Defesa da Concorrência

Brave New World, Cade e colusão algorítmica: descoberta e desassossego

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21 de novembro de 2022, 16h52

"Beauty's attractive, and we don't want people to be attracted by old things. We want them to like the new ones."
Brave New World, Aldous Huxley

 

Spacca
No último sábado (19/11), encerrou-se a segunda edição do "Wicade — Competição de Direito Concorrencial", com a equipe da Universidade de Brasília (UnB) tendo se sagrado campeã em disputa final emocionante com a equipe da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O Wicade é um evento anual realizado por meio de uma parceria entre a rede Women in Antitrust (WIA) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

O objetivo da competição é promover e difundir o estudo de Direito Concorrencial entre estudantes universitários brasileiros, bem como fornecer-lhes uma experiência prática, por meio do julgamento simulado de um caso concreto fictício, incentivando, dessa forma, o aprimoramento de futuros profissionais da área antitruste. Referida competição, vencida pela UnB, concluiu longo processo, após semanas e meses, de eliminatórias escritas e orais acirradas entre excelentes equipes de todo o país.

Para os fins deste texto, interessa, sobretudo, qual era o objeto e sobre qual assunto versava o caso concreto fictício de Bodega Bay, jurisdição inventada para tal simulação: provavelmente do futuro do combate a condutas anticompetitivas em algum Brave New World ou, dito de modo mais direto, de apuração relacionada à existência e uso, por empresas diversas dos setores de transporte de passageiros e de cargas e venda online de passagens em Bodega Bay, de algoritmos de precificação para o monitoramento dos preços das passagens oferecidas das possíveis concorrentes, com o objetivo de maximizar lucros e aumentar a participação de mercado das empresas Arara Azul, Beija-flor e Calopsita. O caso, em si, mereceria outro texto nesta coluna, mas o principal elemento aqui consiste, justamente, em se questionar o que de Bodega Bay reflete nosso atual debate relacionado àquilo que se convencionou denominar, nacional e internacionalmente, como colusão algorítmica.

As possibilidades atuais de coletar e processar grandes quantidades de dados são vastas e estão presentes em diversos mercados. Em uma economia digitalizada, o uso de algoritmos (programas de software), inteligência artificial e big data se tornaram instrumentos-chave (ou, quem sabe, imprescindíveis) para o sucesso empresarial. De um lado, há o potencial de gerar efeitos positivos no bem-estar do consumidor, promovendo inovações e eficiências na atuação das empresas. E, por outro lado, os algoritmos podem fomentar o conluio tácito, condicionar negativamente a escolha do consumidor ou gerar vantagens competitivas ilegais por meio do exercício abusivo de posição dominante.

Dessa forma, algumas questões preliminares permanecem em aberto. Na relação entre algoritmos e concorrência, (1) não são claras as fronteiras entre o legal e o anticompetitivo, assim como (2) não são evidentes de que modo e por quais meios os novos desafios gerados pela era digital podem ser abordados dentro do arcabouço e expertise tradicionais da defesa da concorrência. Ou, ainda, (3) se novos ferramentais legais, como uma regulação focada em algoritmos, devam ser considerados para tal incumbência.

Nesse sentido, conforme Schwalbe (2018), se, por um lado, o uso generalizado de algoritmos pode mudar as condições estruturais do mercado em favor de um possível conluio, por outro lado, os algoritmos podem igualmente aumentar a pressão competitiva em determinado segmento, sendo que a questão depende da investigação do caso concreto. Assim, ao se examinar eventuais implicações da colusão algorítmica para a concorrência, é importante diferenciar formas de sua implementação. Schwalbe (2018) argumenta que os algoritmos podem não apenas alterar as condições estruturais do mercado, mas, também, ser empregados diretamente para facilitar o conluio, ou seja, os algoritmos podem ser considerados um "dispositivo de facilitação do conluio". Nesse caso, os algoritmos são usados como um instrumento adicional para coordenação.

Por conseguinte, um dos principais riscos do uso dos algoritmos como "dispositivos facilitadores do conluio" é que eles podem aumentar a área cinzenta entre a colusão expressa ilegal e a colusão tácita legal, permitindo que as empresas mantenham lucros acima do nível competitivo mais facilmente, sem necessariamente terem de entrar em acordo. Assim, em situações em que a colusão só poderia ser implementada usando a comunicação expressa entre os concorrentes, os algoritmos criaram novos mecanismos que facilitam a implementação de uma política comum e o monitoramento do comportamento dos demais concorrentes, até mesmo, ao menos potencialmente, sem a necessidade de interação humana. Isto é, os algoritmos podem permitir que empresas substituam a colusão expressa pela colusão tácita e, em algumas situações, caso a colusão seja alcançada pelo seu uso sem um acordo expresso ou uma comunicação direta entre concorrentes, há chances de que fique de fora do escopo e da fiscalização pelos órgãos antitruste.

