Território Aduaneiro

Direito Aduaneiro e "revisão": "o pop não poupa ninguém"!

Autores

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

8 de novembro de 2022, 8h00

Em setembro de 1990, a banda gaúcha Engenheiros do Hawaii lançava seu quarto álbum de estúdio, O Papa é Pop, no qual a faixa-título apontava como a fama oferece riscos (no caso, ao papa João Paulo 2º, que "…levou um tiro a queima roupa", ou a John Lennon, outro citado na letra da canção) [1], e fazia uma crítica ao "pop", entendido pelo compositor e vocalista Humberto Gessinger como "a realidade simplificada, onde não existem dois tons da mesma cor" e a simplificação de tudo pela mídia, em geral [2].

Spacca
Vivemos hoje um momento "pop" do Direito Aduaneiro, no Brasil, repleto de eventos, cursos e publicações. Nesse cenário, ao mesmo tempo em que temos a felicidade de ver a evolução do estudo científico da disciplina aduaneira, no país, no meio acadêmico, e um crescente número de publicações específicas aduaneiras, temos o dever de ficar vigilantes à tentação da simplificação, à simples transformação terminológica de "Seminários de Direito Tributário" em "Seminários de Direito Tributário e Aduaneiro", de "especialistas em Direito Tributário" em "especialistas em Direito Tributário e Aduaneiro".

A zona limítrofe entre o tributário e o aduaneiro resume-se aos tributos incidentes em operações de comércio exterior. E, mesmo nessa zona, a disciplina aduaneira dos tributos é fortemente influenciada por tratados internacionais, o que dificulta estudos de institutos próprios de Direito Aduaneiro à luz da doutrina nacional sobre Direito Tributário [3].

A forma simplificada, ou "pop" (na dicção da música idealizada por Gessinger) do Direito Aduaneiro é aquela que, por um lado, sustenta a autonomia didática da disciplina jurídica, mas, por outro, trata de institutos próprios aduaneiros à luz do Direito Tributário, invocando, v.g., o Código Tributário Nacional para tratar de questões como a denúncia espontânea de infrações aduaneiras, ou remetendo o conceito de fraude aduaneira ao art. 72 da Lei nº 4.502/1964, que dispõe sobre "fato gerador da obrigação tributária principal". Nessa mesma névoa "pop" estão as publicações sobre "Direito Aduaneiro" que, ao final, nas referências bibliográficas, só citam obras de Direito Tributário [4].

Spacca
Um dos temas aduaneiros mais poluídos com discussões à luz do Código Tributário Nacional é o da chamada "revisão aduaneira", que nos faz voltar à música de Gessinger, que em certo trecho, ironiza: "…Todo mundo tá revendo o que nunca foi visto…".

Se fosse aduaneiro (em verdade, contrabaixista "e aduaneiro"), poderíamos insinuar que Gessinger estava se referindo, em sua música, ao aniversário de dois anos do Decreto-Lei nº 2.472, de setembro de 1988, que promoveu diversas alterações no Decreto-Lei nº 37/1966 (principal norma aduaneira brasileira de ordem legal), uma delas para substituir a antiga Seção IV do Capítulo III do Título II, intitulada "Revisão", e formada por um artigo (art. 54: "A revisão para apuração da regularidade do recolhimento de tributos e outros gravames devidos à Fazenda Nacional será realizada na forma que estabelecer o regulamento, cabendo ao funcionário revisor 5% das diferenças apuradas…").

Para infelicidade dos aduaneiros, o Decreto-Lei nº 2.472/1988 revogou a parte final do artigo 54, que trata do percentual, mas para o aprimoramento da disciplina jurídica do tema, e já antevendo o que ocorreria no cenário internacional, o nome da Seção foi alterado para "Conclusão do Despacho", e o artigo 54 passou a dispor: "A apuração da regularidade do pagamento do imposto e demais gravames devidos à Fazenda Nacional ou do benefício fiscal aplicado, e da exatidão das informações prestadas pelo importador será realizada na forma que estabelecer o regulamento e processada no prazo de 5 anos, contado do registro da declaração…".

Naquela época, toda mercadoria era verificada pela aduana, no todo, ou em parte — por amostragem. Mas, ainda assim, a palavra "revisão" foi profeticamente abolida do artigo da norma legal. Apesar disso, e mantendo a expressão usada no regulamento aduaneiro de 1985 (Decreto nº 91.030 — artigo 455), os regulamentos aduaneiros seguintes (Decreto nº 4.543/2002 — artigo 570, e Decreto 6.759/2009 — artigo 638) repetiram a terminologia pouco adequada — "revisão aduaneira".

Nos idos de 1990, já era comum, internacionalmente, a utilização de ferramentas de tecnologia da informação para a seletividade (incentivadas desde a Convenção de Quioto, da década de 1970), fazendo com que as declarações fossem submetidas a "canais de conferência", efetuando-se verificações apenas em um percentual delas. Já não se tratava de amostragem da verificação em uma declaração, mas de uma parte do universo de declarações que sequer seria verificada.

