LONGO CAMINHO

MPF entra com ação para garantir tratamento a pessoas com câncer

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13 de novembro de 2022, 13h51

Está nas mãos da 3ª Vara Federal de Bauru, em São Paulo, a possível garantia do início de tratamento para pessoas diagnosticadas com câncer no Sistema Único de Saúde (SUS) em até 60 dias, conforme prevê a Lei 12.732/2012. Uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal sobre esse tema foi distribuída no dia 24 de outubro.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Marcello Casal Jr./Agência BrasilLei institui que tratamento deve ser iniciado em até 60 dias após o diagnóstico

Para garantir os direitos dos usuários do SUS, o MPF requer que a União adote, em 90 dias, as providências para que seja reativado o módulo de tratamento do Sistema de Informação do Câncer (Siscan) ou institua outro sistema confiável e compatível, permitindo o registro adequado de dados de pacientes diagnosticados com câncer.

O estado de São Paulo também deve ter o mesmo prazo para impor controle e transparência às filas de espera do SUS, seja por meio da Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde (Cross) ou outro sistema, garantindo prioridade aos pacientes oncológicos em consultas, exames, cirurgias, quimioterapia e radioterapia.

Com isso, os réus deverão cumprir os prazos estabelecidos na legislação, pede o MPF, assegurando que, nas hipóteses de neoplasias malignas, o diagnóstico ocorra em até 30 dias e o tratamento seja iniciado no prazo de 60 dias ou menos, conforme a necessidade terapêutica do caso.

A ACP também requer que sejam identificados e informados os nomes de todos os usuários do SUS que, desde a entrada em vigor da Lei 12.732/2012, morreram com diagnóstico de câncer após demora no início do tratamento. Para cada um desses pacientes, o MPF solicita que os réus sejam condenados ao pagamento de indenização por danos morais coletivos em valor não inferior a R$ 100 mil.

É requerida ainda indenização de pelo menos R$ 50 mil por usuário do SUS que não teve acesso à terapia contra o câncer no prazo máximo de 60 dias. Por fim, a ação pede que a União e o estado de São Paulo paguem no mínimo R$ 10 milhões, caso não consigam identificar todos os pacientes oncológicos cujos direitos ao tratamento foram desrespeitados.

Amplo e complexo
O descumprimento do prazo para início do tratamento eleva o número de mortes pela doença. Mas uma solução está distante.

A normalização do atendimento e dos registros dos pacientes deveria provocar uma melhora no tratamento e evitar mais mortes. Porém, há também de serem levados em conta a enorme demanda para tratamento oncológico no país, a estrutura subdimensionada do sistema — incluindo profissionais da saúde e estrutura física e equipamentos —, os valores dos repasses às instituições que atendem oncologia, além da burocracia. Essa é a opinião de especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Também não há como estimar um prazo para que os pacientes sintam melhora no atendimento na rede pública, uma vez que a falta de dados adequados e inconsistência dos registros está impregnada no SUS há pelo menos cinco anos.

"A oncologia é um tratamento de alta complexidade e ultrapassa o teto da verba repassada pelo SUS aos hospitais, onde mais de 65% dos tratamentos da rede pública estão baseados em instituições filantrópicas. Não adianta multar por atraso no início desse tratamento se não houver uma rede melhor estruturada para tratar câncer", reclama a advogada especializada em Direito da Saúde Luciana Rodrigues Faria, sócia-diretora do Rodrigues Faria Advogados, de Santos.

Outro especialista no setor, Murilo Aranha, do Warde Aranha Advogados, de São Paulo, vai mais longe para explicar a situação. "A multa em si para o descumprimento da lei é um fato que vai ficar vago. É necessária uma solução prática para o problema, como reestruturar os equipamentos públicos, cujo atendimento está muito inchado, além de melhorar a burocracia, muito extensa, e também resolver as brechas deixadas na lei, como o início da contagem do prazo para começar o atendimento. Só ordem judicial às vezes não é suficiente para resolver o problema. Talvez os pacientes possam sentir de fato alguma alteração quando as multas começarem a ser aplicadas, mas se não solucionar os pontos vagos da lei específica, não haverá avanço”, adverte,

Médio e longo prazos
Uma vez deliberadas pelo juiz federal, avalia a advogada Juliana Paro, do Bonomi e Paro Advogados, de São Paulo, as determinações positivas só serão sentidas pelos usuários do SUS em médio e longo prazos; mas também serão necessárias outras modificações no sistema de atendimento aos pacientes diagnosticados com neoplasia.

"As determinações judiciais por causa da ACP serão um passo importante, mas não vão resolver 100%. Não será de um dia para o outros que haverá um resultado melhor. É preciso reestruturar todo o sistema que apresenta inconsistências, conforme o próprio MPF já pôde constatar", explica Juliana.

