Garantias do Consumo

PL 3.514/2015 e fortalecimento da proteção do consumidor no comércio eletrônico

Autores

  • Laís Bergstein

    é advogada doutoranda em Direito do Consumidor e Concorrencial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e coordenadora Acadêmica da Especialização em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais da UFRGS.

  • Caroline Visentini Ferreira Gonçalves

    é advogada do escritório Trench Rossi Watanabe especialista em Direito do Consumidor pela Escola Paulista da Magistratura mestre pela Columbia University diretora adjunta do Brasilcon membro do Comitê de Relações de Consumo do IBRAC e professora convidada da PUC-SP.

9 de novembro de 2022, 13h55

Entre os últimos dias 2 e 4 de novembro foi promovido pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) o 16º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, que teve como tema central "Proteção do consumidor: confiança, plataformização e gig economy". O Congresso promoveu cerca de 38 painéis, muitos deles focados nos desafios do ambiente online, como o metaverso, privacidade e novos modelos de contratação, criptoativos, open banking, dentre outros.

O ministro Herman Benjamin inaugurou o Congresso clamando pelo aperfeiçoamento do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078 de 1990 — CDC) mediante aprovação do Projeto de Lei 3514/2015 [1]. Trata-se de projeto que tramita no Congresso, desde 2012 e busca aperfeiçoar as disposições gerais do Capítulo I do Título I do Código de Defesa do Consumidor e dispor sobre o comércio eletrônico. O projeto também disciplina os contratos internacionais comerciais e de consumo e dispõe sobre as obrigações extracontratuais, atualizando o artigo 9º do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Trata-se de um dos três projetos [2] apresentados por renomada comissão de juristas, presidida pelo ministro Herman Benjamim e relatada pela professora doutora Claudia Lima Marques [3].

O PL 3.514/2015 está atento à rápida evolução da sociedade de consumo [4] e aos desafios resultantes das novas tecnologias e do crescimento do comércio internacional, é incrementar a proteção dos consumidores. Esse aspecto foi ressaltado no relatório final da Comissão de Juristas, cujas premissas foram "acrescentar, nunca reduzir a proteção ao consumidor no Brasil", e "respeitar a estrutura principiológica e geral do CDC". A passagem do tempo desde a sua apresentação ao Senado justifica uma nova leitura da proposta de lei para contribuir com propostas complementares que se alinham a esses preceitos.

De acordo com o ministro Benjamin, o CDC carece de conteúdo que aborde o comércio eletrônico. Na sua dele, sem esse conteúdo será difícil enfrentar os novos desafios trazidos pela tecnologia, de forma que a aprovação do PL 3.514 completaria a fase de modernização do CDC, para não o deixar envelhecer.

A 16ª edição do Congresso do Brasilcon foi encerrada com o painel sobre "Plataformização das Relações, Vulnerabilidade Digital e o PL 3.514/2015", mediado por Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer, contou com a participação de Claudia Lima Marques, Otávio Luiz Rodrigues Junior e Fernando Rodrigues Martins.

O diálogo versou sobre as alterações propostas no PL e as características das relações contemporâneas de consumo. A professora doutora Claudia Lima Marques ressaltou como diversos temas debatidos durante o Congresso são enfrentados pelo PL 3.514, cujos principais artigos são destacados a seguir:

"1) Artigo 3-A: determina que as normas e os negócios jurídicos devem ser interpretados e integrados de maneira mais favorável ao consumidor, conforme o diálogo das fontes e de forma que o direito fundamental de defesa do consumidor seja priorizado;
2) Artigos 4, II e 6, XIII: os quais, conforme as Diretrizes das Nações Unidas para a Defesa do Consumidor, promovem o casamento entre o meio ambiente e o consumo sustentável, mediante a apresentação de informação ambiental veraz e útil;
3) Artigo 6, XI: que aborda a privacidade e segurança das informações e dados pessoais prestados ou coletados, por qualquer meio, inclusive o eletrônico, assim como acesso gratuito do consumidor às suas fontes, garantindo ao direito de o consumidor saber a fonte, no caso de incidente de dados;
4) Artigo 6, XII: que promove a liberdade de escolha frente a novas tecnologias, vedando qualquer discriminação no mercado de consumo ou assédio de consumo, o qual visa garantir a igualdade e isonomia entre os mundos online, offline e 'onlife';
5) Artigo 39, XV: que proíbe a cobrança de tarifa de cadastro de abertura de crédito;"

