Direitos Fundamentais

Tecno-autoritarismo, tecno-fascismo societal, democracia e proteção de dados

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13 de novembro de 2022, 12h12

O assim chamado tecno-autoritarismo, termo que tem sido cada vez mais utilizado nos últimos anos, consiste, grosso modo, na utilização de recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados, em especial no contexto da expansão da digitalização e das tecnologias de informação e comunicação (TICs), de modo a aumentar em termos quantitativos e qualitativos o controle exercido pelo Estado e pelas grandes corporações sobre a população, impactando direta e indiretamente os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, dentre os quais, a dignidade da pessoa humana, os direitos da personalidade (destaque para a privacidade e para a proteção de dados pessoais) e as liberdades fundamentais. A lista, calha frisar, é apenas ilustrativa, pois em causa está a proteção e a promoção de direitos de todas as dimensões, ou seja, tanto direitos civis e políticos, quanto direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais.

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Nesse contexto, segundo Byung-Chul HAN, o que está se construindo é um regime de informação, que consiste em "uma forma de dominação na qual as informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos". De acordo com o autor, "em oposição ao regime disciplinar, não são os corpos e energias que são explorados, mas, informações e dados". Nessa perspectiva, prossegue, "não é a posse de meios de produção que é decisiva para o ganho de poder, mas o acesso a dados utilizados para a vigilância, controle e prognóstico de comportamentos psicopolíticos" [1].

É preciso sublinhar, ainda nesta quadra preliminar, que o tecno-autoritarismo pode se dar em um Estado que já é definido como autoritário ou mesmo ditatorial, o que apenas agrava a situação (a ditadura se expande e intensifica mediante o uso da tecnologia), mas igualmente tem se manifestado de modo crescente e cada vez mais preocupante no âmbito de Estados Democráticos, contribuindo para o processo já em curso de fragilização (crise) da democracia e das democracias que ainda merecem ostentar esse rótulo. Aliás, o problema do tecnoautoritarismo nas democracias é também objeto de amplo e de relevantíssimo projeto protagonizado pelo Data Privacy Brasil, desde 2020, tendo o tema também sido discutido em painel realizado por ocasião da "Data Privacy Global Conference", em 8/11/2022, do qual o primeiro autor teve a oportunidade de participar.

Nesse contexto, vale a pena mencionar que, segundo o Democracy Index 2022 do Visual Capitalist [2], em 2020 49.4% da população mundial vivia em algum tipo de democracia, percentual que, em 2021 baixou para 45.7%.

De acordo com a mesma fonte, em 2021, 37,1% da população mundial vivia em estados autoritários (v.g. Rússia, China, Venezuela, Cuba, Nicarágua), 17,2% em estados tidos como sendo regimes híbridos (v.g. México, Equador, Bolívia, Turquia), 39,3% em estados definidos como democracias frágeis ou imperfeitas (v.g. EUA, França, Espanha, Itália, Portugal, Brasil), ao passo que apenas 6.4% da população vivia em democracias chamadas de plenas (v.g. países nórdicos, Alemanha, Canadá, Irlanda, Japão, Islândia, Coreia do Sul, Suíça, Japão, Reino Unido – este já no limite -, Uruguai, Chile, Costa Rica).

O panorama acima referido é elaborado a partir de determinados critérios para justificar a classificação dos estados em um dos quatro grupos. São eles: a) o processo eleitoral e o pluralismo político; b) o funcionamento do governo; c) os níveis de participação política; d) a cultura política; e) a proteção de direitos civis e políticos.

Cabe agregar que em relação a todos os critérios e níveis referidos os impactos das tecnologias de informação e de comunicação e da digitalização se fazem presentes e em todos eles têm avançado manifestações das mais diversas — nada obstante com intensidade diferenciada — de tecno-autoritarismo.

Além disso, tal processo vem se expandindo rapidamente ao longo dos anos, seguindo o ritmo da ampliação em termos quantitativos e qualitativos da transformação digital e da cada vez mais adiantada passagem de um capitalismo industrial para um capitalismo informacional (Manuel Castells [3]).

Outro aspecto a destacar, é que, embora se possa afirmar que o tecno autoritarismo é, em primeira linha, um fenômeno protagonizado pelo Estado, existe igualmente uma espécie de tecno-autoritarismo social, o que sensivelmente agrava o quadro.

