Opinião

Prescrição administrativa intercorrente em matéria ambiental

Autor

  • Vanessa Santos Moreira Soares

    é advogada e consultora jurídica ambiental professora universitária graduada em Direito pela FDSBC (2011) mestre em Direito pela PUC-SP (2014) e doutoranda em Direito pela FDUSP (início em 2020).

16 de novembro de 2022, 20h34

Dos aspectos gerais acerca da prescrição e da prescrição ambiental
É cediço que, de forma geral, a prescrição é o instituto jurídico que cuida da extinção da pretensão de se exigir o cumprimento de um direito violado, em razão do decurso de um prazo previsto em lei, a partir da interpretação do artigo 189 do Código Civil Brasileiro, o qual prevê: "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206".   

Em matéria ambiental, entende-se que o conceito é o mesmo, guardadas, porém, as proporções específicas quanto aos prazos e espécies, as quais são atreladas à esfera de apuração da responsabilização que possui três faces: administrativa, penal e civil ("tríplice"), nos termos da Constituição, artigo 225, §3º e da Lei Federal nº 6.938/1981, artigo 14, §1º).

Nesse contexto, tem-se a imprescritibilidade da reparação civil dos danos causados ao meio ambiente; as prescrições das pretensões punitivas administrativa e penal; as prescrições executivas administrativa/civil (é possível encontrar essa expressão direta, relacionada à prescrição executiva, em legislação estadual, por exemplo, é o que ocorre no Estado de São Paulo, como será mencionado neste material à frente), bem como as prescrições intercorrentes nas esferas administrativa e penal da responsabilização ambiental.

Apenas a título de conhecimento, elucida-se que, em linhas gerais, é possível dizer que as pretensões punitivas se relacionam à possibilidade de a Administração Pública ainda ter condições de, no tempo adequado, apurar a prática de infrações contra o meio ambiente; as pretensões executivas, referem-se à cobrança judicial ("execução") da penalidade de multa aplicada pela Administração em atenção ao dano causado ao meio ambiente e, quanto à esfera da prescrição intercorrente, esta decorre diante inércia da Administração Pública em dar seguimento à apuração dos fatos/atos infracionais ambientais por tempo determinado.

O objetivo deste artigo é discorrer, de modo geral, acerca da prescrição administrativa ambiental intercorrente, expondo aspectos originários da legislação federal e das normas atuais estaduais de São Paulo, conforme se passará a fazer.

Da prescrição administrativa ambiental intercorrente (legislação federal)
De forma geral, ao se tratar acerca da matéria prescricional administrativa ambiental no cenário da legislação federal, deve-se pautar, primeiramente, nas disposições do Decreto Federal nº 6.514/2008, o qual dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente em esfera federal, nele havendo previsão das prescrições nas modalidades punitiva (cujo prazo será quinquenal, artigo 21, caput) e intercorrente (artigo 21, §2º).

Considerando o foco deste breve artigo, quanto ao prazo da prescrição intercorrente, verifica-se que este será aplicável, em esfera administrativa federal, quando o procedimento em que se apura o auto de infração, seja mantido paralisado por mais de três anos, "(…) pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada (…)" (artigo 21, §2º), destacando-se, nesse contexto que, o auto de infração é o instrumento por meio do qual se considera iniciada a apuração administrativa ambiental, artigo 21, §1º.

Contudo, é importante destacar que o prazo da prescrição intercorrente será interrompido "por qualquer ato inequívoco da administração que importe apuração do fato" e/ou, ainda, pelo proferimento de "decisão condenatória recorrível" (artigo 22, I, II e III  Decreto Federal nº 6.514/2008).

Registra-se, nessa linha, que o "ato inequívoco", não é 'mero ato' praticado pela Administração Pública, de forma que o próprio Decreto em questão dispõe que serão "(…) aqueles que impliquem instrução do processo" (artigo 22, parágrafo único).

Assim, poderia ser exemplificado como um ato que objetiva dar continuidade à apuração, aquele que requisita outras medidas ou setores do órgão público onde o procedimento estiver em andamento.

Necessário estar clara, porém, a intenção da Administração em dar continuidade à apuração da prática lesiva investigada/iniciada. Assim, entende-se que uma simples remessa dos autos a outros setores sem esse objetivo claro, apenas com base no andamento dos autos, não poderia ser considerada, a princípio, como causa de interrupção do prazo prescricional.

Uma vez interrompido, porém, o prazo de três deve ser reiniciado, nos termos do artigo 202, parágrafo único do Código Civil Brasileiro: "A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper".

