Escritos de Mulher

Políticas fiscais brasileiras e desigualdade de gênero (parte 2)

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16 de novembro de 2022, 11h42

Continuação da parte 1.

Em nosso último texto nesta coluna, analisamos a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 5.422, que reconheceu que a tributação de pensão alimentícia pelo beneficiário como "renda" enquanto ao alimentante — em sua maior parte homens —, era concedido "benefício fiscal" com a possibilidade de dedução dos valores pagos, desconsiderava a desequiparação salarial e discrepância na distribuição da renda entre homens e mulheres [1], violando os primados da isonomia e da igualdade entre homens e mulheres prevista como clausula pétrea do texto constitucional.

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Apesar de se tratar de importante vitória das mulheres contribuintes, a decisão não esgota o tema.

Isso porque, para além da desigualdade na tributação sobre a renda, estudos sobre os efeitos da desigualdade entre homens e mulheres nas relações de consumo e na carga tributária suportada pelas mulheres revelam que a desigualdade de gênero ultrapassa as diferenças mais evidenciadas até então, como de salários, posições políticas e de liderança, trabalhos não remunerados, tempo dedicado ao cuidado de pessoas, afazeres domésticos e os índices de violência doméstica, impondo às mulheres, também, uma carga tributária maior.

Tema que nos últimos anos ganhou destaque no mundo, o "Pink Tax" ou, na tradução para o português, "Taxa Rosa", trata-se de um movimento voltado ao estudo da diferença entre os preços de produtos femininos e masculinos similares, bem como de produtos de uso exclusivo do público feminino, evidenciando que é muito mais caro ser mulher.

Apesar da expressão "Taxa" não fazer referência direta à tributação, mas ao preço total do produto, fato é que, à medida em que integram os valores pagos pelas consumidoras em produtos de uso exclusivo feminino ou em produtos similares aos masculinos, ao menos, quatro tributos sob o consumo, não há como se dissociar a expressão do prisma tributário.

A análise do Boletim de Estimativa da Carga Tributária Bruta do Governo Geral [2], publicado pelo Ministério da Fazenda em março de 2021, que toma por base informações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), demonstrou que a arrecadação tributária no Brasil incide majoritariamente sobre o consumo de bens e serviços, nos levando a concluir que a diferença no preço de produtos similares acaba onerando o público feminino, também, pelo viés da tributação.

Não raras as vezes, a expressão "Pink Tax" aparece associada à imagem de um "barbeador" azul e um "depilador" rosa, que em verdade se trata de um mesmo produto, lâmina para remoção de pelos, apenas de cores diferentes. Esses "dois" produtos, ao menos em tese, possuem a mesma carga tributária. Ou seja, homens que adquirem o produto na versão azul e mulheres que adquirem o produto na versão rosa estão sujeitos às mesmas alíquotas dos tributos sob o consumo incidentes sobre esses produtos, contudo, o produto destinado às mulheres apresenta no mercado preço mais elevado e, portanto, maior carga tributária.

Para além das lâminas de depilar, a disparidade entre produtos femininos e masculinos similares atinge ainda produtos de higiene (até 20% mais caros nas versões femininas), de vestuário adulto (até 14% mais caros para mulheres que os similares masculinos) e também roupas e brinquedos infantis (até 25% de diferença no preço nas versões para meninos e meninas) [3], deixando claro que o gênero é preponderante na fixação de preço e, por consequência, na carga tributária de um mesmo produto suportada por homens e mulheres.

E antes que se alegue que tal fenômeno tem origens nas relações de consumo, estratégias de marketing e nas políticas privadas de fixação de preço, de modo que a consequente tributação majorada seria apenas um "reflexo" desse cenário, é importante se ter em mente que o poder de tributar encontra norte nos ditames e princípios previstos na Constituição Federal, cumprindo ao Estado o dever de balizar e criar mecanismos para garantir os direitos e garantias fundamentais no bojo das relações jurídico-tributárias, enquanto expressão máxima do Estado democrático de Direito.

Vale lembrar que a igualdade entre os gêneros é expressa na Constituição Federal que dispõe em seu artigo 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, com reforço extra no inciso primeiro que traz expresso que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Quanto à perspectiva tributária, o princípio da igualdade encontra expressão no princípio da isonomia, que, à luz do disposto no artigo 150, inciso II, da CF, não só veda tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, como exige tratamentos diferenciados quando se verifica distinção na capacidade contributiva ou na essencialidade do produto, bem como no próprio princípio da capacidade contributiva previsto no artigo 145, §1º, da CF que, com referência expressa aos direitos individuais, estabelece que sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.

