Opinião

Efeitos da privatização de empresas estatais sobre vínculos contratuais

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5 de novembro de 2022, 15h42

Recentemente, várias empresas estatais tiveram seu capital alienado à iniciativa privada. O caso mais emblemático se deu com a Eletrobras, que deixou de ser controlada pela União e passou ao controle privado. Em português direto, essas empresas deixaram de ser estatais, tornando-se empresas privadas "puro sangue".

A mudança de status gera efeitos jurídicos relevantes. Neste artigo, o xis da questão é refletir sobre o que acontece nesses casos com as relações contratuais anteriormente firmadas, que tinham por base a natureza pública dessas empresas? Quando da transformação, há diversos contratos em execução que foram celebrados com base em regras especiais, aplicáveis às estatais. Eles são impactados pela alteração ou persistem íntegros como foram firmados? A resposta não é trivial.

Por de trás da questão se esconde um dos temas centrais do estudo do direito: a tensão entre conservação e mudança. O direito, ao mesmo tempo que deve ser dinâmico, adaptando-se à realidade, tem como um de seus objetivos principais a proteção e garantia da segurança jurídica, o que pressupõe a conservação do status quo. O choque entre essas duas forças gera dilemas jurídicos dos mais complexos, objetos do exame do direito intertemporal [1].

Voltando às estatais, buscar a resposta exige, preliminarmente, reflexão acerca da natureza dessas empresas. Como ponto de partida, tem-se que as estatais, por força da Constituição, se sujeitam nas suas relações contratuais ao regime privado. Todavia, este regime é excepcionado por diversas regras que deflexionam o regime privado, criando exigências específicas que decorrem da natureza públicas dessas empresas. Daí, inclusive, se falar em direito privado administrativo para se referir a essas relações que se interpolam entre o público e o privado.

Por exemplo, estatais se sujeitam ao dever de licitar e de realizar concursos públicos, assim como os vínculos formados a partir daí, embora privados, sofrem o influxo de normas de natureza pública. Diversas dessas normas condicionam o exercício da autonomia contratual das estatais, conformando o conteúdo das relações a um corpo de regras que decorre da Lei. Essa vinculação pode se dar em termos de conformidade ou de compatibilidade. Com efeito, a autonomia contratual das estatais é limitada por uma série de preceitos legais, que são mandatórios. Aqui, o fundamento de validade do contrato não é a autonomia contratual, mas sim a Lei.

Nesse contexto, parcela do conteúdo do contrato decorre da Lei, e não da vontade das partes. Este, aliás, é um dos problemas centrais da teoria do contrato administrativo, em que a autonomia contratual se conjuga com preceitos legais que decorrem da natureza pública do contratante [2].

A evolução do instituto do contrato administrativo demonstra bem essa cisão. Nela se vê a tentativa de compatibilizar a dualidade de conteúdos: de um lado, disposições que assumem força obrigatória por serem derivadas de um negócio jurídico e, de outro, cláusulas que decorrem de lei e visam assegurar a proteção de certos valores indissociáveis da natureza da parte contratante.

O efeito disto é reconhecer que sobre parcela do contrato  aquela que decorre da natureza administrativa da parte contratante  incide uma lógica distinta daquela que se aplica aos contratos privados. Mesmo que tenha se assistido à atenuação dessa dicotomia, ela persiste sendo útil [3] O regime da parcela contratual que se funda em lei não equivale ao conteúdo da parcela que decorre da autonomia contratual.

Disso tudo, o que precisa ser destacado é que nos contratos celebrados por pessoas jurídicas administrativas uma parcela das disposições que integra o instrumento decorre da Lei, e não da vontade das partes.  Embora até possa haver certa conformação do conteúdo dentro daquilo que a lei contempla, fato é que a fonte imediata da obrigação é a lei, e não o contrato.

A Lei das Estatais, embora tenha retirado as empresas públicas e as sociedades de economia mista do guarda-chuva da lei geral, instituiu um regime em que a contratação por parte dessas empresas persiste sujeita a regras especiais. Dessa maneira, mesmo celebrando contratos privados, em diversos pontos a Lei das Estatais conforma o conteúdo do contrato.

Quanto a essas normas, elas não são passíveis de serem afastadas pelas partes contratantes; sua incidência é mandatória. Tratam-se de normas especiais, cujo pressuposto de aplicação é que a contratante seja uma empresa qualificada normativamente como estatal (cf. artigo 1º da Lei das Estatais). Em suma: as estatais, em função da natureza da sua personalidade, estão sujeitas a aplicar as normas especiais previstas na sua Lei de regência.

