Opinião

Briga de marcas: mencionar quem coexiste consigo não é evocar Voldemort

Autores

8 de novembro de 2022, 16h08

Na conhecida passagem de Sófocles [1], o dramaturgo helênico preceituava que "[n]em sempre o verdadeiro é indolor". Expandindo a provocação daquele autor, a sinceridade pode ser incômoda, mas ao menos ela não tende às ilusões.

Divulgação
Campanha do Habib's em setembro
Divulgação

De outro lado, no mundo das marcas e de outros sinais distintivos, é comum que a descrição da realidade seja falseada por discursos fabulosos. Exemplificativamente, para alguns intelectuais que se propuseram a estudar o fenômeno da publicidade, o comum é a conduta do autoelogio (puffing), da autoimputação de fama ("auto renome" — ao invés do alto renome de que trata o artigo 125, da Lei 9.279/96) e a da narrativa (story-telling) sedutora [2]. De tão corriqueira é a práxis do exagero que, a depender do tom da narrativa, tal sequer seria enganoso para os destinatários [3]. O contexto seria o de dourar a pílula e a credibilidade coletiva restaria esgarçada (algo próximo ao que se pode conceber como um agir cínico).

Esse recorte sobre o mundo publicitário e seus discursos pode ser visto como de matiz liberal: não caberia o Estado estender seus tentáculos sobre o que se pratica, pois os consumidores estão acostumados a tanto. Os defensores de tal matiz ideológica costumam se indignar com as restrições publicitárias em bens de consumo como álcool e cigarro, bem como desgostar que se regule a forma de apresentação das embalagens de modo que elas exponham a presença de excesso de sódio, gordura, ou ingredientes de origem transgênica. Asseverar, todavia, que a ideologia antes descrita seja compatível com as políticas públicas setoriais vigentes (Lei 8.078/90) no Brasil pós-CRFB-1988 são outros quinhentos.

Não obstante, é incomum que os emissores do mesmo discurso publicitário-liberal de funtor fornecedor=>consumidor (business to consumer — B2C) guardem a mesma coerência com eventuais práticas comunicativas no eixo fornecedor=>fornecedor (business to business — B2B), vulga concorrência. Explica-se. Há muitas demandas judiciais no Brasil em que titular de uma marca se insurge contra o fato de que seu concorrente o citou em uma peça publicitária.

Em tais confins, o direito de propriedade sobre uma marca (ou seja, a exclusividade de um signo em um determinado contexto [4]) é comumente descrito como algo sacro e de empenho monopolista. Por isso, tal ótica do direito de marcas tem enorme dificuldade em conviver com a realidade que exprime a utência do signo alheio sem a autorização do proprietário.

Por exemplo, entre os discursos lícitos em que a propriedade imaterial distintiva alheia pode servir de insumo estão: (a) o contexto comercial de um proprietário de uma loja de reparos de eletroeletrônicos que, em sua fachada, indique "as marcas" em que goza de especialidade para o conserto (artigo 132, II, da Lei 9.279/96 — por analogia); (b) o contexto institucional de uma associação de defesa do consumidor que adquire ketchups no mercado de origens diversas, os submete a testes clínicos, e divulga resultados sobre a presença de 'pelos de roedores' em sua composição, indicando quais os emissores ("das marcas") menos íntegros (artigo 6º, I do CDC) — à salvaguarda dos resquícios de tais mamíferos; (c) o contexto artístico e profissional de uma canção em que determinada marca é referida para dar contexto estético àquela narrativa (artigo 132, IV, da Lei 9.279/96); ou (d) o contexto comercial de um concorrente que usa o signo alheio para dar contraste às diferenças e similitudes de seus produtos (publicidade comparativa — artigo 132, IV, da Lei 9.279/96, por extensão). Em outras palavras, a ordenação vigente já exemplifica uma série de hipóteses em que a tolerância com a menção de sua marca, por outrem, é cogente.

Com tal imperativo categórico imposto pela legalidade constitucional, os adeptos [5] do discurso pertinente à hipertrofia-proprietária no contexto da marca costumam, então, minimizar as hipóteses de incidência do rol não exaustivo descrito em (a), (b), (c) e (d). As seguintes frases são úteis para melhor explicar tal "reação" [6] de desgosto com as opções políticas do Congresso, do Poder Judiciário e até do Conar: (1) a publicidade comparativa deve ser excepcional e exclusivamente objetiva, sem transbordar para subjetividades; (2) a utilização da marca alheia de produtos na loja de reparos não pode tomar maior proporção do que a marca própria no letreiro do prestador de serviços; (3) a divulgação dos resultados que invocam discrepância de ingredientes pelo ente do terceiro setor deve ser pautada pela discrição; e (4) a obra de arte que empenha marca alheia deve ser neutra ou elogiosa.

