Opinião

Contratação das empresas estaduais de saneamento por entidades regionais

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Diego Ramos

    é graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) especialista em Direito Público Contemporâneo pela Faculdade de São Vicente (FSV) e advogado.

  • Pedro Henrique Braz de Vita

    é advogado professor doutorando mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation).

11 de novembro de 2022, 7h06

Que o novo marco legal do saneamento básico alterou profundamente a lógica do setor já é um chavão. Uma das apostas do modelo foi proscrever os arranjos diretos que permitiam às empresas estaduais de saneamento atuarem nos Municípios sem licitação. A eficiência demonstrada no procedimento licitatório tornou-se a regra. Daí ser necessário que a delegação dos serviços seja precedida de licitação. Inclusive, a "seleção competitiva do prestador de serviços" foi alçada ao patamar de princípio fundamental do novo arranjo institucional (cf. artigo 2º, XV da Lei 11.445/2007).

Esse modelo foi até o presente instante, inclusive, chancelado pelo STF, que indeferiu as medidas cautelares propostas contra a nova lei. Um dos pontos de questionamento era, precisamente, a reconfiguração das empresas estatais no setor e a proibição da contratação direta, via contratos de programa (caput do artigo 10 da Lei nº 11.445/2007), mudança a partir da qual as estatais deixaram de ter mercados cativos para sua atuação [1].

Em resumo, esse novo modelo busca assegurar que toda e qualquer eficiência do modelo seja dispersada em favor dos usuários, o que se faz por meio da competição institucionalizada por meio de procedimentos licitatórios. É pela licitação que se assegura que a melhor proposta será a implementada na execução dos serviços de saneamento.

A única exceção a essa exigência de licitação é a prestação por entidade vinculada ao titular do serviço. Isto é, a pessoa jurídica que integra a Administração do titular pode ser a prestadora sem ter que para isso disputar o contrato por meio de licitação (caput do artigo 10). A exceção é clara: a atuação sem licitação depende de a entidade integrar a Administração do titular. Quando não integrar, é proibida a atuação direta, independente do nome que se pretender dar a este vínculo (convênio, contrato de programa, o que quer que seja).

Contudo, como é natural em momentos de alteração conjuntural, os que se sentiram prejudicados buscam questionar os novos paradigmas. No caso em questão, a tentativa mais clara nesse sentido é a criação de um modelo de cooperação federativa na Paraíba, em que, segundo seus idealizadores, se permitiria que a Companhia Estadual de Saneamento prestasse serviços sem licitação [2].

Como o Direito — e a vida — melhora com o debate, as premissas desse modelo precisam ser discutidas quanto a sua legalidade. Inclusive, a nosso ver, tal iniciativa descumpre as exigências normativas vigentes, buscando implementar uma interpretação que viola a própria razão de ser do marco setorial.

Pois bem. Para que o modelo possa ser criticado com consistência, primeiro, é preciso explicitar suas premissas. Sem descer às minúcias, o modelo pressupõe uma ópera em dois atos.

Primeiro, valendo-se das regras que regem a prestação regionalizada, se criaria por lei uma entidade integrada por estado e municípios. A justificativa para tanto seria que o interesse nesses casos não seria puramente local, demandando a implementação de um modelo de gestão concertada (o que é permitido pelo inciso II do artigo 8º).

Criado o ente, a ele caberia garantir e fiscalizar a prestação dos serviços. Para tanto: (1) poderia atribui-lo a uma entidade privada, o que implicaria o dever de licitar ou (2) poderia atribui-lo diretamente a um integrante da sua própria administração. Desse modo seria possível atribuir o serviço diretamente à empresa estadual, pois afinal, o estado também participa do modelo regionalizado (junto aos municípios). Haveria, segundo os idealizadores do modelo, uma espécie de descentralização administrativa, capaz de dispensar a seleção competitiva do prestador.

O modelo, como visto, se pauta na alegação de que há a atribuição do serviço a um integrante da administração do ente inter-regional, o que supostamente não violaria a exigência de licitação prevista no caput do artigo 10 da Lei de Saneamento. Esquematizando o argumento, temos duas premissas principais:

a. o marco setorial permite a prestação regionalizada do serviço de saneamento. Para tanto, é preciso que o estado, por meio de lei, crie uma entidade formada por ele e pelos municípios com interesse em comum, que ficará responsável por organizar a prestação do serviço;

b. o marco setorial somente admite a prestação do serviço de saneamento sem licitação por entidade que integra a Administração do seu titular.

