Observatório Constitucional

Por um Direito Constitucional antidiscriminatório e antirracista

Autores

  • Nahomi Helena de Santana

    é graduada e mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná pós-graduanda em Direito Eleitoral pela PUC-Minas e integrante do Nesidh e do CCons.

  • Yago Paiva Pereira

    é advogado graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) pós-graduando em Direito Público membro do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (Nesidh) da UFPR e bolsista do Afro-Latin American Research Institute da Universidade Harvard.

  • Melina Girardi Fachin

    é professora associada da Universidade Federal do Paraná (com estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra no Instituto de Direitos Humanos e Democracia) doutora em Direito Constitucional (com ênfase em direitos humanos) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo visiting researcher da Harvard Law School (2011) mestre em Direitos Humanos pela PUC-SP bacharel em Direito pela UFPR e advogada sócia de Fachin Advogados Associados.

19 de novembro de 2022, 8h00

Esta coluna que se entrega às vésperas do Dia da Consciência Negra não poderia prescindir de reflexão sobre o tema. Diante da premência desta discussão, reconhecendo serem os temas do racismo e da discriminação racial endêmicos em nossa realidade nacional, apresentamos aqui algumas ideias que têm permeado pesquisas comprometidas com a construção de um direito constitucional antidiscriminatório e antirracista no âmbito dos programas de graduação e pós-graduação em direito na Universidade Federal do Paraná [1]. Foi no espaço acadêmico da Faculdade de Direito da UFPR que, em lançamento recente do manual de educação jurídica antirracista de autoria de Adilson José Moreira, Phillipe de Oliveira Almeida e Wallace Corbo [2], tornou-se ensurdecedor o silêncio majoritário existente no nosso pensamento constitucional — e consequentemente nas salas de aula — sobre justiça racial.

Em uma conjuntura racista e violenta como a nossa [3], faz-se necessário que o Direito Constitucional e seu ensino sejam comprometidos com um pensamento antirracista e transformador para a construção de uma sociedade mais justa — ou menos injusta — e, inclusive, mais responsiva ao corpo discente diverso que vem enriquecendo a paisagem acadêmica do direito.

Não podemos mais pensar no Direito Constitucional e seu ensino descomprometidos de uma postura antidiscriminatória e antirracista. Além de ser um imperativo ético, é cumprimento do postulado constitucional da igualdade, inclusive com o reforço recente da internalização, em parâmetro de equivalência às emendas constitucionais (artigo 5º, §. 3º CF), da Convenção Interamericana contra o Racismo, Desigualdade Racial e outras formas de intolerância.

Neste sentido, o artigo delineia, em um primeiro momento, as balizas do direito antidiscriminatório e sua conexão com os fundamentos próprios do direito constitucional. Na sequência, a título de concretização do que se alega, trabalhamos com a ADPF 635 para ilustrar como as lentes do direito antidiscriminatório e do antirracismo podem alterar substancialmente a mirada sobre problemas constitucionais para, por fim, destacar a necessidade de reaprender o direito constitucional em bases necessariamente comprometidas com a igualdade substancial.

I- A construção de um pensamento jurídico antidiscriminatório e antirracista
É certo que o direito antidiscriminatório não é uma disciplina independente. Não possui um código próprio ou abrangência apartada. Ele consiste em interpretar e aplicar o direito de modo comprometido com os preceitos constitucionais e de direitos humanos, o que inevitavelmente se entrelaça, costura, amarra, dá e desata nós em todas as matérias, não apenas no direito constitucional. Em todas as searas jurídicas, a relação da norma com os sujeitos foi construída e tem sido reiterada por uma hermenêutica estruturalmente discriminatória, sob a pretensão de uma neutralidade e de um sujeito universal ilusório.

Essa compreensão é um dever difícil e necessário. O incômodo de olhar para si e para as instituições de maneira concreta, afastando a prática de terceirização do intérprete e questionando as imparcialidades presumidas é por si só transformador da realidade. Exige-nos sinceridade, crítica e, sobretudo, um comprometimento com o projeto de sociedade enunciado na Constituição.