No âmbito do Mercosul, a Decisão CMC 18/1994, em seu artigo 67, já estabelecia que a "…autoridade aduaneira determinará as declarações que serão objeto de conferência total, parcial ou de nenhuma conferência antes da entrega da mercadoria" com os critérios fixados no artigo 69: canal verde: "…a mercadoria será entregue sem a realização do exame documental, da verificação da mercadoria e da análise do valor aduaneiro, o que não impedirá que a autoridade aduaneira efetue controles sobre essa operação…". E o Brasil nem esperou a conclusão do debate no bloco regional para instituir a seletividade baseada em canais de conferência na exportação, em 1993, tendo sido o mecanismo estendido às importações, em 1997 [5].

Portanto, desde a década de 90 do século passado, o Brasil passava a não fiscalizar 100% das declarações, na importação e na exportação. E, com o passar do tempo, os percentuais de seleção para canais diferentes de "verde" foram sendo ainda mais reduzidos, a ponto de o Balanço Aduaneiro de 2021, divulgado pela RFB, indicar que 98,8% das declarações de exportação e 96,04% das declarações de importação foram automaticamente liberadas em canal verde [6].

Assim, ao se falar em "revisão aduaneira", em regra se está, como na música, "…revendo o que nunca foi visto".

No entanto, não se crê que seja esse o fator que tenha levado a numerosos contenciosos e debates sobre o tema da "revisão aduaneira", principalmente no que se refere a autuações por reclassificação de mercadorias após o desembaraço (a liberação da mercadoria pela aduana) [7]. A questão está relacionada à influência do Direito Tributário na análise, com invocação de artigos do Código Tributário Nacional, os quais têm pouca relação com exigências aduaneiras. Muitas vezes, não há referência a tributos, mas a multas aduaneiras específicas, como a relativa a erro de classificação (v.g., a estabelecida no artigo 84, I da Medida Provisória nº 2.158-35/2001) ou na prestação de informações sem relevância tributária, mas necessárias à determinação do procedimento de controle aduaneiro apropriado (v.g., a prevista no artigo 69, § 1º da Lei nº 10.833/2003).

No Brasil, a discussão sobre a "revisão aduaneira" foi predominantemente tributária, influenciada pela Súmula nº 227 do extinto Tribunal Federal de Recursos, de 1986 (portanto, anterior ao Decreto-Lei nº 2.472/1988 e aos canais de conferência): "A mudança de critério jurídico adotado pelo fisco não autoriza a revisão de lançamento".

Ocorre que o desembaraço aduaneiro não é um ato de homologação do lançamento, e a chamada "revisão aduaneira" não constitui, portanto, "revisão de ofício" tributária. E esse posicionamento já está amadurecido e pacificado, atualmente, no Brasil, no contencioso judicial, em cortes superiores. O posicionamento recente e unânime da 2ª Turma do STJ, aclara o entendimento assentado naquela corte:

"…É pacífica a jurisprudência desta Casa no sentido de que a 'Conferência Aduaneira' e o posterior 'Desembaraço Aduaneiro' (arts. 564 e 571 do Decreto n. 6.759/2009) não impedem que o Fisco realize o procedimento de 'Revisão Aduaneira', respeitado o prazo decadencial de cinco anos da sistemática de lançamento por homologação (art. 638, do Decreto 6.759/2009). … para as Declarações de Importação registradas após a revogação do Decreto nº 91.030/85 (RA-85) é inaplicável a Súmula nº 227 do extinto TFR ('A mudança de critério jurídico adotado pelo fisco não autoriza a revisão do lançamento') e, por conseguinte, são inaplicáveis os precedentes…" [8]

E esse entendimento se estende à outra turma do STJ competente para a análise da matéria:

"Conforme estabelece o art. 638 do Decreto nº 6.759/2009 — Regulamento aduaneiro —, 'revisão aduaneira é o ato pelo qual é apurada, após o desembaraço aduaneiro, a regularidade do pagamento dos impostos e dos demais gravames devidos à Fazenda Nacional, da aplicação de benefício fiscal e da exatidão das informações prestadas pelo importador na declaração de importação, ou pelo exportador na declaração de exportação'. A legislação que rege a matéria não vincula o direito do fisco de proceder à revisão da regularidade do pagamento dos impostos a determinado tipo de canal de conferência aduaneira ao qual a mercadoria foi submetida, quais sejam, canais de parametrização verde, amarelo, vermelho ou cinza, nos termos da Instrução Normatiza SRF nº 680/2006." [9]

Ainda que o STJ não tenha expressamente invocado em seus argumentos o Direito Aduaneiro Internacional [10], o posicionamento unânime consolidado na corte é totalmente alinhado com o expresso em tratados internacionais firmados pelo Brasil (como as normas 6.2, 6.3, 6.4 e 6.6 do Anexo Geral da Convenção de Quioto Revisada, da Organização Mundial das Aduanas — CQR/OMA; e os artigos 7.3 e 7.6 do Acordo sobre a Facilitação do Comércio, da Organização Mundial do Comércio — AFC/OMC), e em documentos de organizações internacionais que divulgam as melhores práticas em matéria aduaneira, que recomendam a gestão de risco para seletividade, com liberação célere de mercadorias (aferida mediante estudos de tempos de liberação), aliada a auditorias posteriores à liberação.