Ademais, apenas abrindo parênteses, observe-se que o Decreto Federal nº 6.514/2008, ainda traz disposições legais que remetem às faces penal e civil da responsabilização ambiental, ao tratar que "quando o objeto da infração também constituir crime, a prescrição (…) reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal" (artigo 21, §3º) e, ainda, que a ocorrência da prescrição punitiva administrativa, não impede a obrigação civil de reparar o dano causado (artigo 21, 4º).

Disso se verifica a relação íntima e cíclica entre as três faces da responsabilidade ambiental, nos termos do artigo 225, §3º da Constituição Federal e artigo 14, §1º da Lei Federal nº 6.938/1981  que cria Política Nacional do Meio Ambiente, conforme mencionado no capítulo primeiro deste artigo.

Dito isso, é necessário considerar que a legislação federal, atinente à prescrição administrativa ambiental intercorrente, será aplicável aos casos em que a investigação iniciada por meio de auto de infração, foi lavrado por órgão ambiental federal.

Assim, a aplicação da prescrição administrativa ambiental intercorrente no âmbito estadual depende de previsão legal específica, de acordo, inclusive, com posicionamento ratificado pelo Superior Tribunal de Justiça:

"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. FEITO EM CURSO NO ENTE DISTRITAL. DECRETO N. 20.910/1932. APLICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
(…)
2. É firme a orientação desta Corte de que não há previsão legal no Decreto 20.910/1932 acerca de prescrição intercorrente do processo administrativo, regulada apenas na Lei nº 9.873/1999, cujas disposições não são aplicáveis 'às ações administrativas punitivas desenvolvidas por Estados e Municípios, em razão da limitação do âmbito espacial da lei ao plano federal' (AgInt no REsp 1.770.878/PR, relatora ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, DJe 21/2/2019). (…).
4. Agravo interno desprovido.
(STJ. AgInt no REsp 1665220/DF, relator ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/09/2019, DJe 25/09/2019)."

Desse modo, adiante, será abordado o tratamento legal dado à prescrição administrativa ambiental intercorrente especialmente no Estado de São Paulo, conforme se fará a seguir.

Da prescrição intercorrente administrativa ambiental no estado de SP
De acordo com o exposto acima, a legislação federal relativa ao assunto ora tratado será plenamente aplicável nos casos em que a investigação iniciada, por meio de auto de infração idôneo, foi lavrado por órgão ambiental federal, de forma que sua aplicação estadual exigirá previsão legal estadual específica.

Assim, no estado de São Paulo, a prescrição intercorrente não possui respaldo normativo, considerando que a previsão contida no artigo 40 do Decreto Estadual nº 64.456/2019 que previa o referido instituto, foi revogada.

O citado decreto trata acerca do procedimento para apuração de infrações ambientais e imposição de sanções no âmbito do Sistema Estadual de Administração da Qualidade Ambiental, Proteção, Controle e Desenvolvimento do Meio Ambiente e Uso Adequado dos Recursos Naturais (Seaqua).

O dispositivo revogado tratava acerca da prescrição intercorrente e da prescrição relacionada à apuração de práticas consideradas lesivas ao meio ambiente e dispunha o seguinte:

"Artigo 40  Prescreve em cinco anos a pretensão da Administração de promover ação objetivando apurar a prática de infrações contra o meio ambiente, contados da data da prática do ato, ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que esta tiver cessado.
§1º – Considera-se iniciada a ação de apuração de infração ambiental pela Administração com a lavratura do Auto de Infração Ambiental.
§2º – Incide a prescrição no procedimento de apuração do Auto de Infração Ambiental paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento do autuado, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação.
(…)."

Todavia, o dispositivo legal em comento foi integral e expressamente revogado, por meio do Decreto Estadual nº 64.563/2019: "Fica revogado o artigo 40 do Decreto n° 64.456, de 10 de setembro de 2019". (artigo 1º).

Nesse contexto, entende-se que a modalidade de prescrição administrativa ambiental atualmente existente no Estado de São Paulo é a prescrição executiva, a qual se trata do lapso temporal para a pretensão da Administração Pública Estadual promover, judicialmente, a ação de execução da penalidade de multa aplicada em sede de auto de infração, nos termos do artigo 41 do Decreto Estadual nº 64.456/2019:

"Artigo 41 – Prescreve em cinco anos a pretensão da Administração de promover a execução da multa por infração ambiental.
Parágrafo único – A contagem do prazo prescricional previsto no 'caput' deste artigo inicia-se:

1. no dia seguinte ao descumprimento dos prazos fixados para parcelamento no Atendimento Ambiental;
2. no dia seguinte ao do decurso dos prazos previstos nos artigos 15 e 20 quando não houver oferecimento de defesa ou interposição de recurso;
3. na data do recebimento da intimação da decisão final sobre o recurso interposto."