Diante disso, Ezrachi e Stucke (2016) analisaram os vários níveis de desenvolvimento tecnológico e o uso dos algoritmos e verificaram os diferentes desafios a serem enfrentados pelos órgãos antitruste e as possíveis formas de colusão em razão do uso dos algoritmos. Assim, sumarizam suas investigações em quatro formas que podem, ao menos potencialmente, resultar em colusão algorítmica: (1) Mensageiro ("Messenger"); (2) Hub-and-Spoke; (3) Agente Previsível ("Predictable Agent"); e (4) Máquina Autônoma ("Autonomous Machine"). Cada qual, por certo, com características e desafios próprios em relação à sua caracterização, detecção e punição pelos órgãos antitruste.

No Brasil, existem já alguns casos envolvendo o uso de algoritmos de precificação. No entanto, em todos os casos, os algoritmos foram implantados pelas partes para facilitar seu acordo para conspirar e agir de forma anticompetitiva e, portanto, podem ser considerados como violações à lei antitruste brasileira Resende (2021a). Indica-se aqui três, em ordem cronológica, com seu desfecho já definitivo no âmbito do Cade em que, como se segue, é possível observar que poderiam ser enquadrados sobretudo nos tipos "1" e "2" (e. g., mensageiro e hub-and-spoke) de colusão algorítmica descritos por Ezrachi e Stucke (2016). Contudo, ressalta-se que há processos administrativos diversos, atualmente em tramitação pelo Cade, que não serão abordados por estarem ainda em instrução.

Primeiro, cita-se o Processo Administrativo (PA) nº 08012.000677/1999-70 ("Caso ATPCO"). Em agosto de 1999, vários jornais denunciaram que  cinco dias após o encontro dos presidentes das quatro maiores linhas aéreas do Brasil (Varig, TAM, Transbrasil e VASP), os preços das passagens do trecho Rio-São Paulo aumentaram simultaneamente em 10%. Assim, referido PA foi instaurado em 28/3/2000 com o objetivo de apurar possível formação de cartel por parte das empresas aéreas representadas, em virtude da prática de aumentos simultâneos nos preços das suas passagens aéreas em 1999.

A investigação da Seae concluiu que a mudança de preço não foi meramente um caso de paralelismo consciente. Além do encontro dos executivos das empresas, provas revelaram que dados tarifários foram trocados entre as companhias por meio de publicações no Sistema ATPCO, o sistema de dados tarifários de linhas aéreas mantido pela Airline Tariff Publishing Company (ATPCO). Uma companhia poderia inserir uma notificação de mudança de tarifa para que, por um período inicial de 3 (três) dias, a mudança pudesse ser vista apenas pelas outras companhias aéreas, e não pelos consumidores ou pelas agências de viagem. A empresa que tivesse notificado a mudança poderia então voltar atrás caso os concorrentes não a acompanhassem. Referida característica do Sistema ATPCO havia sido contestada anteriormente pelo Departamento de Justiça dos EUA, mas as modificações no sistema, decorrentes daquele caso, foram implementados somente nos Estados Unidos.

Assim, em setembro de 2004, o Cade determinou que as quatro companhias haviam entrado em conluio para aumentar as tarifas. Dentre outras cominações, cada empresa foi multada em 1% de seu faturamento proveniente da rota afetada em 1999 e foi proibida de fixar tarifas e de publicar previamente ajustes de tarifas. Por fim, em 23/3/2005, foi celebrado Termo de Compromisso de Cessação (TCC) entre Cade e ATPCO, com conteúdo semelhante ao firmado nos Estados Unidos e no qual a empresa se comprometeu a não utilizar ferramentas que facilitem a pronta troca de informações entre concorrentes.

Segundo, menciona-se o PA nº 08012.011791/2010-56 ("Caso Adesbo"). Em 2016, o Tribunal do Cade julgou e condenou pela prática de cartel, entre 2002 e 2011, uma série de empresas do mercado de autoescolas e despachantes no município de Santa Bárbara D'Oeste/SP, bem como da Associação dos Despachantes e Autoescolas de Santa Bárbara D'Oeste ("Adesbo") e da Criar Prestadora de Serviços Internet Ltda. ("Criar"), empresa de software.

A Adesbo e a Criar lideraram um sofisticado acordo anticompetitivo, que não somente buscava dividir o mercado, como também uniformizava os preços, controlava a entrada de novos participantes e exercia poder coercitivo — direto ou indireto — sobre os participantes do cartel. O cartel se desenrolou a partir da contratação da Criar pela Adesbo para que fosse desenvolvido o Sistema de Controle de Matrículas (SCM), a fim de distribuir equitativamente os clientes que pretendiam obter serviços referentes a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) para a realização de exames médicos e psicológicos.

