Opinião

Leis de regulação concorrencial de plataformas digitais: cardápio de opções

Autor

  • Victor Oliveira Fernandes

    é conselheiro do Cade; professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) doutor em direito pela USP (Universidade de São Paulo) e especialista em regulação da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).

12 de novembro de 2022, 11h19

Na última quinta-feira (10/11), foi apresentado ao Congresso o Projeto de Lei 2.768/2022, de autoria do deputado João Maia (PL-RN), que dispõe sobre a operação de plataformas digitais que ofertam serviços ao público brasileiro. Este breve artigo não analisa o PL, mas faz algo que, neste momento, talvez seja ainda mais necessário: expõe quais são as escolhas de política pública cruciais que estão envolvidas na arquitetura de uma regulação concorrencial de plataformas.

Propostas legislativas desse gênero têm ganhado impulso em diversas jurisdições. A aprovação do Digital Markets Act pelo Parlamento Europeu em julho de 2022 é o símbolo maior dessa tendência. Mas há outras propostas relevantes — e que diferem substancialmente do DMA — em discussão no Reino Unido e no Congresso norte-americano (em especial a Lei para a Inovação e Escolha na América  — American Innovation and Choice Online Act — Aicoa) [1], além de um novo capítulo da lei de defesa da concorrência alemã que já está sendo aplicado (§19ª da Gesetz gegen Wettbewerbsbeschränkungen — GWB).

As bases dessas propostas foram discutidas em relatórios e em estudos técnicos produzidos por governos, e grupos representativos da academia da sociedade civil que identificaram problemas concorrenciais sensíveis em mercados como os de redes sociais, ferramentas de buscas, marketplaces, lojas de aplicativos e outros[2]. As proposição são, assim, frutos de diagnósticos sólidos sobre a suficiência de cada legislação antitruste local para lidar com estratégias empresariais de grandes plataformas que geram riscos de tombamento dos mercados digitais, deterioração da privacidade e diminuição da inovação.

Em comum, as propostas legislativas convergem que a intervenção antitruste ex post poderia ser complementada (e não substituída) por regimes de regulação ex ante assimétrica, os quais aliás seriam aplicados pelas próprias autoridades de defesa da concorrência. Esses novos regimes são "assimétricos" porque contém regras apenas para agentes econômicos que detêm posição concorrencial diferenciada dentro de mercados ou de ecossistemas digitais.

Pelo fato de os diagnósticos não serem totalmente idênticos em cada jurisdição, as caixas de ferramentas regulatórias apontadas como solução variam significativamente[3]. Por isso, antes de enfrentar um debate brasileiro, deve-se compreender quais são as diferenças dos modelos de regulação discutidos. Mais precisamente, é crucial afastar a ideia de que existe uma arquitetura única de regulação ex ante para plataformas digitais.

Colocando as principais propostas legislativas estrangeiras em perspectiva, é possível ver que cada proposta sopesa de forma diferente os riscos e benefícios de uma intervenção regulatória mais ou menos rígida. Mais do isso: cada uma avalia de forma única os dilemas de se afastar da lógica tradicional de intervenção antitruste. Como sistematizado na figura a seguir, suas distinções podem ser projetadas em pelo menos dois eixos, quais sejam: (i) o escopo setorial vis-à-vis traninsdustrial de intervenção e (ii) a predominância de uma estratégia de regulação baseada na lógica de comando e controle vis-à-vis um modelo de regulação de livre mercado típico da abordagem antitruste.

Figura 1 – Diferenças entre as propostas legislativas de regulação concorrência de plataformas (União Europeia, Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha)

Reprodução
ReproduçãoFonte: elaborado pelo autor

 

Desconsiderar os dilemas envolvidos em cada um desses eixos traz drásticos riscos para a economia digital. Mais do que isso, pode significar um caminho sem volta para a uma ordem econômico menos justa e com regras pouco transparentes para os agentes econômicos. Por outro lado, o alinhamento adequado das escolhas regulatórias pode sim tornar os mercados digitais muito mais contestáveis e alinhados com preocupações concorrenciais que hoje se tornam tão graves ao ponto de não poderem ser desconsideradas.

Passamos então à compreensão dos trade-offs que estão envolvidos no posicionamento dos regimes regulatórios em cada um dos eixos da figura acima.

Diferenças na definição do “alvo” regulatório (escopo setorial vs. transindustrial)
Em cada legislação, o "alvo" da intervenção regulatória é definido por um conceito normativo próprio. No DMA, tem-se o conceito de gatekeeper. Na proposta do Reino Unido, trata-se do conceito de "status de mercado estratégico" ("strategic market status"). No Aicoa, chama-se de "convered platforms" (Section 2, (5). Nos termos do artigo 19ª da BWG, trata-se dos agentes econômicos com "importância excepcional para a concorrência entre diferentes mercados" (überragende marktübergreifende Bedeutung für den Wettbewerb).

