Contas à Vista

Falta teto é para o falseamento fiscal das responsabilidades federativas

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15 de novembro de 2022, 8h00

A interpretação das regras fiscais não pode ser feita de forma isolada. É preciso buscar empreender sua leitura sistemática para integrar o ordenamento jurídico. Embora tal alerta soe óbvio para os operadores do Direito, sua aplicação cotidiana na elaboração e na execução das leis orçamentárias resta, por vezes, comprometida por dogmatismos econômico-contábeis.

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Não pode ser reputado intertemporalmente sustentável um arranjo normativo que insule a União, apartando-lhe das suas responsabilidades solidárias seja para com os demais entes federados, seja para com o custeio dos direitos fundamentais. É possível, desse modo, extrair sentido teleológico, capaz de atribuir identidade comum às exceções arroladas no artigo 107, §6º, inciso I do ADCT. Ora, a mais volumosa exceção ao teto corresponde às transferências constitucionais obrigatórias que perfazem deveres incomprimíveis e inadiáveis da federação brasileira.

Todavia o teto de despesas primárias chega ao seu sexto ano de vigência, tendo acumulado já cinco alterações para lhe abrir novas exceções, todas elas de curto fôlego e contingentes: em 2019, Emenda 102; em 2021, Emendas 109, 113 e 114; bem como, em 2022, Emenda 123. A sexta modificação constitucional já está pragmaticamente contratada como "PEC da Transição", para permitir que o próximo governo acomode, ao menos, a manutenção do valor atual do Auxílio Brasil para além de 31/12/2022.

Tantas alterações parciais e insuficientes comprometeram, de forma inegável, a força normativa da própria Constituição, daí porque, ao invés de mais uma revisão tópica, seria mais adequado repensar o teto de despesas primárias da União em caráter estrutural, sem ignorar seu impacto para as contas públicas dos governos estaduais, distrital e municipais.

Há diversos impasses operacionais em curso na tentativa de equalização do projeto de orçamento para o exercício financeiro de 2023 no âmbito federal, mas muito pouco tem sido apontado em relação às demandas normativas e judiciais que buscam impor ao ente central o dever de compensação em favor de estados, DF e municípios, sobretudo após a inibição da arrecadação do ICMS empreendida pelas Leis Complementares 192 e 194/2022. Não é discreta a repercussão dos efeitos dessas leis, que foi estimada pelo Comsefaz em cerca de R$ 125 bilhões para o próximo ano. É preciso, em integração teleológica com o artigo 107, §6º, I do ADCT, incluir a dimensão federativa no incontornável e iminente esforço de revisão das regras fiscais brasileiras.

Duas estratégias normativas já foram endereçadas, mas ainda aguardam a devida implementação fática na federação. Ideal seria que o Congresso Nacional as enfrentasse de imediato, até para que seja concebido adequadamente o espaço fiscal necessário à sua inserção no PLOA-2023, dada a estreiteza da margem disponível sob o teto de despesas primárias da União.

O primeiro exemplo reside no fato de que, entre os 15 vetos ao PLP 18/2022, projeto esse que deu origem à LC 194/2022, apenas dois não foram apreciados, a saber: vetos ao caput e ao parágrafo único do artigo 14 desse projeto, respectivamente Vetos 36.22.014 e 36.22.015 (conforme se pode ler aqui). Não há a mais remota previsão de quando eles serão apreciados, muito embora estejam sobrestando a pauta conjunta do Congresso Nacional desde o dia 6 de agosto deste ano. Os dispositivos vetados previram compensação federal às perdas proporcionais que os pisos em saúde e educação e o Fundeb podem vir a sofrer em função da aludida inibição do ICMS, como se pode ler a seguir:

"Art. 14. Em caso de perda de recursos ocasionada por esta Lei Complementar, observado o disposto nos arts. 3º e 4º, a União compensará os demais entes da Federação para que os mínimos constitucionais da saúde e da educação e o Fundeb tenham as mesmas disponibilidades financeiras na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar.

Parágrafo único. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios beneficiários do disposto nos arts. 3º e 4º desta Lei Complementar deverão manter a execução proporcional de gastos mínimos constitucionais em saúde e em educação, inclusive quanto à destinação de recursos ao Fundeb, na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar."

O segundo exemplo reside na falta de promulgação da PEC 122/2015, apesar de ela haver sido aprovada em caráter definitivo em 14 de julho do corrente ano, mesma ocasião em que foi promulgada a Emenda 124/2022, que trouxe o piso remuneratório nacional dos profissionais da enfermagem. Caso não tivesse sido adiada a promulgação da PEC 122, estaria em vigor o seguinte §7º, acrescido ao artigo 167 da Constituição de 1988:

"Art. 167. […]

§ 7º. A lei não imporá nem transferirá qualquer encargo financeiro decorrente da prestação de serviço público, inclusive despesas de pessoal e seus encargos, para a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, sem a previsão de fonte orçamentária e financeira necessária à realização da despesa ou sem a previsão da correspondente transferência de recursos financeiros necessários ao seu custeio, ressalvadas as obrigações assumidas espontaneamente pelos entes federados e aquelas decorrentes da fixação do salário mínimo, na forma do inciso IV do caput do art. 7º desta Constituição."