O PL 3.514 cria Seção específica intitulada "Do Comércio Eletrônico", a qual, nas palavras de Claudia Lima Marques, visa a fortalecer a confiança, diminuir a assimetria de informações, bem como proteger a autodeterminação e a privacidade dos dados pessoais. Na sua visão, o PL 3.514 atualizará o CDC para o mundo digital e para as novas vulnerabilidades que com ele surgem.

Conforme pontuado por Roberto Pfeiffer, ainda que muitas disposições do PL 3514 já tenham sido tratadas nos textos dos Decretos 7.962 de 2013 e 10.271 de 2020, a aprovação do projeto traria força de lei às referidas disposições, além do fato de as previsões do PL 3.514 serem mais amplas.

Em relação ao direito de arrependimento, o artigo 45-E do PL 3.514 amplia o prazo de sete dias para 14, caso o fornecedor não confirme imediatamente o recebimento da oferta e não envie o link com formulário facilitado para que o consumidor possa exercer o direito de arrependimento.

O artigo 49, §2º do PL conceitua a contratação à distância, definindo como aquela efetivada fora do estabelecimento ou sem a presença física simultânea do consumidor e do fornecedor, afetando, portanto, diversas modalidades de interações no ambiente online, como a intermediação, oferta, dentre outras. O §3º equipara a modalidade à distância aquela que, embora realizada no estabelecimento, o consumidor não tenha tido a prévia oportunidade de conhecer o produto.

Já o artigo 45-F conecta-se com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD, Lei 13.709 de 2018) ao proibir o envio de ofertas e publicidade sem o consentimento prévio e expresso do consumidor ou, ainda, no caso de opt out. O consentimento do consumidor também ganha destaque no artigo 72-A ao criminalizar o ato de ceder ou transferir dados, informações ou identificadores pessoais sem a autorização expressa e o consentimento informado do titular de dados.

O princípio da minimização dos dados pessoais da LGPD é lembrado no artigo 45-G ao determinar que os fornecedores só exijam do consumidor a prestação das informações indispensáveis à conclusão do contrato, de forma que informações adicionais às indispensáveis tenham caráter facultativo, mediante informação prévia ao consumidor.

É preciso estabelecer critérios de transparência para as decisões automatizadas [5], resguardando, evidentemente, os direitos de propriedade industrial, mas assegurando que os órgãos de proteção e defesa dos consumidores tenham condições de aferir a legitimidade [6] das práticas comerciais pautadas no uso de dados pessoais e não dependam exclusivamente de denúncias de ex-colaboradores ou concorrentes. Como propõem Hans-W. Micklitz, Przemyslaw Palka e Yannis Panagis, é possível automatizar parcialmente o processo de abstração e controle das cláusulas nos contratos de consumo online, existindo um grande potencial de uso de técnicas algorítmicas na aplicação da lei em relação a obrigações contratuais e de facilitação da pesquisa [7].

No contexto do comércio eletrônico, o PL 3.514 reforça os mecanismos para se exigir o cumprimento do dever jurídico de efetiva prevenção de danos (artigo 6º, VI, do CDC), sendo premente a avaliação da conduta do fornecedor no caso concreto. Os investimentos em medidas de efetiva prevenção de danos, políticas de compliance, melhores práticas e resolução de conflitos devem ser compatíveis e proporcionais à sua atuação no mercado de consumo. É fundamental inverter esta equação, evitar os danos de massa, evitar os litígios e promover a desjudicialização, com sanções daqueles que descumprem reiteradamente os deveres de conduta [8].