Os primeiros pontos a serem questionados são o universalismo, a neutralidade e o individualismo. A aplicação da norma a todos e todas, sem distinção, foi ensinada e é repetida como sinônimo de justiça. Contudo, ela invisibiliza diferenças entre pessoas e grupos, posições sociais e contextos díspares, formas como as identidades influenciam nos tratamentos e oportunidades. Tudo isto evidencia a neutralidade jurídica como ficção. Pressupor neutralidade não é exigir da pessoa intérprete ou aplicadora do direito uma equidistância entre as partes, nem mesmo é um procedimento que almeje a justiça. A neutralidade ensinada nas salas de aula dos cursos de direito serve aos estereótipos e discriminações estruturais. É uma pretensão de validade que parte de uma dimensão abstrata que, em verdade, sequer existiu; carece de fidedignidade e, sobretudo, não corresponde a uma busca por justiça.

Há, com as lentes do direito antidiscriminatório, uma quebra de paradigma. Partir da realidade concreta e latente para pensar o direito é sair da posição imaginária em que se colocava o intérprete ideal; é olhar para as sujeitas e sujeitos de carne e osso. Incluem-se, assim, as subjetividades e as dimensões que compõem as identidades porque são fatores distintivos nas relações. A justiça social exige uma cidadania plena, em que o status jurídico e político de uma pessoa não é hipervalorizado ou menosprezado devido a aspectos culturais e materiais que compõem sua identidade; sua participação social não pode valer mais e nem menos em razão de sua raça, sexo, gênero, religião ou sexualidade. Para o direito antidiscriminatório, a cidadania é elemento estruturante que na prática limita ou permite o acesso a direitos fundamentais em graus distintos para determinados grupos.

Reside aqui o papel crucial da "gramática da igualdade" que elucida armadilhas trazidas por seus conceitos. Deve-se ultrapassar a igualdade formal, que garante procedimentos, e igualdade material, que garante uma proteção substancial por parte das instituições, para explorar os contornos de uma igualdade de status cultural e substancial entre os grupos e entre as pessoas. É no status que operam as vulnerabilidades e os privilégios desarrazoados e injustos capazes de acentuar discriminações e desigualdades. O status existe para além das normas, muitas vezes escondido por elas, logo, o direito fundamental à igualdade requer uma atuação jurídica que o compreenda corretamente.

Fato é que o direito antidiscriminatório aborda a discriminação por diversos ângulos, evidenciando nos processos de hierarquização e subordinação, privilégios e opressões, tudo o que é comum na vivência de diversos grupos minorizados. Afinal, os mecanismos que atingem desproporcionalmente pessoas negras, mulheres, pessoas com deficiência, imigrantes ou ainda quem se distingue por sua sexualidade, identidade de gênero, religião, idade e outros marcadores são semelhantes.

Dentro desse espectro se encontra o antirracismo. A história da escravização, aspectos psicológicos dos pactos raciais e das tendências de superioridade, movimentos normativos que em nome da igualdade acobertaram o racismo institucional e organizacional, barreiras camufladas que foram erguidas para afastar pessoas negras de espaços de poder; todos são fatores que influenciam e justificam uma atenção específica às particularidades das questões raciais. O supracitado Manual de Educação Jurídica Antirracista indica a necessidade de colocar a justiça racial no centro dos estudos sobre Teoria da Constituição, História Constitucional, Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais.

A racionalidade constitucional demanda esse olhar. Fugir de um negacionismo sobre preconceitos e privilégios implica na postura ativa de enfrentamento e busca por justiça. Cuida-se de compreender os danos coletivos causados a grupos subalternizados e os obstáculos para a promoção da dignidade de todas as pessoas. Um direito constitucional indiferente às discriminações, sobretudo àquelas raciais que atravessam nossa sociedade, é em si mesmo uma contradição. Nossa Constituição concebeu um projeto de Brasil justo, igualitário e solidário; promete-se, sem meias palavras e logo no início do seu texto, o combate à discriminação, a defesa do pluralismo, da diversidade e do progresso da humanidade. Sem, portanto, este olhar antidiscriminatório e antirracista, perdem sentido a igualdade, a liberdade, a dignidade humana, a justiça e a própria Constituição.

