Ambiente Jurídico

A Corte Internacional de Justiça e casos envolvendo o meio ambiente

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12 de novembro de 2022, 18h17

Em artigo recente fizemos algumas anotações sobre as leis da guerra e o meio ambiente, observando que guerras não são apenas uma ação entre humanos; são uma atividade de elevada interferência e destruição do ecossistema onde ocorre e nos ecossistemas próximos [1]. As questões ambientais são transfronteiriças e o dano produzido em um local se espalha e atinge locais próximos ou distantes. O crescimento da população, da economia e do uso dos recursos naturais tem levado a um crescente contencioso entre nações ligado à poluição do ar, ao uso da água, à mineração e as várias facetas das vertentes ambiental, econômica e social.

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O Tribunal ou Corte Permanente de Justiça Internacional é um tribunal de jurisdição internacional criado em 1921 pela Liga das Nações, instalado em 1922 no Palácio da Paz, em Haia; cessou suas atividades em 1940 quando a cidade foi tomada pelas forças nazistas e foi extinto em 1946. Nesse período o tribunal deliberou sobre 38 processos contenciosos entre Estados e emitiu 27 recomendações; foi sucedido em 1946 pelo Tribunal ou Corte Internacional de Justiça, criado pela Organização das Nações Unidas. O tribunal cuidou de conflitos envolvendo territórios, nacionalidades, relações de trabalho, populações, direitos alfandegários e apenas um caso diretamente ligado ao ambiente, Diversion of Water from de Meuse (Holanda v. Belgica), 1937, em que a Holanda reclamou da construção de canais e barragens pela Bélgica, em ofensa a um tratado de 1963 regulando o desvio das águas do Rio Meuse em canais de navegação e irrigação e barragens pela Holanda. Ambos os Estados haviam expandido seus sistemas de canais e irrigação e a corte concluiu que tais ações não eram vedadas pelo tratado, desde que o fluxo da água não fosse prejudicado [2].

A Corte ou Tribunal Internacional de Justiça, que sucedeu à Corte Permanente de Justiça Internacional e instituída pela Carta das Nações Unidas, mantém a sede em Haia e resolve questões jurídicas apresentadas pela Assembleia Geral ou pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas; respondem também consultas de órgãos e agências especializadas autorizados pela Assembleia Geral da ONU. Como a anterior, a Corte Internacional cuida de questões trazidas por Estados e não tem jurisdição penal; não confundir com o Tribunal Penal Internacional, que apura e sanciona indivíduos acusados de determinados crimes contra a humanidade.

A jurisdição ambiental internacional envolve casos relevantes de arbitragem. Em Trail Smelter Arbitration (EUA v. Canadá), 1941[3], discutiu-se a degradação ambiental que uma fundição situada no Canadá causava, via poluição aérea, aos agricultores dos Estados Unidos. O tribunal arbitral instituído pelos países decidiu que o Canadá devia pagar uma indenização aos Estados Unidos e reduzir a poluição, fazendo uma declaração frequentemente citada: "Sob os princípios da lei internacional, como das leis do Estados Unidos, nenhum Estado tem o direito de usar ou permitir o uso de seu território de uma maneira que cause danos pela fumaça em ou no território de outro [Estado] ou a propriedades ou pessoas lá estabelecidas, quando o caso é de sérias consequências e danos estabelecidos por prova clara e evidente" [tradução livre]. Smelter foi o primeiro caso a enfrentar princípios do direito internacional, que subordinava a obrigação ambiental internacional à soberania e ao livre desenvolvimento industrial; e segundo a decisão, um país que cria poluição transfronteiriça ou efeitos danosos é responsável pela degradação causada, direta ou indiretamente, ao outro país.

In Lake Lanoux Arbitration (França v. Espanha), 1957 [4], a Espanha impugnou alterações que a França pretendia fazer no Lago Lannoux, ao sul dos Pireneus; o lado está em território francês, mas suas águas refletem no Rio Carol que mais ao sul adentra a Espanha e a vila de Puigcerdà; alegou-se que o Tratado de Bayonne de 1866 previa que somente com o duplo consentimento obras que refletissem nas águas do outro país poderiam ser iniciadas. O tribunal entendeu que, uma vez que o fluxo das águas para Espanha não seria prejudicado, o duplo consentimento era desnecessário.

Em Testes Nucleares (Austrália v. França), 1974 [5], A Austrália e a Nova Zelândia pediram que a CIJ se manifestasse sobre a legalidade dos testes nucleares que a França realizava desde 1966 no Atol de Mururoa, Polinésia Frances, arquipélago de Tuamotu, Pacífico Sul. Os testes cessaram. O caso foi reaberto em 1995 pela Nova Zelândia para manifestação sobre os novos testes nucleares feitos pela França, agora subterrâneos; os países alegaram que a proximidade do território e o resquício de radioatividade representavam grande risco para seus habitantes. A corte rejeitou o pedido de revisão da decisão anterior e das medidas cautelares por entender que os testes subterrâneos não se igualavam aos testes atmosféricos. Os votos divergentes, em especial do Juiz Weeramantry, deixam certo que a corte não pode ignorar conhecimento científico acrescido entre 1974 [quando explosões nucleares subterrâneas eram consideradas seguras] e 1995; não se pode desconsiderar o princípio da equidade intergeracional e a segurança das gerações futuras da Nova Zelândia, o direito dos não nascidos; a dificuldade de prova pela Nova Zelândia do efeito presente e futuro deve ser resolvida pela aplicação do princípio da precaução, que integra o direito internacional do ambiente; o caso justificava a elaboração de um estudo de impacto ambiental; a ilegalidade da introdução de resíduos radioativos no ambiente marinho. Tais princípios e conclusões ecoam no direito ambiental.