Ora, basta olhar, entre outros elementos, para o fenômeno do discurso do ódio em termos individuais e coletivos, dos apelos em favor da intervenção militar e dos ataques em geral às instituições democráticas, a desinformação, que, em boa parte, surjam e se expressam no seio da população, embora muitas vezes direta ou indiretamente estimuladas por setores do poder público.

No mesmo sentido e possivelmente de modo ainda mais impactante e preocupante, registra-se a exponencial concentração de poder econômico, tecnológico e informacional — ademais de sua influência política — das grandes corporações, designadamente as Big Techs [4]. Essas também concentram dados e vigiam a todos e a todo o tempo. O que é pior, são em grande parte imunes — ou pelo menos muito resistentes – a qualquer tipo de controle/regulação, seja pelo Estado, seja pela sociedade.

Atualmente, são dos mais diversos os fatores e eventos que permitem identificar o tecno-autoritarismo no Brasil e no mundo. Como aqui se pretende — mesmo que de modo sumário — enfatizar o problema da exclusão digital, seguem alguns exemplos de todos conhecidos: a) a desinformação online, com destaque para as assim chamadas fake news em período eleitoral; b) o acirramento do discurso do ódio e do extremismo, criando novas formas de fundamentalismo e acirrando outras, com o consequente ruptura do tecido social, polarização e o correlato enfraquecimento da democracia representativa; c) a hiper conexão e os problemas a ela inerentes, como o caso da perda e desintegração dos laços sociais, o efeito bolha, a dificuldade de tomada de decisão livre e consciente, a superexposição e a facilitação do controle e monitoramento pelo Estado e por atores sociais; d) o vigilantismo (v.g. pela sofisticação e expansão das câmaras de reconhecimento facial); e) a concentração de poder informacional.

Já no concernente à exclusão digital — desigualdade na esfera do acesso à internet e às TICs —, que favorece em muito e reforça as estruturas de dominação e o tecno- autoritarismo, é preciso lembrar que quase a metade dos habitantes do planeta — cerca de 2,9 bilhões de pessoas — não tem sequer acesso à Internet, segundo advertiu no final de 2021 a União Internacional de Telecomunicações (UIT), o organismo especializado da Organização das Nações Unidas (ONU). A desigualdade no que diz com o acesso à Internet e às TICs se chama exclusão digital e afeta 52 % das mulheres e 42 % dos homens do mundo. Este fosso se torna ainda maior quando falamos de regiões: segundo dados extraídos do portal Internet World Stats em dezembro de 2021, na África só 43,1 % de seus habitantes vivem conectados, com relação a 88,4 % dos europeus e 93,4 % dos norte-americanos [5].

Por conta da exclusão digital, grande número de pessoas tem ficado à margem da evolução tecnológica e, consequentemente, acabam por formar uma massa de analfabetos tecnológicos, que se caracterizam pela incapacidade em "ler" o mundo digital e lidar de modo adequado com a tecnologia moderna.

Além disso, a exclusão digital é denunciada em todo o mundo como a forma mais moderna de violência e como uma modalidade sutil de manutenção e de ampliação das desigualdades. De outra parte, a exclusão digital não se dá apenas no interior das classes sociais e das regiões de um determinado país, mas também se estabelece entre nações e continentes.

A exclusão digital costuma ser classificada em três tipos (manifestações), designadamente: a) a exclusão da possibilidade de acesso aos recursos digitais; b) a exclusão do uso, que diz respeito à falta de competências digitais, a qual, por sua vez, impede o manejo da tecnologia (nesse sentido, apenas para dar um exemplo, a UIT indica que há 40 países onde mais da metade de seus habitantes não sabem anexar um arquivo em um e-mail) [6]; c) exclusão de qualidade de uso, visto que embora possa existir o acesso aos recursos e também existem as competências digitais para usar a internet, faltam os conhecimentos para se fazer um bom uso da rede e dela extrair o máximo proveito possível da mesma, como se dá, v.g., no referente ao acesso à informação de qualidade.

Outro ponto a sublinhar, e que ilustra a perversidade de tais processos de exclusão, é que — a exemplo de outras disfunções e desigualdades — a exclusão digital atinge de modo mais impactante as mulheres, os afrodescendentes, os pobres, as pessoas com deficiência, os idosos e aqueles que vivem nas regiões mais distantes, carentes de infraestrutura.