A partir disso, buscou-se criar um modelo onde o ente inter-regional criado pelo estado para viabilizar a prestação regionalizada do serviço de saneamento permitiria a atribuição da prestação a qualquer um dos seus participantes (estado e municípios), de modo que, nesse caso, a prestação do serviço pela entidade de saneamento do estado poderia ocorrer sem a necessidade de prévia licitação.

Ocorre que isso não passa de um jogo de conceitos, que não resiste ao exame das premissas normativas aplicáveis. O xis da questão é que não há qualquer descentralização administrativa no modelo proposto, mas a atribuição da atividade a uma entidade estranha à entidade regionalizada, sem licitação. Por mais que se busque justificar que existe uma atribuição intra-administrativa, isto de fato não existe.

Nesse contexto, o artigo 10 da Lei nº 11.445/2007 não alcança o arranjo descrito. O que se autorizou é que o titular do serviço (de regra, o município, nos termos do inciso I do artigo 8º) atribua-o a um ente integrante da sua administração indireta [3]. Nesse caso, o que há é uma atribuição de atividade dentro da mesma pessoa política, o que está em linha com o disposto no artigo 175 da Constituição da República, que permite a prestação direta de serviços públicos pelos seus titulares.

Para que essa exceção à regra de licitação seja viável, é necessário ter claro que "integrar a administração do titular" é expressão que se refere ao arranjo que pressupõe uma administração direta que tem integrada em si, outras pessoas jurídicas, configurando a administração indireta. Dito de outro modo, apenas pessoas políticas tem em si integradas outras pessoas jurídicas, que em conjunto formam sua "administração".

Posto isso é de se perguntar, tal modelo equivale àquele em exame aqui? A resposta é: não, em hipótese alguma.

Modelos de prestação regionalizada implicam a criação por parte de entes políticos de uma estrutura coletiva integrada por eles, que será responsável por coadjuvar seus esforços com vistas a assegurar a prestação dos serviços de saneamento.

Este ente pode ser uma região metropolitana, uma unidade regional ou um bloco de referência. Em todos eles cria-se uma estrutura administrativa, vinculada às pessoas políticas que o integram. Em qualquer caso, contudo, esse ente não se confunde com as partes que lhe integram. Esse é o ponto central: as partes e o seu conjunto não se confundem.

Nesse sentido, quando o inciso II do artigo 8º da Lei de Saneamento atribui ao Estado a titularidade de serviços de saneamento básico no caso de interesse comum, o faz compartindo essa titularidade com os municípios que integram o ente criado para gerir esse interesse comum.

Isto é, o titular não é o estado por si só, mas o estado em conjunto com "[…] com os municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões […]". O titular, vamos dizer assim, é o ente formado pelo estado e pelos municípios, e não o estado, conforme já decidiu o STF no julgamento da ADIn nº 1.842/RJ.

Seguindo essa linha de raciocínio, para que incida a exceção à licitação prevista no caput do artigo 10 seria preciso que a estatal fosse organizada e administrada pelos municípios e pelo estado, que, em conjunto e não isoladamente, são os verdadeiros titulares da prestação do serviço. Em outras palavras, o fato de um dos entes que formam o consórcio possuir uma estatal não justifica a violação à regra de licitação, pois esse ente não é, sozinho, o titular do serviço [4].

Com efeito, o que se pretende com o modelo apresentado é equiparar o ente criado às pessoas jurídicas que o integram, equivalendo-os. Trata-se de raciocínio que, ao fim e ao cabo, desconsidera os efeitos da própria instituição de uma entidade autônoma para prestar os serviços, promovendo uma equiparação indevida entre as partes integrantes do ente e o ente ele mesmo.

O paradoxo da proposta salta aos olhos: ao mesmo tempo que se sustenta a autonomia do ente (que tem existência jurídica própria), se pretende que pessoa jurídica vinculada a um dos seus partícipes equivaleria a uma criatura vinculada à própria entidade coletiva. Há evidente salto lógico aqui. Por um passe de mágica um ente da administração indireta do estado membro (i.e. a companhia estadual) seria igualado a uma entidade integrante do ente multifederativo, titular do serviço. O que se busca fazer é tratar duas coisas substancialmente diferentes como se fossem iguais.

