Opinião

O orçamento público revela a intenção de proteger o meio ambiente?

Autores

  • Inês Virgínia Prado Soares

    é desembargadora federal no TRF-3 e mestre e doutora em Direito.

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

4 de novembro de 2022, 6h04

No mês de julho deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADPF 708, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, firmou entendimento no sentido de que o Poder Executivo não pode contingenciar verbas do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) em razão do dever constitucional de tutela ao meio ambiente. Conforme o voto relator desta ADPF, que fez parte da Pauta Verde, "trata-se do principal instrumento federal [Fundo Clima] voltado ao custeio do combate às mudanças climáticas e ao cumprimento das metas de redução de emissão de gases de efeito estufa". Trata-se de um instrumento da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) (Lei 12.187/2009), ligado ao Ministério do Meio Ambiente, que tem por objetivo o fomento à adaptação e à mitigação do clima.

Spacca
O direito ambiental, na Constituição Federal de 1988, insere-se no rol de direitos fundamentais sociais, os quais exigem do Estado uma atuação positiva do Estado para sua garantia e efetividade. A contrapartida desse dever de atuação, que se concretiza pela previsão e execução de tarefas, constitui o direito da coletividade a prestações estatais. Tal atuação para a efetivação do direito ambiental se dá, primordialmente, pela implementação de políticas públicas que atendam a essa finalidade; e a execução dessas políticas se materializa no orçamento, que é o mecanismo que viabiliza a prestação dos serviços públicos.

A destinação dos recursos para desenvolvimento dos serviços públicos que proporcionarão o desfrute do direito ao meio ambiente e à sadia qualidade de vida instrumentaliza a ação do Estado, colocando as prioridades eleitas para um período determinado. O direito ambiental é vivenciado por meio da lei orçamentária, seja em sua elaboração, momento no qual tarefas, planos, projetos e ações estatais são definidos e têm os recursos alocados, seja na fase de execução orçamentária, etapa que possibilita a efetividade dessa política com a aplicação concreta dos recursos públicos alocados. Isso deve se dar nos três níveis federativos, uma vez que o artigo 23 da Carta Magna estabelece a competência administrativa comum em matéria ambiental.

A fase de execução orçamentária demanda uma fiscalização e um controle mais amplo e objetivo por parte da sociedade civil e dos órgãos competentes, a exemplo do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, estes possuidores de expertise, inclusive no tema da gestão ambiental. Isso porque, diferentemente da etapa de elaboração das leis orçamentárias, na qual a escolha entre várias possibilidades de efetivação do direito está estritamente ligada à política pública previamente trilhada, na fase de execução, as escolhas estão consolidadas e legitimadas, pois seguiram o processo legislativo previsto constitucionalmente. Nessa fase, o administrador deve ter menor margem de liberdade na aplicação dos recursos destinados legalmente ao atendimento das finalidades traçadas, pois ele fica vinculado ao que foi definido anteriormente.

O conteúdo material do direito a ser implementado na execução orçamentária deve fornecer os elementos informadores do seu controle, de forma que o orçamento é o instrumento formal e o direito ambiental a base material para a atuação estatal. Isso implica dizer que os princípios e valores ambientais serão os vetores da execução orçamentária, que nesse caso deverá contribuir para a concretização do caput do artigo 225 da Constituição, núcleo essencial do direito ambiental brasileiro [1], que garante o direito de todos ao meio ambiente equilibrado. A consequência da aceitação desse entendimento, é uma restrição da liberdade do administrador e sua vinculação aos princípios e valores ambientais quando for executar o orçamento, que deve ser controlado e fiscalizado por todos que têm legitimidade para defender o meio ambiente, o que inclui desde os órgãos públicos até as associações e o cidadão comum.

A compreensão do sistema orçamentário brasileiro é essencial à implementação das políticas públicas e à concretização dos direitos sociais. A falta de percepção da importância do orçamento público como instrumento concretizador dos direitos sociais é colocada por Ricardo Lobo Torres com extrema clareza:

"Em rápidas pinceladas, esse é o saldo da cultura orçamentária brasileira: apreendemos a ideia liberal de orçamento e a constitucionalizamos em 1824; mas não a vivenciamos com profundidade, posto que até hoje temos dificuldade em proceder ao controle político do orçamento na via eleitoral e em pronunciar o discurso sobre as políticas públicas e os direitos sociais sob a perspectiva da alocação de verbas orçamentárias" [2].

