastante drástica. Sim, porque estes contratos, em geral, são confidenciais. Não é incomum que haja a aplicação de penalidades contratuais em caso de violação da confidencialidade destes tipos de acordos". (O financiamento da arbitragem por terceiros e o dever de revelação, cbar.org.br/site  acesso 17.11.2022).

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