Se eufemismos fossem dispensados, note-se, nenhuma das quatro modulações aos direitos (a), (b), (c) e (d) seria infensa à pecha de censura, ainda que a prática da manietação discursiva advenha de uma fonte privada — ao invés de imposição da restrição pelo Estado. Seus emissores econômicos (rectius, sociedades empresárias), aliás, podem ser tachados — justamente — de melindrosos ou fresquinhos [7].

Um exemplo da frescura coletiva que atinge alguns atores no Brasil pode ser verificado em interessante reportagem do comunicólogo Wesley Gonsalves, em matéria do Estado de S.Paulo do dia 14/9/2022 [8]. Em síntese, uma conhecida lanchonete de inspiração gastronômica árabe resolveu lançar esfihas temáticas aglutinando conceitos que imputa a seus concorrentes. Entrevistado o diretor da agência de publicidade contratada a promover a iniciativa, o profissional fez uso da expressão homenagem para descrever a campanha de sedução sobre os novos produtos; enquanto a reportagem descreve a ação da sociedade empresária como provocação.

Os autores do presente texto têm dificuldade em enxergar no Direito de Marcas alguma característica símile àquela encontrada no antagonista da personagem Harry Potter, quanto "aquele que não poderia ser nominado". Tampouco é razoável asseverar que citações (diretas ou indiretas), homenagens ou inspirações que não diluam a singularidade do agente econômico seja espécie de travessura ou ilegalidade — diferente do que acontece quando há um abuso dos direitos acima citados e o direito do titular da marca de zelar pela sua reputação é integralmente perturbado.

O que se percebe no Brasil, aliás, é exatamente a tendência a aglutinação [9] dos poderes econômicos que acabam tornando a concorrência um fenômeno limitado. Tão ruim quanto a concentração de agentes econômicos que disputam a clientela é a fragilização da liberdade discursiva em que a citação ao outro passa ser vista como blasfêmia à sacralidade da marca e de seu titular.

Fato é que o direito de citação e a liberdade de manifestação do pensamento socorrem o Direito de Marcas, estando intrinsicamente ligadas à natureza concorrencial do mercado formado por tais agentes econômicos [10]. A citação, homenagem e ironias fazem parte da legítima luta pela clientela, desde que não se chegue ao ponto de engendrar confusões ou associações com a marca alheia ou, ainda, concorrer deslealmente com o titular dela.

Impedir a citação da marca nesse tipo de contexto — em um mesmo ramo capitalista — seria inviabilizar a comunicação e restringir de forma indevida a liberdade de expressão do pensamento. Fato é que a luta da concorrência gera danos justos [11] e que a disputa dura, porém leal, é o que se contempla como ortodoxo em uma economia de mercado. Mencionar quem coexiste consigo em um determinado ramo capitalista não é, assim, evocar Voldemort.


[1] SÓFOCLES. As Tranquínias. Traduzido por Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014, p. 45.

[2] DUVAL, Hermano. Concorrência Desleal. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 80.

[3] SCHECHTER, Roger E. Unfair Trade Pratices & Intelectual Property. 2ª Edição, United States of America: Black Letter Series 2002, p. 195.

[4] BARBOSA, Denis Borges. Proteção Jurídica das Marcas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

[5] Entre outros, vide a leitura do conhecido professor SOARES, José Carlos Tinoco. Concorrência Desleal. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1990, p. 38.

[6] Os autores do presente texto discordam de tal leitura do sistema jurídico brasileiro.

[7] BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 320.

[8] "Habib’s provoca concorrentes e lança esfihas inspiradas em McDonald’s, Burger King, KFC e Taco Bell". Disponível em https://www.estadao.com.br/economia/midia-mkt/habibs-provoca-concorrentes/, acessado em 16.10.2022.

[9] COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976, p. 2.

[10] SCHMIDT, Lélio Denicoli. Marcas: Aquisição, exercício e extinção de direitos. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 255.

[11] "É que a licitude da concorrência implica por definição a licitude da causação de prejuízos a outrem" ASCENSÃO, José de Oliveira. Concorrência Desleal. Coimbra: Almedina, 2002, p. 230.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!