Em Legalidade da Ameaça ou do Uso de Armas Nucleares, 1996, uma consulta formulada pela Assembleia Geral da ONU [6], a corte não encontrou fundamento para proibir a ameaça ou o uso de armas nucleares em conflitos armados; mas afirmou que princípios do direito humanitário asseguravam a proteção do direito internacional aos combatentes e não combatentes. Em voto dissidente, o Juiz Shahabuddeen foi mais além, pois o direito humanitária [a humanidade como fonte de direito] tornava ilegal o uso de tais armas mesmo em circunstâncias extremas [a corte havia considerado não poder proibir o seu uso em caso de defesa ou se necessário para evitar a destruição do país].

Em Gabcíkovo-Nagymaros Project (Hungria v. Eslovaquia), 1997 [7], a corte debruçou-se sobre o Tratado de Budapeste de 1977. O tratado previa a construção e a operação conjunta de um sistema de barragens no Rio Danúbio que contribuiria substancialmente para a economia dos dois países, facilitando a navegação e movimentando duas usinas hidrelétricas, mas trazendo sério dano ao ambiente. Ante a crescente oposição ao projeto pela ameaça ambiental, a Hungria notificou a Eslováquia da paralisação da construção; a Eslováquia então pôs em operação uma variante que reduziu drasticamente o fluxo das águas rio abaixo, prejudicando os interesses da Hungria no rio. A corte viu-se confrontada pela primeira vez com o balanceamento da proteção ambiental e da necessidade de desenvolvimento e reconheceu a existência de normas ambientais e do direito internacional como um princípio do direito internacional, e direcionou os Estados a considerar o princípio do desenvolvimento sustentável [8].

A Corte Internacional de Justiça reconheceu como integrantes do direito ambiental internacional o princípio de que um país não pode usar seu território ou seus interesses para causar dano a outro, que a guerra não pode causar dano injusto ou desnecessário a civis e combatentes ou ao país em que se desenrola, que o princípio da precaução, o desenvolvimento sustentável e o direito humanitário são parte relevante do direito das nações. No entanto, sua jurisprudência sofre críticas [9] de estudiosos, que veem uma possibilidade desperdiçada para o desenvolvimento de um sistema normativo e institucional de proteção ambiental mais significativo pelo apego a aspectos formais ou de procedimento para não enfrentar o tema ou limitou-se a proclamações teóricas sobre a relevância do ambiente sem delas extrair as consequências devidas, como ocorreu no caso Testes Nucleares (Nova Zelândia e França), 1974, em Legalidade do Uso de Armas Nucleares por um Estado em Conflitos Armados, 1996, e em Gabcíkovo-Nagymaros, 1997. Há críticas sobre a exagerada adoção da perspectiva ética de matriz antropocêntrica, em que a proteção ambiental se justifica pela promoção da vida e do bem-estar humano, sem infirmar a apropriação econômica da natureza; e por analisarem os casos na perspectiva do direito entre nações e não dos direitos humanos. Tais limitações reduz, mas não invalida, a contribuição da corte para o desenvolvimento do direito ambiental internacional, que tem se baseado principalmente em tratados, resoluções, declarações e instrumentos de soft law.

Há também que reconhecer as limitações funcionais de CIJ ante a complexa relação entre Estados, a dificuldade de execução de suas decisões e a restrição do acesso a indivíduos e organizações da sociedade civil. Embora não tenha sido criada para isso, a corte tem contribuído para a elaboração de um corpo normativo do Direito Internacional Ambiental.

 


[8] Em um voto concorrente, o juiz Weeramantry fez uma alongada análise da tensão entre o desenvolvimento e a proteção ambiental. "A formulação correta do direito ao desenvolvimento é que tal direito não existe com um sentido absoluto, mas é relativo sempre à sua tolerância pelo ambiente" [tradução livre]. Após referir o extenso sistema de irrigação e manejo da água em várias culturas: os lagos gigantes e reservatórios construídos no Sri Lanka e que atenderam à necessidade humana por 2.500 anos, a rede de irrigação feita pelas tribos Shonjo e Shagga na Tanzania; o anciente sistema de irrigação dos 'qanats' que se espalha pelo Irã, e outros desenvolvidos pelos chineses, incas, aborígenes australianos. O Juiz Weeramantry anota a relação entre a sua longa sustentabilidade e a atitude protetiva do ambiente dos construtores; e particular ênfase no grande número de culturas que reconhecem que os humanos recebem o ambiente em confiança das gerações futuras, e têm agido assim. Ver DAVID HUNTER e al, International Environmental Law and Policy, Foundation Press, New York, 1998, pág. 239/247.

[9] JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO, A Corte Internacional de Justiça e a Proteção do Meio ambiente Global, Revista Culturas Jurídicas, vol. 4, nº 8, maio/agosto de 2017, pág. 10 e seguintes.

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