É sintomático, aliás, que a PEC 122/2015 siga no limbo jurídico há quatro meses, do mesmo modo que persiste sem clara fonte de custeio a implementação do piso remuneratório dos profissionais da enfermagem, após a suspensão da Lei 14.434, de 4 de agosto de 2022, pela ADI 7.222.

Obviamente, é incoerente defender responsabilidade fiscal apenas para manter o teto no nível federal, enquanto são impostos desequilíbrios orçamentários e financeiros desarrazoados para os demais entes da federação. Criar despesas obrigatórias de âmbito nacional e frustrar a arrecadação de tributos repartidos (a exemplo das recentes estratégias de inibição do ICMS e do IPI) são rotas contraditórias, que, em última instância, afrontam a própria garantia de que as transferências constitucionais obrigatórias são exceção ao teto, precisamente porque visam resguardar o equilíbrio federativo.

Basta a União reduzir artificialmente a receita dos impostos repartidos na federação e impor nacionalmente obrigações de despesa aos governos estaduais e municipais para fazer letra morta da principal exceção ao teto, a qual, como já dito, reside no artigo 107, §6º, I do ADCT.

Não há ação planejada e transparente, nos moldes do artigo 1º, §1º da LRF, mas risco fiscal imposto e assumido pela União, inclusive mediante passivos judicializados, quando o ente central compromete a sustentabilidade das finanças públicas locais e regionais, de um lado, e esvazia a eficácia dos direitos sociais, cujo arranjo orgânico distribui responsabilidades na federação, como se sucede com o Sistema Único de Saúde e o Fundeb, de outro. Esse quadro é agravado pela retração da participação da União no custeio dos direitos fundamentais, entre outras circunstâncias, dada a mera garantia de correção monetária para os pisos federais em saúde e educação, por força do artigo 110 acrescido ao ADCT pela Emenda 95/2016.

Nos autos da Ação Cível Originária 648/BA, em que se debatia o falseamento da complementação federal ao extinto Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), o ministro Roberto Barroso paradigmaticamente resumiu o conflito federativo:

"Evidentemente, não me é indiferente a crise fiscal vigente no Brasil, mas preciso relembrar que a crise fiscal é da União e a crise fiscal é dos estados também. Portanto, nós estamos aqui repartindo escassez e precisamos fazer, nisso como em tudo o mais, o que é justo; por temer o horror econômico, não podemos produzir o horror jurídico. Acho que este é o sentido constitucional, este é o propósito das normas que tratam da matéria, e assim nós devemos decidir."

O horror jurídico se instalou na federação brasileira e as pontuais alterações sucessivas do teto reclamam mudança de mirada em relação ao desafio estrutural de equalização das nossas regras fiscais. Um bom ponto de partida para tal esforço passa pelo resgate do dever de custeio federativamente equitativo das obrigações de gasto assumidas sob regime de responsabilidades solidária.

Não é possível que a União invoque — abusivamente — os limites do teto para negar, por exemplo, correção monetária ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), transferindo, direta ou indiretamente, seu custo de operação para os estados e os municípios, algo estimado em R$1,4 bilhão para o próximo exercício financeiro.

Mais do que um mero limite quantitativo arbitrário, precisamos identificar e enfrentar materialmente os riscos fiscais do desequilíbrio federativo, os quais impedem a consecução intertemporalmente aprimorada dos programas de duração continuada do PPA e das despesas não suscetíveis de contingenciamento da LDO. Afinal, são tais despesas que revelam as políticas públicas nucleares ao cumprimento da Constituição e à efetividade planejada e federativamente sustentável dos direitos fundamentais.

Caso seja aprovada uma sexta e episódica alteração de fura-teto, sem que o Congresso aprecie os vetos ao artigo 14, caput e parágrafo único do PLP 18/2022 e sem que seja promulgada a PEC 122/2015, tal opção comprovará a própria seletividade cínica do teto em uma federação fiscalmente desequilibrada e descomprometida com a força normativa da Constituição.

Tal cenário, a bem da verdade, caminha concomitante e celeremente para instalar os horrores econômico e jurídico, porquanto flerte com a desestruturação dos serviços públicos essenciais e com a insegurança jurídica de um país que faz das exceções episódicas e de curto prazo o seu modo de operação ordinário. Afinal, não há abismo civilizatório maior do que uma guerra fiscal de receitas e despesas na federação que normaliza a negativa de correção monetária até mesmo para o basilar dever de oferta suficiente da merenda escolar.

Resgatar o sentido finalístico do próprio artigo 107, §6º, I do ADCT nos permite enxergar, com maior clareza, que o teto não é um fim em si mesmo, tampouco pode ser lido como uma regra absoluta e insulada do ordenamento. A revisão estrutural do teto necessariamente passa pelo resgate do federalismo fiscal como instrumento descentralizado de efetividade dos direitos fundamentais ao longo de todo o território nacional.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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