Acreditamos, e pretendemos demonstrar com esse artigo, que a falta desse exercício traz consequências jurídicas desastrosas. São déficits conceituais e de procedimento que alteram significativamente as consequências de leis, atos administrativos e decisões judiciais.

II- À guisa de exemplo: um olhar sobre a ADPF 635
Para exemplificar, sugerimos uma mirada sobre os debates no contexto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635. Isto porque nos parece um exemplo bastante didático de como o direito constitucional e seus instrumentos jurídicos podem (senão devem) adotar as lentes do direito antidiscriminatório para fins de apresentar uma resposta condizente, realística e satisfatória aos desafios enfrentados — há muito — pela população negra, não perdendo de vista o caráter sistêmico e estrutural do racismo, o qual encontra na violência policial uma de suas manifestações no hodierno.

A ADPF 635, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em novembro de 2019, surgiu em um contexto marcado pela ineficiência do estado do Rio de Janeiro na redução da violência e uso excessivo da força por agentes policiais, cujo padrão resulta em um elevado grau de letalidade, direcionada, historicamente, contra a população negra e habitantes de favelas e zonas periféricas. A Arguição foi ajuizada com a pretensão de que fossem reconhecidas e sanadas as graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição (dentre os quais o direito à vida, à segurança e à igualdade) praticadas pelo estado do Rio de Janeiro na elaboração e implementação de sua política de segurança pública, notadamente no que tange à excessiva e crescente letalidade da atuação policial nas favelas cariocas — ocupadas, majoritariamente, por pessoas negras.

À vista disso, a apreciação e julgamento da ADPF 635 reclamou (e ainda reclama) um olhar sob a perspectiva racial, dada a indissociabilidade entre violência policial e racismo na sociedade brasileira. Afinal, é impossível apartar o fenômeno da violência policial, da qual os negros e negras são predominantemente as vítimas, do racismo institucional e estruturalmente enraizado no tecido social. É inquestionável que a população negra é a maior vítima do uso excessivo da força por agentes do Estado e a população negra está sobrerepresentada nos números de vítimas da letalidade policial.

Compreender a indissociabilidade entre racismo e violência policial implica não perder de vista as lentes do direito antidiscriminatório, sob pena de chegarmos a alguns equívocos na leitura das relações raciais, bem como perpetuarmos duas problemáticas intrinsecamente ligadas: racismo e violência policial. Desta forma, o caráter estrutural do racismo implica em reconhecer que a lente das relações raciais pode ser sobreposta em diversas perspectivas e olhares, inclusive no âmbito do direito constitucional e dos instrumentos jurídicos a ele pertencentes, dentre os quais a ADPF, com vistas a tornar presente e em evidência o paradigma antirracista.

Portanto, toda e qualquer discussão sobre a letalidade policial no Brasil não deve deixar de lado o fator racial, que, inquestionavelmente, está por trás da motivação das instituições de segurança pública e de seus agentes oriundos de uma sociedade marcada por uma ordem estrutural e sistematicamente racista. Do contrário, se não forem adotadas as lentes do direito antidiscriminatório, as instituições continuarão reproduzindo o racismo como parte da ordem social e, por consequência, as vítimas da letalidade policial sempre carregarão a mesma cor, a mesma classe e o mesmo endereço.

O exemplo supra — apenas um dos inúmeros casos em que o fator raça se sobrepõe e agrava as violações de direitos — evidencia como precisamos re-aprender o direito constitucional — e re-ensiná-lo — em bases comprometidas com a antidiscriminação e o antirracismo.