Para a advogada especializada em Direito da Saúde, o cumprimento da lei dos 60 dias só poderá ocorrer com mais servidores/profissionais da saúde atuando, com alterações no sistema de cadastro de pacientes ou mesmo com a troca de todo o sistema.

"Não há como mensurar, mas a tendência, após o julgamento pela Justiça Federal, é melhorar. Há muita defasagem hoje. Por exemplo, a notificação do diagnóstico, que deveria ser compulsória, não está sendo realizada. O próprio sistema não funciona direito", prevê.

O início de tudo
O processo, movido pelo MPF contra a União e o governo do Estado de São Paulo, teve como base o caso de uma mulher que em dezembro de 2021 foi diagnosticada com câncer nos ossos, iniciado nas mamas, e estava internada no Hospital Estadual de Bauru, interior paulista, sem conseguir agendar as sessões de quimioterapia.

A partir desse caso, foi possível constatar que o registro e o monitoramento dos casos de câncer em São Paulo e no Brasil não têm sido feitos da forma correta, devido à ausência de uma ferramenta oficial para cadastro das informações no Ministério da Saúde. Documento da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo (SES/SP), com informações do Grupo de Planejamento e Avaliação da Coordenadoria de Regiões de Saúde, revela pontos críticos sobre o diagnóstico e o tratamento de pacientes oncológicos no estado e sobre ações propositivas adotadas pela SES/SP.

A Secretaria estadual pontuou em sua explicação à consulta do MPF que o SUS não dispõe de sistemas de informação que permitam aferir a quantidade de pacientes diagnosticados com câncer e que aguardam início de tratamento. Lembrando que, em 2019, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) criou o Painel Oncologia, um instrumento de gestão para tentar adequar a atenção oncológica à chamada Lei dos 60 Dias e, apesar de ser uma ferramenta não oficial, é a única disponibilizada pelo Ministério da Saúde para avaliar o intervalo máximo entre o diagnóstico de câncer e o início do tratamento. Isso porque o sistema oficial do Ministério da Saúde, denominado Siscan, retirou o módulo de tratamento do sistema, que tinha como propósito justamente captar os dados do tempo de tratamento, mas apresentava várias inconsistências.

A Secretaria de Saúde do governo paulista admite que há um alto percentual de pacientes "sem informação de tratamento" (32% em 2018 e 45% em 2019). O que indica que o Painel carece de melhoria e evidencia a necessidade de se ter um sistema oficial para obtenção dos dados referentes ao tempo de tratamento.

Pressfoto/Freepik
Pressfoto/FreepikPandemia de Covid-19 agravou o quadro de espera por tratamento de câncer em SP

Dados ignorados
A situação dos pacientes oncológicos no SUS em São Paulo é delicada. Não há como definir a quantidade de pacientes na fila há mais de 60 dias para iniciar tratamento em 2020 e 2021. Estima-se que a ausência de informações sobre tratamento atinja quase a metade dos pacientes oncológicos paulistas.

De acordo com as previsões sobre casos para 2020, o estado de São Paulo comportaria, conforme os parâmetros da Portaria MS/SAS 1399/2019, o número de 117 serviços de alta complexidade em oncologia, mas atualmente conta com 82, sendo que alguns desses prestadores têm pendências na habilitação de serviços.

A situação se torna ainda mais grave a partir da crise da Covid-19, em 2020. "Muitas pessoas saíram dos convênios particulares e passaram a procurar o SUS. As instituições filantrópicas, como as Santas Casas, passaram a receber muito mais pacientes vindos de várias outras cidades. Soma-se a isso o alto custo dos medicamentos, dos exames, que tornam o tratamento de alta complexidade. Há falta de estrutura para atender a toda a demanda. A verba repassada tem um teto, e a conjuntura faz com que a conta não feche. É preciso exigir o aumento desse teto ou as Santas Casa vão quebrar para atender a todos os pacientes oncológicos e de outros setores, além daqueles residentes em outras localidades", explica Luciana Rodrigues Faria.

Em 2019, 18,6% dos pacientes oncológicos do estado de SP (equivalente a 18.475 pessoas) esperaram mais de 60 dias para iniciar tratamento; naquele ano, a ausência de informações sobre o tratamento recaiu sobre 45,22% dos pacientes oncológicos (cerca de 44.939 pacientes).

Já em 2018, 25,13% dos pacientes oncológicos no estado de São Paulo (o que equivale a 16.995 pacientes) iniciaram o tratamento após 60 dias da data do diagnóstico e, sobre 32% dos pacientes diagnosticados (21.636 pacientes), não havia sequer informações sobre tratamento.