Todos esses conceitos estão relacionados à compreensão de que a posição ocupada por grandes plataformas deve ser o gatilho da intervenção regulatória — e não apenas a sua capacidade de fixar preços ou custos supra competitivos em mercados rigidamente delimitados (FERNANDES, 2022, p. 274–275). O enquadramento de um agente econômico dentro de cada um desses conceitos, por sua vez, depende do atendimento de critérios quantitativos e/ou qualitativos que variam em cada jurisdição.

Na versão aprovada do DMA, por exemplo, há uma clara preponderância de critérios quantitativos baseados em faturamento e número de usuários. Nessa lei, esses critérios são aplicados de forma ex lege, cabendo às empresas eventualmente refutarem essa designação perante a Comissão Europeia seguindo um procedimento descrito na lei, mas absurdamente restritivo (Considerando 23 do DMA). A lógica é bastante semelhante àquela prevista na proposta da Aicoa, com a diferença de que aqui a designação como covered platform depende de uma decisão conjunta do Department of Justice (DoJ) e da Federal Trade Commission (FTC), que podem eventualmente retirar a designação (Section 3, (d), (2).

Por outro lado, a proposta do Reino Unido e a nova legislação concorrencial alemã afastam-se da lógica ex lege de definição do alvo regulatório. Na proposta apresentada pela CMA, caberá à Digital Markets Unit (DMU), uma unidade criada dentro da autoridade antitruste, implementar o procedimento de designação dos detentores de status de mercado estratégico. No sistema alemão, o Bundeskartellamt precisa abrir um procedimento formal em que avalia concretamente a atuação do agente para, ao final, chegar à conclusão de que ele se enquadra ou não no novo artigo 19ª da BWG. Até o presente momento, a autoridade antitruste finalizou esse procedimento em relação aos grupos Meta, Amazon e Apple.

A designação dos gatilhos normativos dessas legislações tende a seguir uma lógica diferente do tradicional conceito antitruste de posição dominante. A refutação da designação normativa a partir de critérios qualitativos, porém, é uma válvula de escape que reaproxima a lógica antitruste. Essa válvula é importante para que se evite a aplicação das obrigações regulatórias a agentes econômicos que, a despeito de formalmente atingirem os critérios previstos na lei, materialmente não são capazes de restringir a concorrência.

Soma-se a essas diferenças de critérios quantitativos e qualitativos o fato de que algumas legislações estabelecem de forma prévia e rígida quais são os setores econômicos ou os modelos de negócios que estarão submetidos à regulamentação. No caso do DMA, por exemplo, são dez modelos de negócios exaustivamente definidos no Artigo 2º, (2). Ainda que sem deixar claro quão exauriente pode ser essa lista, a proposta do Aicoa também faz referência a alguns modelos de negócios como plataformas que intermedeiam vendas de anúncios, produtos, serviços ou pagamento, incluindo aplicações de software (Section 2, (9), (B).

Quando a rigidez dos critérios de designação é muito acentuada, as legislações podem enfrentar problemas. Dado o dinamismo dos mercados digitais, é possível que em pouco tempo as listas de setores econômicos prevista no DMA, por exemplo, tornem-se francamente obsoletas (CERRE, 2021, p. 21).

Opções de estratégia regulatória (comando e controle vs. regulação de livre mercado)
As divergências mais significativas entre as propostas dizem respeito à estratégia de regulação escolhida em cada regime. A literatura tradicionalmente contrapõe duas estratégias que podem ser pensadas como extremos de um espectro contínuo.

Numa ponta do espectro, temos a chamada estratégia de comando e controle, em que o Estado impõe uma série de proibições exaurientes previstas em lei sob uma lógica ruled-based, sancionando seu descumprimento (Morgan e Yeung 2007, 80–81). Na outra ponta desse espectro, pode empregar estratégias de controle de mercado (market-harnessing controls), com adoção de proibições principiológicas que incidem sobre as particularidades de cada contexto econômico, punindo comportamentos que geram resultados anticompetitivos ou práticas comerciais injustas (Baldwin, Cave, e Lodge, 2012, 114–15).

A escolha de uma estratégia regulatória mais inclinada a um ou outro extremo está refletida na discricionariedade administrativa da autoridade. Nas propostas legislativas em discussão, isso se reflete (i) no caráter genérico ou amplo das proibições previstas nas leis e (ii) na possibilidade de o agente econômico alvo da regulação apresentar justificativas de descumprimento baseadas em alguma racionalidade econômica (OCDE, 2021, 31–34).

O DMA preferiu um regime ex ante de regras detalhadas e exaurientes à adoção de standards baseados em princípios. Isso aconteceu principalmente em relação às obrigações listadas no artigo 5º dessa lei, que serão autoaplicáveis, de maneira uniforme e para todos os serviços abrangidos pela lei, independentemente das especificidades de cada mercado ou dos efeitos econômicos esperados (PETIT, 2021; SCHWEITZER, 2021, p. 24). Na versão final aprovada, essa escolha ficou bastante clara no Considerando 10 da proposta.