III- Compromisso constitucional com a antidiscriminação e o antirracismo
O constitucionalismo tradicional foi — e ainda é até certo ponto — um movimento de exclusão; o debate racial foi — e ainda é — invisibilizado e silenciado. O discurso constitucional nasceu e permanece até hoje indiferente às diferenças refletidas no tratamento díspar do acesso a serviços e bens, trabalho, segurança, participação política e mesmo estrutura e formação do direito entre pessoas negras e brancas.

Esse diagnóstico é, ao mesmo tempo, um convite à transformação deste estado de coisas injusto e desigual. O desafio do constitucionalismo antidiscriminatório e antirracista é justamente quebrar o silêncio imposto às questões raciais na teoria constitucional e nos espaços de poder que definem a Constituição. Precisamos construir uma história constitucional que inclua negros e negras, uma constituição que seja inclusiva da população negra, não apenas enquanto vítimas das intolerâncias que ainda marcam nossas relações, mas sobretudo como agentes da transformação constitucional.

Essa promessa existe desde 1988, esteve presente na constituinte e marcou o Brasil e o mundo nas últimas décadas. Enquanto vida, liberdade, igualdade, dignidade, saúde, segurança, trabalho e cidadania só fizerem sentido para determinados grupos sociais, o texto constitucional ainda não terá se feito Constituição.

Por óbvio, são justamente os pensadores e as pensadoras negras os protagonistas desse debate, com um lugar de fala [4] diferencial, mas é importante destacar que a construção de um direito constitucional antidiscriminatório e antirracista — que passa por um ensino antidiscriminatório e antirracista — far-se-á com a responsabilidade de todas e todos que têm compromisso com a igualdade e enxergam nas diferenças fatores de reconhecimento e promoção de direitos. Perceber como a resposta jurídica a um caso seria diferente quando se atenta para o fator racial é um alarme que precisa ressoar. Diante de todo o exposto, a pergunta que fica é: o que cada um e cada uma de nós irá fazer, individual e coletivamente, dentro e fora das salas de aula, para selar este compromisso constitucional com a antidiscriminação e o antirracismo?

 


[1] SANTANA, Nahomi Helena de. Liberdade de expressão política: democracia, antidiscriminação e direitos humanos. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/71254/Nahomi%20Helena%20de%20Santana.pdf?sequence=1&isAllowed=y; e PEREIRA, Yago Paiva. ADPF 635 e Controle de Convencionalidade: Uma análise à luz do Caso Favela Nova Brasília e do Paradigma Antirracista. Disponível em: https://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/77137/YAGO%20PAIVA%20PEREIRA.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

[2] MOREIRA, Adilson; ALMEIDA, Phillipe e CORBO, Wallace. Manual de Educação Jurídica Antirracista. São Paulo: Contracorrente, 2022.

[3] Dados de 2020 revelam que 78,9% das vítimas de intervenções policiais eram negras, porcentagem que não encontra correspondência com a composição racial da população negra (56,3% de negros). Além disso, a taxa de letalidade policial entre negros é 2,8 vezes superior à taxa entre brancos (4,2 contra 1,5 vítimas a cada 100 mil habitantes). FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. Ano 15. 2021. p. 66-67. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022. Sob outro vértice, a subrepresentatividade em espaços de poder é igualmente significativa. Nas eleições de 2022, das 512 cadeiras na Câmara Federal, 370 foram conquistadas por candidaturas brancas e apenas 27 para negras, 107 para pardas, 3 para amarelas e 5 para indígenas. Um deputado não declarou sua raça. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/911743-numero-de-deputados-pretos-e-pardos-aumenta-894-mas-e-menor-que-o-esperado/. Acesso em: 17 abr. 2022.

[4] RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

Autores

  • é graduada e mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduanda em Direito Eleitoral pela PUC-Minas e integrante do Nesidh e do CCons.

  • é advogado, graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pós-graduando em Direito Público, membro do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (Nesidh) da UFPR e bolsista do Afro-Latin American Research Institute da Universidade Harvard.

  • é professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (Nesidh) e do Centro de Estudos da Constituição (CCONS), ambos da UFPR.

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