Como já dito, para que essa conclusão fosse válida o ente teria que constituir uma empresa pública e, essa sim, ter os serviços atribuídos a ela. O salto lógico que se coloca é precisamente confundir a parte com o todo. Uma coisa é o ente interfederativo, dotado de autonomia, outra coisa são as pessoas jurídicas que o constituem. O todo não é igual à mera soma das partes. Sustentar algo diverso disso é negar a própria premissa de que se partiu que o ente é autônomo e cabe apenas a ele definir o modo de prestação do serviço.

Portanto, no modelo proposto não há atribuição do serviço para ente que integra o titular dos serviços, mas a delegação para um terceiro alheio a essa estrutura, qual seja a estatal vinculada ao Estado, o que não é permitido pela Lei do Saneamento, indo de encontro com o próprio espírito da lei, consistente na quebra das vantagens até então garantidas às estatais e na abertura do setor de saneamento às empresas privadas.

Daí porque a ideia de que a companhia estadual integra a administração do titular não se compreende nem no artigo 10, nem no inciso II do artigo 8º. O primeiro só permite a atribuição direta da prestação do serviço para pessoa vinculada ao titular da atividade, que, nos termos do segundo dispositivo e do entendimento do STF, é o colegiado formado pelos municípios e pelo estado. Este, sozinho, não se torna titular da atividade apenas pelo fato de estar inserido num modelo de cooperação federativa.

Aliás, é de se perceber que a leitura sistêmica da lei referenda isso. O artigo 8º, § 1º, inciso II, prevê uma hipótese de gestão direta: "fica admitida a formalização de consórcios intermunicipais de saneamento básico, exclusivamente composto de Municípios, que poderão prestar o serviço aos seus consorciados diretamente, pela instituição de autarquia intermunicipal".

A norma em questão reforça o que foi dito antes: a atribuição direta depende de que o ente a que se atribua os serviços integre a administração do titular. E, em não sendo o Estado titular exclusivo dos serviços, não se pode permitir que haja a atribuição direta da prestação das atividades à companhia estadual. Não há qualquer autorização normativa que permita que a empresa estadual atue sem licitação na atual configuração do setor de saneamento.

Ao que parece um dos calcanhares de Aquiles do Novo Marco, qual seja, a questão da integração regional, tem servido de pretexto para que se reinstale a lógica que se pretendeu vedar. As dificuldades existentes que envolvem áreas não atrativas demandam soluções efetivas e admitidas pelo ordenamento jurídico.

O problema existe e deve ser objeto da consideração de todos os stake holders do setor. Contudo, isso não legitima que se promova a exumação do modelo de atribuição direta dos serviços às companhias estaduais. Esse modelo não gerou os benefícios necessários e foi proscrito pelo legislador. Criar subterfúgios hermenêuticos para ressuscitar a lógica não concorrencial é insistir naquilo que, historicamente, se mostrou insuficiente para assegurar a universalização.

A questão em disputa implica saber se se permitirá, ou não, o retorno ao modelo que, expressamente, se buscou abandonar. O modelo que privilegiava a atuação direta das companhias estaduais não foi capaz de gerar a universalização, e isso levou a se "resetar" o sistema.

Em conclusão, interpretar as novidades para permitir que as coisas antigas persistam significa, em última análise, ferir de morte o espírito da Lei Nova. E uma interpretação que se opõe manifestamente ao objeto da norma é sempre uma má interpretação.

 


[1] Para mais detalhes sobre essa alteração, ver GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazário de; MADALENA, Luis Henrique. Nova lógica concorrencial e mercadológica do setor de saneamento. Revista Consultor Jurídico, 2022. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2022-out-25/opiniao-logica-concorrencial-setor-saneamento>. Acesso em 31 out. 2022.

[3] Como se sabe, a administração pública brasileira compreende a direta e a indireta. A direta, refere-se à pessoa política que exerce o Poder Executivo; a indireta compreende os entes criados por lei (ou que tem sua autorização para criação dada em lei), dotados de personalidade jurídica própria. O fenômeno de criação de outras personalidades jurídicas dotadas de competência administrativa, é chamado descentralização.

[4] Em sentido contrário, ver DIAS, Bruna Crystie Grégio. Exercício conjunto de titularidade por Estados e Municípios no novo marco regulatório do saneamento. In.: GUIMARÃES, Bernardo Strobel; VASCONCELLOS, Andréa Costa de; HOHMANN, Ana Carolina (coord.). Novo marco legal do saneamento. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 243-254.

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  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR, professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • é graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Direito Público Contemporâneo pela Faculdade de São Vicente (FSV) e advogado.

  • é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation) e advogado.

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