"A notificação dos novos casos deve ser compulsória. Mas isso não está sendo realizado. O sistema atual não funciona", analisa Juliana Paro. São muitos os problemas que vão desde a fase de diagnóstico de vários tipos de câncer, com prazo superior a 60 dias entre a solicitação no sistema Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde (Cross) e o agendamento da primeira consulta oncológica, sem contar o prazo para iniciar o tratamento.

Parâmetros inadequados
Em relação ao atraso no início dos tratamentos, de acordo com o MPF, há várias possíveis causas, dentre as quais o subdimensionamento da programação/quantitativo de internações cirúrgicas, quimioterapia e radioterapia, com percentuais de execução física e financeira acima do programado, "o que evidencia a inadequação dos parâmetros estabelecidos", subfinanciamento e déficit orçamentário, de acordo com a ACP.

Há também falta de disponibilidade de dados sobre os pacientes e de códigos específicos de procedimentos de cuidados paliativos — aqueles conferidos aos pacientes oncológicos que não reagem mais ao tratamento.

De acordo com a Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp), os dados de que dispõe não permitem responder à indagação sobre quantos pacientes já diagnosticados com neoplasia maligna não tiveram início de tratamento no prazo de 60 dias e ainda aguardam seu início (terapias do câncer, cirúrgicas e clínicas) pelo SUS, no estado de São Paulo.

O banco de dados do Registro Hospitalar de Câncer do Estado de São Paulo (RHC/SP), consolidado em 31 de março de 2022, possui informações completas disponíveis somente até o ano de 2017.

Falta de controle
Conforme o procurador da República Pedro Antônio de Oliveira Machado, que assina a ação civil púbica, a situação é delicada, pois há "absoluta fragilidade dos registros e falta de controle pelas autoridades de saúde, pois a FOSP respondeu, surpreendentemente, que padrões internacionais para registros de câncer (padrões esses sobre os quais não traz qualquer dado), 'aceitam' um hiato de até 30 meses entre a data do diagnóstico e a data do registro do caso', ou seja apresentou uma justificativa absolutamente inaceitável, considerado o marco legal de regência". Além disso, a FOSP "não informou os dados requisitados que possibilitariam aferir o cumprimento da lei, a obediência aos direitos dos usuários do SUS, bem como a responsabilidade pelo descumprimento".

É "evidente que essa situação calamitosa de extrema demora e ausência de dados nos registros hospitalares sobre câncer impactam diretamente na qualidade da assistência prestada aos pacientes, bem como na avaliação da eficácia de diagnóstico e tratamento, no planejamento hospitalar, no correto dimensionamento e oferta de vagas de exames diagnósticos e tratamentos, no direcionamento de pesquisas, na elaboração de programas de saúde pública e no acompanhamento das políticas de saúde destinadas à prevenção e tratamento do câncer. Em suma, impactam diretamente na vida ou na morte de milhares de pessoas todos os anos. A situação é desoladora no que toca à ausência de informações precisas e fidedignas, pois a Fundação Oncocentro de São Paulo conseguiu encaminhar apenas alguns dados parciais abrangendo as vinte neoplasias mais frequentes em relação ao período solicitado (2019-2021), dados esses recebidos de 38 instituições com atendimento pelo SUS", afirma o procurador.

Em descumprimento da Lei 12.732/2012, o tempo médio de espera superior a 60 dias entre o primeiro cadastro e o início do tratamento, nos anos de 2019, 2020, 2021, nas unidades que enviaram os registros à FOSP, atingiu em média cerca de 16 a 20% dos pacientes oncológicos no estado. "Todavia é assustadoramente dramático verificar que algumas neoplasias chegaram a ter, respectivamente, 46% e 44% de pacientes aguardando início de tratamento em prazo superior a 60 dias no ano de 2019 (pré-pandemia)", criticou o procurador.

O processo do MPF é claro ao apontar que "a Secretaria de Estado da Saúde e o Sistema Único de Saúde simplesmente não têm controle confiável, nem os dados totais" sobre pacientes e a incidência da doença.

A ACP, que aguarda decisão da Justiça Federal, também requereu que, nos casos suspeitos de câncer, os exames para o diagnóstico completo sejam feitos em até 30 dias, conforme determina a lei.

A demora em diagnosticar neoplasias pelo SUS reduz chances de cura. O câncer é o principal problema de saúde pública no mundo e já está entre as quatro principais causas de morte prematura (antes dos 70 anos de idade) na maioria dos países.

No Brasil, a estimativa para cada ano do triênio 2020-2022 aponta que ocorrerão 625 mil casos novos de câncer. Isso equivale a 1.712 novos casos por dia ou 71 pessoas diagnosticadas com a doença a cada hora.

ACP 5003039-35.2022.4.03.6108

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