Esse entendimento foi confirmado, inclusive, pela Cetesb por meio da Decisão de Diretoria nº 055/2020/P de 29/05/2020, a qual estabelece os procedimentos que devem ser seguidos no âmbito dos processos administrativos sancionatórios para apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, conforme se verifica a partir do artigo 40 (abaixo transcrito), ao tratar das formas de extinção da punibilidade ambiental administrativa: "Artigo 40. Extingue a punibilidade: I. a prescrição executiva; II. a morte do autuado antes do trânsito em julgado administrativo, comprovada por certidão de óbito; e, III. a anistia. (…)."

A referida prescrição executiva, guarda relação com o Decreto nº 20.910/1932, o qual regula a prescrição quinquenal, na medida em que o artigo 1º estabelece: "As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem".

Nesse contexto se verifica o julgado ementado a seguir, proveniente da 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, do Tribunal de Justiça de São Paulo:

"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO  Cabível o Acolhimento — Afastada a incidência do artigo 40 do Decreto Estadual nº 64.456/2019, que foi revogado  Na prescrição intercorrente é inaplicável a Lei nº 9.873/99 e o artigo 21 do Decreto Federal nº 6.514/2008  Prescrição qüinqüenal consoante os artigos 1º e 4º Decreto Federal nº 20.910/32  Transcorreu lapso temporal superior a cinco anos entre a ciência e trânsito em julgado administrativo e a inscrição do débito na dívida ativa – Mantida a prescrição do primeiro auto de infração e, por conseqüência, anulado o segundo auto de infração, dependente do primeiro (…) acolhem-se os embargos de declaração, mas sem modificação do resultado final do v. acórdão embargado". (TJSP. Embargos de Declaração Cível 1005207-28.2020.8.26.0562; relator Ruy Alberto Leme Cavalheiro; Órgão Julg. 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Santos — 3ª Vara da Fazenda Pública; DJ: 24/03/2022; DR: 24/03/2022).

Desse modo, verifica-se que, no estado de São Paulo não há previsão legal em vigor que fundamente pedidos de prescrição intercorrente frente à inércia do órgão ambiental em apurar as infrações administrativas ambientais investigadas.

Considerações finais
Diante do exposto, verificou-se que, especialmente, com relação à, prescrição administrativa intercorrente em matéria ambiental, é instituto previsto no artigo 21, §2º do Decreto Federal nº 6.514/2008, de modo que será aplicável quando o procedimento em que se apura o auto de infração, no âmbito federal, seja mantido paralisado por mais de três anos, "(…) pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada (…)". (Artigo 21, §2º).

A aplicação da prescrição administrativa ambiental intercorrente no âmbito estadual depende de previsão legal específica, assim, no Estado de São Paulo é possível entender que não há previsão legal em vigor que ampare pedidos de prescrição intercorrente frente à inércia do órgão ambiental em apurar as infrações administrativas ambientais investigadas.

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Referências
BRASIL. Constituição Federal, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 09/11/2022.

BRASIL. Decreto nº 20.910/06.01.1932, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d20910.htm, acesso em 09/11/2022.

BRASIL. Decreto Federal nº 6.514/22.07.2008, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6514.htm, acesso em 09/11/2022.

BRASIL. Lei Federal nº 6.938/31.08.1981, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938compilada.htm, acesso em 09/11/2022.

BRASIL. Lei Federal nº 9.873/23.11.1999, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9873.htm, acesso em 09/11/2022.

BRASIL. Lei Federal nº 10.406/10.01.1999, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm, acesso em 09/11/2022.

ESTADO DE SÃO PAULO. CETESB. Decisão de Diretoria nº 055/2020-P. Disponível em https://cetesb.sp.gov.br/wp-content/uploads/2022/09/DD-055-2020-P-PROCEDIMENTOS-NOS-PROCESSOS-ADMINISTRATIVOS-SANCIONATORIOS-CONSOLIDADA-COM-A-DD-No-0642020P-E-DD-No-0902022P.pdf, acesso em 09/11/2022.

ESTADO DE SÃO PAULO. Decreto Estadual nº 64.456/10.09.2019, disponível em https://www.al.sp.gov.br/norma/191408, acesso em 09/11/2022.

ESTADO DE SÃO PAULO. Decreto Estadual nº 64.563/05.11.2019, disponível em https://www.al.sp.gov.br/norma/192101, acesso em 09/11/2022.

Autores

  • é advogada e consultora jurídica ambiental, professora universitária, graduada em Direito pela FDSBC (2011), mestre em Direito pela PUC-SP (2014) e doutoranda em Direito pela FDUSP (início em 2020).

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