De acordo com estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor com pessoas que têm renda de até R$ 1,5 mil mensais, para quase metade dos entrevistados o pacote de dados terminou antes do fim do mês, de tal sorte que a grande maioria deles passou a acessar a internet somente onde disponível wi-fi. Além disso, entre os que têm renda de até R$ 440 por mês, 77% já deixaram de acessar a rede para não gastar o pacote de dados [7].

Ainda nesse contexto e de acordo com o estudo acima referido, é de destacar que a privação do consumo impacta principalmente usuários negros, jovens, menos escolarizados e os que usam planos pré-pagos. Outro ponto a ser sublinhado é o de que a pesquisa concluiu que as limitações no acesso à internet limitam também o acesso a diversos direitos.

A situação se agrava ainda mais, tendo em conta que nos últimos anos — processo acelerado pela aprovação e entrada em vigor da Lei do Governo Digital (Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021), gov.br passou a disponibilizar 4 mil serviços públicos digitais para o cidadão. O número representa 84% do total de 4,8 mil serviços que são oferecidos atualmente pelo governo federal para a população, registrando-se que a meta definida no âmbito da Estratégia de Governo Digital é de que 100% dos serviços públicos federais estejam digitalizados até o final de 2022 [8].

Em que pese os inegáveis avanços e benefícios resultantes de tal estratégia e do amplo leque de serviços digitalizados ofertados à população, os níveis de exclusão digital no Brasil — 17% dos brasileiros não têm acesso à rede, em regra nas áreas rurais e nas classes sociais mais baixas —, estão a impactar significativamente o exercício pleno da cidadania [9]. Se a isso forem somadas as duas outras modalidades de exclusão digital (a exclusão de uso e a exclusão de qualidade de uso), ademais do ainda elevado número de pessoas que não sabem ler nem escrever (6,6%) e o percentual de analfabetismo funcional — 20,2% da população entre 14 e 29 anos de idade (10,1 milhões de brasileiros) não completaram alguma das etapas da educação básica — percebe-se a extrema gravidade do quadro, isso sem contar que mais de metade das pessoas com 25 anos ou mais não completaram o ensino médio [10].

À vista do exposto, somando-se os níveis de exclusão digital e o analfabetismo pleno e funcional (que por si só já representa um grave problema) ainda presentes na população brasileira, a existência de uma divisão entre cidadãos de primeira categoria e de cidadãos de "segunda classe" ainda se tornou mais acentuada, abrindo cada vez mais espaço para estruturas de dominação tecno-autoritárias, mesmo em um Estado que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, foi projetado e formatado como um Estado Democrático de Direito.

Isso tudo faz lembrar de um texto clássico de Boaventura Sousa Santos, que, nos anos 1990, fazia referência ao que então designou de "fascismo societal", ao qual corresponde uma espécie de "Apartheid social", que, a depender do lugar, do contexto e da sua dimensão, chega a gerar a divisão da cartografia urbana em zonas civilizadas, que ainda vivem sob o signo do contrato social e mantém os parâmetros e procedimentos do Estado Democrático (e Social) de Direito, e, por outro lado, em zonas marcadas pela exclusão e pela selvageria, caracterizadas por uma espécie de retorno a um estado da natureza à feição de Hobbes, na qual o próprio Estado, a pretexto de salvaguardar a ordem e os direitos fundamentais, passa a atuar de forma predatória e opressiva, além da subversão gradual da ordem jurídica democrática [11].

Nessa perspectiva, tendo em conta a explosiva combinação da exclusão social e da exclusão digital, somadas às demais manifestações tecno-autoritárias (estatais e na sociedade civil) acima referidas (em caráter ilustrativo!), é possível sugerir que se está a vivenciar, em maior ou menor medida, um estado de coisas que, na esteira da fórmula de Boaventura Sousa Santos, poderia ser chamado de "fascismo tecno-societal".

Apesar de tudo, o quadro aqui sumariamente esboçado tem levado a reações importantes da mais diversa natureza, como — no caso brasileiro e dentre outras —, a recente aprovação, pelo Senado Federal, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 47/2021 [12], que insere a inclusão digital no catálogo de direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988. O que se espera é que tal iniciativa venha a ser exitosa, não apenas mediante a inserção formal da inclusão digital no texto constitucional, mas acima de tudo com sua conversão em realidade concreta para a cidadania brasileira.

 


[1] HAN, Byung- Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Gabriel S. Philipson (Trad). Petropolis, RJ: Vozes, 2022. p. 07.

[11] Cf. SANTOS, Boaventura Sousa. Reinventar a Democracia. Gradiva: Lisboa, 1998, p. 23 e ss.

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