O Aicoa, por sua vez, apresenta uma lista mais enxuta de proibições na sua Seção 3, incluindo vedações relacionadas à autopreferência de serviços na plataforma, a restrições de interoperabilidade, ao condicionamento do acesso à plataforma principal para utilização de serviços secundários, à combinação de dados coletados em múltiplos serviço e à pre-instalação de aplicativos.

Porém, a diferença fundamental em relação ao DMA é que no regime do Aicoa existe a possibilidade de as empresas "alvo" justificarem o descumprimento das obrigações por meio das chamadas "defesas afirmativas" (affirmative defenses), podendo demonstrar que agiram no estrito cumprimento de um dever legal e, principalmente, que a conduta em questão não resultou ou não resultaria em um dano à concorrência, como previsto na Seção 3, "b", (2), (a). Eis aqui uma discrepância muito significativa: a proposta da Aicoa, portanto, está aberta a defesas baseadas em eficiência econômica como em geral ocorre nas investigações antitruste, com a diferença que, nesse caso, esse ônus será inteiramente transferido à empresa investigada.

A proposta do Reino Unido, por sua vez, é a mais sofisticada em termos do processo de elaboração da lista de deveres regulatórios. A proposta prevê que, após a edição de uma nova lei, a DMU irá estabelecer um código de condutas para as plataformas a partir de um diálogo contínuo com os agentes regulados e com outros reguladores, sempre considerando as especificidades de cada mercado digital.

De acordo com a proposta submetida à consulta pública pela DMU, estaríamos diante de uma estrutura regulatória em camadas em que a lei traria alguns princípios mais amplos, mas o código de condutas em si só seria fixado a partir de uma análise caso-a-caso. Como destacado no documento-base da discussão "os objetivos do código devem ser estabelecidos na legislação, com o restante do conteúdo de cada código a ser determinado pela DMU, adaptado à atividade, conduta e danos a que se destina" (tradução livre) (CMA, 2020, C14).

Já a lei alemã prevê expressamente que as proibições a serem impostas pela autoridade antitruste aos agentes "alvo" podem ser afastadas se o comportamento for objetivamente justificado (19ª GWB, 3). Porém, o ônus da prova é normativamente transferido à empresa com posição de mercado significativa, regra procedimental que vale tanto para os procedimentos sancionatórios quanto para os procedimentos de medidas preventivas e acordos (19ª GWB, 4).

Conclusão
As discrepâncias entre os modelos regulatórios não são superficiais. Elas envolvem juízos de política pública sobre as deficiências e benefícios de cada estratégia de regulação. Leis como o DMA que movem o pêndulo para a zona de comando e controle o fazem por pressupor que essa estratégia é mais eficaz, precisa e potencialmente mais rápida do que a intervenção antitruste. Mas isso não quer dizer que essa estratégia é imune às suas próprias falhas.

Muito pelo contrário, são longamente conhecidas as desvantagens dessa estratégia. Ela tende a ser extremamente inflexível e, em setores dinâmicos como os mercados digitais, podem ser tornar rapidamente obsoletas, além de gerarem altos custos, tanto elevados custos de enforcement para o Estado, quanto elevados custos de compliance para as empresas (BALDWIN et al., 2012, p. 108–111). Além disso, as propostas que pesam a mão no comando e controle podem dissuadir comportamentos que geram eficiência econômica e que podem beneficiar os consumidores finais.

É claro que nada disso sugere que os modelos de intervenção antitruste sejam universalmente superiores à modelos regulatórios. Mas o que o diálogo internacional tem nos mostrado é que podem existir outras abordagens regulatórias baseadas em códigos de conduta ou proibições principiológicas que talvez sejam mais flexíveis e mais resolutivas. As decisões sobre como se movimentar em cada eixo dos dilemas regulatórias devem ser refletidas criticamente pela sociedade — com a maior participação possível dos agentes econômicos, dos reguladores e, principalmente, dos usuários finais. Esperamos que este breve artigo impulsione de alguma forma esse debate.


[1] Há outras propostas legislativas importantes em discussão no Congresso Norte-Americano.Neste artigo, estamos tratando especificamente da proposta da Aicoa apresentada pela senadora Amy Klobuchar em agosto do ano passado, com suas emendas de 2022 (S.2992).

[2] Para uma aprofundada revisão desses principais relatórios, cf. CADE (2019). Especificamente no caso norte-americano, uma submissão foi formada na Câmara dos Deputados para tratar do tema, cujos trabalhos resultaram na publicação de um extenso relatório  (U.S. House of Representatives, 2020).

[3] Para uma análise mais profunda dessas distinções, cf. Botta (2021) e Deutscher (2022).

Autores

  • é professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa), doutor em direito pela USP (Universidade de São Paulo), especialista em regulação da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal.

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