Em relação às penalidades, o artigo 56 adiciona inciso que prevê a suspensão temporária ou proibição de oferta e de comércio eletrônico, com o pagamento de multa diária a ser imposta pelo poder judiciário. Mais adiante, o artigo 60-A traz os danos punitivos visando inibir novas violações, no caso de descumprimento reiterado dos deveres do fornecedor previstos no CDC.

A relação simbiótica [9] de produtos e serviços também acentua o dever de informação ao consumidor. A boa-fé [10] nas relações negociais, especialmente as contratações eletrônicas [11], e a proteção da confiança legítima em tempos digitais [12], impõem um novo paradigma de transparência e lealdade aos fornecedores, acentuando o seu dever de informar e fomentando um ambiente de políticas preventivas e de compliance [13].

É salutar, nesse sentido, a proposta de inclusão de um novo inciso no artigo 6º do CDC, prevendo claramente como direito básico dos consumidores "XII – a liberdade de escolha, em especial frente a novas tecnologias e redes de dados, vedada qualquer forma de discriminação e assédio de consumo".

As facilidades da oferta por meios digitais não afastam o dever de conformidade com a legislação de proteção e defesa dos consumidores, ao contrário. A resolução de eventuais problemas resultantes de uma contratação malsucedida pode ser tão simples quanto é o acesso ao produto ou serviço ofertado no meio digital. Tais medidas fortalecem a confiança do consumidor e valorizam o seu tempo e a sua dignidade, em especial em um país como o Brasil [14].

Conforme amplamente debatido nesses dois dias de intensos estudos e ricos debates no tradicional Congresso promovido pelo Brasilcon, a aprovação do PL 3.514/2015 a aprimorará a tutela do consumidor nas relações jurídicas celebradas digitalmente e colocará o Direito do Consumidor Brasileiro na vanguarda de solução de temas imprescindíveis para o desenvolvimento do consumo, da economia e para a prevenção de conflitos neste século 21.


[2] O PL 283/2012, aprovado no Senado e remetido à Câmara dos Deputados sob o nº PL 3515/2015, devolvido sob o nº PLS 1805/2021, foi aprovado em 2021 e transformado na Lei nº 14.181/2021, de 1º de julho de 2021, que alterou a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. O terceiro projeto proposto pela Comissão de Juristas tratava do processo civil do consumidor e a atualização de normas instrumentais e da ação coletiva.

[3] Na matéria do comércio eletrônico, o anteprojeto de lei contou com o apoio dos autores do Anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor, professora doutora Ada Pellegrini Grinover (Universidade de São Paulo) e Kazuo Watanabe (Universidade de São Paulo), bem como do então membro do ministério Público do Distrito Federal, professora doutora Leonardo Roscoe Bessa, e da Procuradoria do Estado de São Paulo e ex-coordenador da Fundação Procon-SP, professora doutora Roberto Pfeiffer.

[4] EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do Direito das Relações de Consumo: consumo e sustentabilidade. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 23 et seq.

[5] O Projeto de Lei nº 4.496/2019 do Senado Federal pretende adicionar ao artigo 5º da LGDP um inciso XX para definir decisões automatizadas como "processo de escolha, de classificação, de aprovação ou rejeição, de atribuição de nota, medida, pontuação ou escore, de cálculo de risco ou de probabilidade, ou outro semelhante, realizado pelo tratamento de dados pessoais utilizando regras, cálculos, instruções, algoritmos, análises estatísticas, inteligência artificial, aprendizado de máquina, ou outra técnica computacional".

[6] Sobre o tema, veja a tese de doutoramento de Guilherme Mucelin, defendida perante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2022, orientada pela professora doutora Sandra Regina Martini e intitulada "Direito de Validação das Decisões Individuais Automatizadas Baseadas em Perfis de Consumidores".