Entretanto, a Adesbo passou a se utilizar do sistema encomendado à empresa Criar — que concordou previamente em entregá-lo em termos contratuais — para realizar a distribuição de alunos entre as autoescolas e despachantes, ou seja, dividir o mercado, compartilhar informações sensíveis e pessoais sobre os clientes com os participantes do mercado, emitir boletos e vias de pagamento dos serviços, a partir dos preços acordados, editar inúmeras tabelas de preços que eram combinadas com as autoescolas e despachantes, criar barreiras à entrada no mercado, ao estabelecer termos e condições de participação que impunha sanções aos participantes que não aderissem ao sistema SCM e às combinações de preços e, por fim, a praticar uma conduta de "regulador" daquele mercado em razão da sofisticação e abrangência do monitoramento do sistema.

Por fim, aduz-se a Consulta nº 08700.002055/2021-10 ("Caso Ipiranga"). Em 30/6/2021, o Tribunal do Cade analisou Consulta formulada pela Ipiranga Produtos de Petróleo S.A. ("Ipiranga") e se manifestou, por unanimidade, pela presunção de licitude da então nova política de negociação de preços com revendedores de combustíveis da sua rede.

Referida nova política tinha como objeto a implementação de um sistema de precificação inteligente, com uso de algoritmos, para negociação com revendedores de sua bandeira, a partir da adoção de estratégia de sugestão individual de preço máximo de combustíveis líquidos no varejo. Assim, especificou-se, naquela oportunidade, quais seriam as principais conclusões e presunções sobre a prática analisada desde a ótica de seus efeitos.

Em vista disso, destacou-se a importância da política da Ipiranga ser unilateral e aplicada como uma sugestão de preços máximos (e não mínimos) de revenda. Ressaltou-se também que as preocupações concorrenciais seriam dirimidas diante do caráter não impositivo dos preços, bem como do fato de tratar-se de política individualizada para cada posto revendedor. Ainda, foi imposto pelo tribunal que o sistema deveria permanecer sendo único e exclusivo da Ipiranga, assim como a base de dados utilizada. Ao fim, estipulou-se, em face dos possíveis efeitos adversos imprevisíveis e por tal questão não ser pacificada na jurisprudência, o período de vinculação da consulta ao prazo de tão somente dois anos.

Em conclusão, conforme ressalta Resende (2021b), bem como foi possível observar no breve périplo supracitado em relação às manifestações do Cade sobre o assunto ao longo de quase duas décadas, verifica-se que a adoção de inteligência artificial para fins de precificação pode potencializar a implementação de práticas colusivas. Tais julgados trazem à tona discussões que até ontem eram abstratas e teóricas e que, nos termos de Assad et al. (2020), proximamente exigirão investigações e julgamentos à luz dos fatos e das legislações vigentes. As autoridades antitruste mundiais, e também a brasileira, devem permanecer vigilantes e continuar o aprofundamento do tema como têm feito em diversos fóruns nacionais e internacionais e por meio de suas investigações e estudos técnicos. Nesse sentido, espaços como o Wicade e o caso fictício elaborado para a simulação são cada vez mais indispensáveis em nosso Brave New World de descoberta e de desassossego.


BIBLIOGRAFIA:

ASSAD, S., Clark, R., ERSHOV, D., and Xu, L. (2020). Algorithmic Pricing and Competition: Empirical Evidence from the German Retail Gasoline Market. CESifo Working Paper, No. 8521. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3682021 . Acesso em 15 nov. 2022.

EZRACHI, A., STUCKE, M. (2016). Virtual Competition, Harvard University Press, Harvard, MA.

NORMANN, Hans-Theo and STERNBERG, Martin. Human-Algorithm Interaction: Algorithmic Pricing in Hybrid Laboratory Markets (April 13, 2022). MPI Collective Goods Discussion Paper, No. 2021/11, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3840789 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3840789. Acesso em: 15 nov. 2022.

RESENDE, Guilherme M.. Algorithmic Collusion: Competition Implications and Anticompetitive Evidence in Brazil. Competition Policy International (CPI), 10 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/algorithmic-collusion-competition-implications-and-anticompetitive-evidence-in-brazil/. Acesso em: 16 nov. 2022.

RESENDE, Guilherme M. Precificação e colusão algorítmica: evidências e implicações para concorrência. Consultor Jurídico, 28 de maio de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-28/defesa-concorrencia-precificacao-colusao-algoritmica-evidencias-implicacoes-concorrencia. Acesso em: 14 jul. 2021.

SCHWALBE, U. (2018). Algorithms, machine learning, and collusion. Journal of Competition Law & Economics: 14, Issue 4: 568–607. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3232631. Acesso em: 15 nov. 2022.

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