Posta essa premissa, pode-se começar a esboçar a resposta à questão proposta. Fazendo um spoiler da conclusão: a transmutação da empresa de pública em privada implica que os vínculos por ela celebrados sejam revisitados, retirando-se deles as disposições cuja previsão pressupunha a sua natureza pública [4].

A alteração da personalidade da empresa de pública para privada impõe a modificação dos vínculos jurídicos por ela celebrados no que se refere às cláusulas cujo fundamento decorre da especial natureza da contratante. Isso ocorre porque nesses casos a alteração promovida atinge a parcela do contrato cuja fonte é a Lei e, portanto, tem natureza estatutária. Aqui, a mudança de status da personalidade da parte contratante impacta o conteúdo do contrato.

Embora os vínculos tenham se formado de maneira válida e eficaz, a modificação da natureza jurídica da parte contratante é evento superveniente que atinge parcialmente a execução do contrato. Dito de outra maneira, a eficácia da parcela do contrato que se funda nas disposições legais (i.e cuja razão de ser é a natureza da contratante) deixa de existir.

Considerando que a razão de ser dessas cláusulas especiais é a natureza estatal da contratante, desaparecendo essa circunstância tais normas deixam de ser eficazes. Elas produzem efeitos para assegurar a proteção de certos interesses que existem em função da natureza pública destas empresas, de modo que sua eficácia depende dessa característica especial. É nesses termos que a mudança na natureza jurídica da empresa atinge os contratos por ela celebrados. As cláusulas que são atingidas pela alteração são as que derivam e pressupõem a natureza estatal da parte contratante.

Do contrário, o que se observaria na prática seria o exercício de potestades contratuais decorrentes de estatuto  cuja utilização legítima pressupõe o manuseio de algum poder de império  por entidades essencialmente privadas, e isso à revelia de qualquer autorização legal.

É importante perceber que essa conclusão se restringe ao conteúdo do contrato que reflete as exigências que a Lei impõe às estatais. As cláusulas de natureza negocial persistem íntegras. Alguns exemplos para fins de ilustrar esta distinção.

De acordo com a Lei das Estatais, o contrato deve conter regra que obriga o contratado a preservar as condições de habilitação avaliadas na licitação por toda a execução do contrato. Aqui, se a empresa se tornou privada, a norma perde eficácia, pois a regra contratual só tem sentido em se considerando a natureza estatal da contratante. Ainda a título de exemplo, normas que limitam a alteração do contrato, sanções que visam a proteger interesses públicos (como a proibição de contratar com a Administração), todas essas são imediatamente impactadas pela alteração da personalidade da empresa.

Por outro lado, as cláusulas que representam elementos negociais (preço, prazo, garantia, etc.), que não pressupõem a natureza estatal da empresa, persistem válidas. O chamado conteúdo econômico do contrato persiste íntegro, caracterizando ato jurídico perfeito.

Em suma: a transformação de uma estatal em empresa privada em sentido estrito conduz à necessidade de se revisitar o conteúdo dos contratos assinados por elas. As cláusulas que se fundam na natureza estatal da contratante perdem eficácia diante da alteração, devendo ser revisitadas pelas partes.

 


[1] Sobre o tema e suas dificuldades: ASCENÇÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do direito, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 559 e ss.

[2] Sobre o tema: CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Coimbra: Almedina, 2003.

[3] Sobre a perda de sentido da noção de contrato administrativo: ESTORNINHO, Maria João. Réquiem pelo contrato administrativo, Coimbra: Almedina, 2003. Defendendo a utilidade do conceito: GONÇALVES, Pedro. O contrato administrativo  uma instituição do direito administrativo do nosso tempo, Coimbra: Almedina, 2004.

[4] Nesse sentido, vale notar que em decisão recente o TCU (Acórdão nº 2.383/2022) julgou prejudicada representação apresentada contra a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) sob a justificativa de que com a sua privatização ela deixou de integrar o rol de jurisdicionados da Corte: "De fato, uma vez que a Chesf deixou de integrar o rol de unidades jurisdicionadas desta Corte de Contas, e tendo em vista a natureza da matéria discutida nos autos, há de se reconhecer, nesta oportunidade, a perda de objeto da representação, com a consequente revogação da cautelar anteriormente concedida e o arquivamento dos autos".

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