[7] MICKLITZ, Hans-W; PALKA, Przemyslaw; PANAGIS, Yannis. The Empire Strikes Back: Digital Control of Unfair Terms of Online Services. Journal of Consumer Policy, v. 40, p. 367-388, Springer, 2017. DOI 10.1007/s10603-017-9353-0.

[8] MARQUES, Claudia Lima; BERGSTEIN, Laís. Menosprezo planejado de deveres legais pelas empresas leva à indenização. São Paulo, Revista Consultor Jurídico, 21 de dezembro de 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-dez-21/garantias-consumo-menosprezo-planejado-deveres-legais-pelas-empresas-leva-indenizacao>. Acesso em: 5 jul. 2021.

[9] A expressão é utilizada, pelo Min. Herman Benjamin em caso paradigmático envolvendo a responsabilidade solidária entre as empresas fornecedoras de produtos e serviços de telefonia: "Consta dos autos que as partes celebraram contrato de consumo, cujo objeto é o fornecimento de linhas telefônicas, serviços especiais de voz, acesso digital, recurso móvel de longa distância DD e DDD e recurso internacional, local ou de complemento de chamada, para serem utilizadas em central telefônica  Pabx, adquirida de terceira pessoa. Conforme narrado, criminosos entraram no sistema Pabx da empresa recorrente e realizaram ilicitamente diversas chamadas internacionais, apesar de esse serviço estar bloqueado pela operadora. A interpretação do Tribunal de origem quanto à norma insculpida no artigo 14 do CDC está incorreta, porquanto o serviço de telecomunicações prestado à recorrente mostrou-se defeituoso, uma vez que não ofereceu a segurança esperada pela empresa consumidora. REsp 1.378.284/PB, relator o eminente ministro Luis Felipe Salomão. 7. O risco do negócio é a contraparte do proveito econômico auferido pela empresa no fornecimento de produtos ou serviços aos consumidores. É o ônus a que o empresário se submete para a obtenção de seu bônus, que é o lucro. Por outro lado, encontra-se o consumidor, parte vulnerável na relação de consumo. 8. Os órgãos públicos e as suas empresas concessionárias são obrigadas a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros aos consumidores em conformidade com o artigo 22 do CDC. 9. Recurso Especial provido". STJ  REsp 1721669/SP, relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 17/04/2018, DJe 23/05/2018.

[10] "A expressão boa-fé objetiva  (boa-fé normativa) designa não uma crença subjetiva, nem um estado de fato, mas aponta, concomitantemente a: 1) um instituto ou modelo jurídico (estrutura normativa alcançada pela agregação de duas ou mais normas); 2) um standard ou modelo comportamental pelo qual os participantes do tráfico obrigacional devem ajustar o seu mútuo comportamento (standard direcionador de condutas a ser seguido pelos que pactuam atos jurídicos, em especial os contratantes); e 3) um princípio jurídico (norma de dever ser que aponta, imediatamente, a um 'estado ideal de coisas'". MARTINS COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2018, p. 329.

[11] MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Paulo, Atlas, 2016. 

[12] MARQUES, Claudia Lima; LORENZETTI, Ricardo Luis; CARVALHO, Diógenes Faria de; MIRAGEM, Bruno. Contratos de serviços em tempos digitais: contribuição para uma nova teoria geral dos serviços e princípios de proteção dos consumidores. São Paulo: Thomson Reuters, Brasil, 2021. p. 300-303.

[13] KRETZMANN, Renata Pozzi. Informação nas relações de consumo: o dever de informar do fornecedor e suas repercussões jurídicas. Belo Horizonte: Casa do Direito, 201

[14] VISENTINI, Caroline, DALMASO,Ricardo. Acesso à ordem jurídica justa nas relações de consumo e a tecnologia. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acesso-a-ordem-juridica-justa-nas-relacoes-de-consumo-e-a-tecnologia-15032019

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