Essa filosofia de trabalho, que norteia as principais aduanas do mundo, envolve uma escolha: tornar mais célere a permanência das mercadorias em fronteira, portos e aeroportos, reservando o momento pré-liberação à identificação de fraudes, ou importações/exportações restritas ou proibidas, pois essas são situações difíceis de remediar posteriormente. E, após a liberação, reservar um período de tempo dentro do qual as aduanas possam trabalhar de forma mais estruturada para analisar outras questões, como a classificação das mercadorias, a valoração aduaneira, e o cumprimento de regimes aduaneiros, entre outros.

Essa escolha é clara tanto na CQR/OMA quanto no AFC/OMC. Fosse a Aduana obrigada a analisar detidamente e em última oportunidade todas as importações e exportações enquanto a carga está em portos, aeroportos e fronteiras, antes da liberação, ainda teríamos, no Brasil, os tempos de libração da década de 60 do século passado, e nossa Aduana fiscalizaria 100% das cargas. Em outras palavras, da escolha por um modelo de aduana moderna, que facilita o comércio exterior, decorre a liberação rápida das mercadorias, deixando-se a momento posterior verificações que não eram imprescindíveis para a referida liberação.

Ao que parece, por influência da doutrina tributária, no Brasil, em relação a esse tema da "revisão" do que, em regra, nunca foi visto, patinamos por muito tempo no "disco riscado" da trilha pop do quarto álbum da banda gaúcha. E pior… seguimos com tentativas simplificadoras de abafar o som do STJ e regredir ao terceiro álbum dos Engenheiros, lançado em dezembro de 1988: Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém. Realmente, o pop não poupou nem o Direito Aduaneiro!

 


[1] Convidamos o leitor experiente a relembrar (e o leitor mais jovem a conhecer) a música O Papa é Pop, enquanto acompanha a presente coluna, em: https://www.youtube.com/watch?v=33l4gnLSrUM.

[2] A explicação sobre o significado de "pop" no contexto da música pode ser encontrada em entrevista de Gessinger ao programa Matéria-Prima, em 1991, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GLqts9wu-kg.

[3] Sobre os tributos incidentes no comércio exterior, remete-se a: MEIRA, Liziane Angelotti. Tributos sobre o Comércio Exterior. São Paulo: Saraiva, 2012; e sobre a internacionalização da disciplina do imposto de importação, a: TREVISAN, Rosaldo. O imposto de importação e o Direito Aduaneiro Internacional. São Paulo: LEX, 2017.

[4] Depositamos aqui, pela pertinência (ainda que indireta) com o tema, a dica de leitura da obra de Diego Eduardo López Medina, que descreve a recepção de Hans Kelsen na América Latina, tanto em sua vertente acadêmica (em três fases: tradução, formalização e desformalização) quanto em sua versão "pop" – penetração nos círculos práticos de direito local, da "transformação" da "Teoria Pura", capítulo a capítulo, simplificada e adaptada domesticamente (LÓPEZ MEDINA, Diego Eduardo. Teoría Impura del derecho: la transformación de la cultura jurídica latinoamericana. Legis: Bogotá, 2004).

[v] A Decisão CMC nº 16/1994 foi substituída pela Decisão CMC nº 50/2004 (que regulou ainda a possibilidade de outros canais de conferência, como o "canal cinza" brasileiro), incorporada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 6.870/2009.

[6] Percentuais referentes a importadores/exportadores que não são "Operadores Econômicos Autorizados – OEA". Entre os OEA os percentuais de liberação automática em canal verde são ainda maiores: 99,68% na exportação e 99,27 % na importação. Dados disponíveis no Balanço Aduaneiro 2021 – RFB, p. 21-22, disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorios/aduana/balanco-aduaneiro-2021.

[7] Sobre a "revisão aduaneira" de classificação e mercadorias, remete-se a: TREVISAN, Rosaldo. A revisão aduaneira de classificação de mercadorias na importação e a segurança jurídica: uma análise sistemática. In: BRANCO, Paulo Gonet; MEIRA, Liziane Angelotti; e CORREIA NETO, Celso de Barros (coord.). Tributação e Direitos fundamentais conforme a jurisprudência do STF e do STJ. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 361-363; e a FERNANDES, Rodrigo Mineiro. Revisão Aduaneira e Segurança Jurídica. São Paulo: Intelecto, 2016.

[8] REsp 1.576.199/SC, rel. min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, unânime, julgado em 13/4/2021, DJe de 19/4/2021.

[9] REsp 1.826.124/SC, rel. min. Gurgel de Faria, 1ª Turma, unânime, julgado em 14/12/2021, DJe de 1/2/2022.

[10] Sobre o tema: MEIRA, Liziane Angelotti; e TREVISAN, Rosaldo. Um olhar aduaneiro internacional sobre recentes decisões de cortes superiores no Brasil. In: PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves; REIS, Raquel Segalla (coord.). Ensaios de Direito Aduaneiro II. No prelo.

Autores

  • é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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