Assim, a carga tributária efetiva de um mesmo produto suportada por homens e mulheres e sua consonância com os ditames constitucionais não pode ser reduzida, exclusivamente, à análise das alíquotas previstas na legislação para um mesmo produto, sendo imprescindível que consideremos que a garantia à igualdade entre os gêneros na tributação deve incorporar a análise do contexto social e da discriminação da mulher ainda tão presente na cultura e sociedade.

A situação é ainda mais grave quando se trata de produtos destinados a atender necessidades básicas e de higiene exclusivas da mulher, já que a carga tributária que recai sobre o consumo desses produtos é de aproximadamente de 27,5%, composta pelas alíquotas médias de 18% de ICMS, 1,65% de PIS e 7,6% da Cofins, tais produtos, essenciais à saúde e higiene da mulher, sofrem uma tributação igual ou superior a itens não essenciais ou supérfluos.

É o caso, por exemplo, dos absorventes, anticoncepcionais, medicações hormonais e, também, das fraldas infantis e geriátricas, cujo consumo e ônus financeiro, conforme já pontuado, recai de forma preponderante sobre as mulheres, à medida em que são elas que majoritariamente detém a guarda física e cuidam dos filhos nos casos de divórcio, ou ainda, por serem elas que dedicam maior tempo e cuidado com terceiros e idosos.  

Assim como se verifica na tributação de produtos similares destinados a homens e mulheres, a equiparação da tributação de itens essenciais para a saúde e higiene da mulher versus itens supérfluos, escancara ainda mais a violação dos princípios da igualdade, da isonomia e da capacidade contributiva, em razão da exorbitante diferença na carga tributária suportada pelas contribuintes simplesmente em razão do gênero.

Apesar do conhecimento dessa problemática e da consequente necessidade de políticas fiscais que garantam a igualdade entre todas as pessoas não serem temas novos, fato é que esse cenário passou desapercebido nas discussões de reforma tributária no congresso nacional [4], sem a apresentação de propostas com fins combater a discriminação e a oneração da mulher no atual sistema tributário.

Vislumbrando tal cenário, o grupo de estudos de Tributação e Gênero do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, formado por procuradoras da Fazenda Nacional, na condição de pesquisadoras, além de advogadas, professoras e estagiárias de direito da FGV, apresentaram ao Congresso Nacional um documento com sugestões de alterações nas propostas de reforma tributária em trâmite, com fins de incluir políticas fiscais para o combate à desigualdade de gêneros na tributação [5].

Dentre as sugestões apresentadas, está a concessão de isenção de PIS/Cofins e IPI sobre absorventes íntimos femininos, fraldas higiênicas infantil e adulto, anticoncepcionais e medicamentos utilizados em reposição hormonal por conta da menopausa e redesignação sexual, visando, justamente, a redução da carga tributária e a redução de preços desses produtos, a fim de facilitar o acesso a esses itens.

O estudo conta ainda com outras sugestões, como a concessão de incentivos fiscais para empresas que contratem mulheres chefes de família e/ou mulheres negras; que tenham políticas de inclusão de mulheres em cargos de gestão; que mantenham em seus quadros, pelo menos, 30% de mulheres e que mantenham ao menos 40% de mulheres nos últimos três níveis mais altos de cargos da empresa, ou como diretoras e gerentes; além da contratação de mulheres sobreviventes de violência doméstica.

Sob essa perspectiva, é imprescindível que o poder legislativo volte seu olhar para o tema e passe a incluir políticas capazes de combater a atroz realidade que recai sobre as mulheres brasileiras. 

Não há mais espaço para se admitir um cenário no qual a maior parte da população é formada por mulheres e uma em cada três brasileiras já sofreu ou está sofrendo alguma forma de violência devido a sua condição feminina [6]. Para além de suportar a violência física, emocional, temer por sua vida e pela segurança de seus filhos, comprometer a renda da mulher destinada às necessidades básicas, como alimentação, saúde e higiene, por uma carga tributária que desconsidera as diferenças sociais e de gênero é, também, revitimizador e desempoderador.

A necessidade de políticas fiscais alinhadas ao tema é premente. Reconhecer o sistema tributário como ferramenta que promove o equilíbrio entre os gêneros e a isonomia na tributação, além do papel público no combate à discriminação e violência praticada contra a mulher, é importante passo para nossa evolução social. É papel do Estado garantir condições mínimas para que a mulher alcance sua autonomia financeira, seja revisitando a carga tributária sob a perspectiva de gênero, seja incentivando o seu retorno ao mercado de trabalho.


[3] Os dados são da pesquisa Taxa Rosa — Gênero e Precificação, elaborada por Fábio Mariano Borges, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing, de São Paulo, aberta para a revista EXAME. Disponível em: https://exame.com/revista-exame/a-diferenca-que-pesa-no-bolso/

[4] Propostas da Câmara dos Deputados (PEC 45/2019), do Senado Federal (PEC 110/2019) e do Governo Federal (PL 3887/2020).

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