De fato, no Brasil, a matéria orçamentária tem status constitucional desde a Constituição de 1824, embora ainda não existisse uma disciplina explícita do orçamento. Assim, o texto constitucional se limitava a dispor sobre as atribuições mais essenciais. Passados dois séculos e sob a égide da Constituição de 1988, o artigo 165 prevê três documentos orçamentários distintos: o Plano Plurianual, as Diretrizes Orçamentárias e os Orçamentos Anuais, este último composto do orçamento fiscal, orçamento de investimentos das empresas estatais federais e orçamento da seguridade social. Embora previstos no texto constitucional em Seção intitulada "Dos Orçamentos", é válido ressaltar que apenas a Lei Orçamentária Anual é lei de orçamento em sentido técnico restrito, sendo a Lei do Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias meros diplomas afins ou sobre orçamentos [3]. Esses três documentos orçamentários têm, segundo Misabel de Abreu Machado Derzi, "natureza, duração e função específicas e peculiares" [4].

Os três documentos legais são de iniciativa do Poder Executivo (artigo 84, XXIII, e 166, §6.º, da CF) e devem ser apreciados pelo Congresso nacional (artigo 48, II, e art. 166 da CF), que poderá propor emendas (nos termos do disposto nos §§2º, 3º e 4º do artigo 166 da CF). Finda a apreciação do Legislativo, os documentos orçamentários serão sancionados pelo Presidente da República. A Constituição Federal determinou que as normas pertinentes ao exercício financeiro, à vigência, aos prazos, à elaboração e à organização do Plano Plurianual da Lei de Diretrizes Orçamentárias e do orçamento anual seriam estabelecidas por lei complementar, conforme preceituado no artigo 165, §9.º, I. Essas normas estão veiculadas na Lei 4.320/64, recepcionada constitucionalmente, e na Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

A Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente) prevê entre seus objetivos a divulgação de dados e informações ambientais e a formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico (artigo 4º, V). Estabelece ainda que o Poder Público deve prestar informações sobre o meio ambiente e produzir essas informações, quando inexistentes (artigo 9º, XI). Essa lei estabelece também a obrigatoriedade da publicidade dos pedidos de licenciamento ambiental, sua renovação e respectiva concessão (artigo 10). A Lei 10.650/2003, que dispõe sobre o acesso público aos dados e informações ambientais existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama, dispõe que qualquer indivíduo, independentemente da comprovação de interesse específico, deverá ter acesso às informações ambientais, sendo o sigilo uma excepcionalidade (artigo 2º, § §1º e 2º). A própria PNMC estabelece como diretriz a promoção da disseminação de informações (artigo 5º, XII). Na realidade, o direito à informação está na espinha dorsal do direito ambiental, seja no plano nacional ou internacional [5], pois sem ele a participação fica comprometida, bem como a identificação dos riscos ecológicos bem como a definição das prioridades de atuação do Poder Público [6].

Ocorre que nessa matéria, além de dados sobre recursos naturais e processos administrativos ambientais, há que se saber sobre o orçamento, pois na prática isso definirá a efetividade desse tipo de política. Nessa perspectiva, o acórdão da ADPF 708 lança luzes para um tema pouco estudado e judicializado: o monitoramento dos resultados das políticas públicas de promoção dos direitos fundamentais indicados constitucionalmente, pela verificação da execução orçamentária. O monitoramento das políticas públicas é tratado pela literatura especializada como uma atividade vinculada de maneira umbilical ao direito à informação, com a finalidade de garantir um debate público qualificado e acessível. Para isso, são necessárias informações sobre as ações e metas almejadas, bem como sobre os resultados efetivamente produzidos pelas políticas públicas a médio e longo prazo. Em matéria ambiental esse controle se faz ainda mais premente, por ser um direito difuso e por ser também um dever fundamental, consoante o caput do artigo 225. Na ementa da ADPF 708, a omissão climática restou evidente:

"(…)
2.Os documentos juntados aos autos comprovam a efetiva omissão da União, durante os anos de 2019 e 2020. Demonstram que a não alocação dos recursos constituiu uma decisão deliberada do Executivo, até que fosse possível alterar a constituição do Comitê Gestor do Fundo, de modo a controlar as informações e decisões pertinentes à alocação de seus recursos. A medida se insere em quadro mais amplo de sistêmica supressão ou enfraquecimento de colegiados da Administração Pública e/ou de redução da participação da sociedade civil em seu âmbito, com vistas à sua captura. (…)
(…)
4. Dever constitucional, supralegal e legal da União e dos representantes eleitos, de proteger o meio ambiente e de combater as mudanças climáticas. A questão, portanto, tem natureza jurídica vinculante, não se tratando de livre escolha política. Determinação de que se abstenham de omissões na operacionalização do Fundo Clima e na destinação dos seus recursos. Inteligência dos artigos 225 e 5º, §2º, da Constituição Federal (CF).
5. Vedação ao contingenciamento dos valores do Fundo Clima, em razão: 1) do grave contexto em que se encontra a situação ambiental brasileira, que guarda estrita relação de dependência com o núcleo essencial de múltiplos direitos fundamentais; 2) de tais valores se vincularem a despesa objeto de deliberação do Legislativo, voltada ao cumprimento de obrigação constitucional e legal, com destinação específica. Inteligência do artigo2º, da CF e do artigo 9º, §2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal  LC 101/2000 (LRF). Precedente: ADPF 347 MC, relator ministro Marco Aurélio.
(…)".

Esse julgamento evidencia a questão climática como tema central para o meio ambiente saudável nos termos constitucionais, inserindo o Brasil no rol dos países onde a discussão climática chegou às Cortes Superiores [7]. Nesse cenário, cumpre destacar que no dia 18 de outubro deste ano a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou recentemente a admissibilidade da PEC 37/21, a qual inclui a segurança climática como um direito fundamental e como um princípio da ordem econômica. Inobstante a importância da decisão da ADPF 708 para o clima, é importante destacar que essa foi uma decisão sobre a vinculação do Poder Executivo ao orçamento, sendo, portanto, uma questão de direito financeiro ambiental. A postura do Governo compreendeu as metas climáticas e prejudicou a proteção do meio ambiente. O Fundo Clima apoiou 61 projetos na modalidade não reembolsável, fora os da modalidade reembolsável, tendo um papel importantíssimo na redução de emissões de gases de efeito estufa e na adaptação aos efeitos da mudança do clima.

Não se pode esquecer que o Brasil se comprometeu a enfrentar essa problemática quando instituiu, em 29 de dezembro de 2009, a PNMC, bem como ao ratificar o Acordo de Paris, em 12 de setembro de 2016. No entanto, o que aconteceu foi uma ampliação significativa do desmatamento, o que fez o país aumentar as suas emissões da pior forma possível, já que em regra as emissões [8] brasileiras não geram maiores benefícios econômicos e sociais à nação – diferentemente de países mais desenvolvidos, cuja contribuição é muito mais industrial. Sendo assim, houve violação de deveres constitucionais, convencionais e legais, de forma que, por ampla maioria [9], o STF reconheceu a omissão da União e determinou a sua abstenção de se omitir em fazer funcionar o Fundo Clima ou em destinar seus recursos, vedando o contingenciamento das receitas que o integram [10]. O orçamento público deve revelar a intenção de proteger o meio ambiente, porque tal é o desiderato constitucional, pois a política deve servir ao direito e não o contrário. A notícia veiculada nos meios de comunicação sobre o convite ao presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva para participar da Cúpula das Nações Unidas para o Clima (COP27), que ocorre em novembro no Egito, parece sinalizar um caminho diverso. Aguardemos!

 


[1] BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (coords). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 104.

[2] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. 3. ed. Renovar, 2008, p. 33.

[3] DERZI, Misabel de Abreu Machado, Repartição das receitas tributárias — finanças públicas — normas gerais e orçamentárias, Revista da faculdade de Direito da UFMG. 33, 1991, p. 380.

[4] DERZI, Misabel de Abreu Machado, Ibidem, p. 377.

[5] Seja em declarações internacionais ou em tratados e convenções, a exemplo da Convenção de Aarhus ou do Acordo de Escazú.

[6] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Malheiros: 2018.

[7] A Corte Constitucional Alemã decidiu pela obrigatoriedade da melhoria do desempenho do país em relação à redução de gases de efeito estufa prevista em compromissos internacionais, visto que a legislação nacional não era adequada para zerar as emissões em 2050 (https://www.dw.com/pt-br/alemanha-deve-melhorar-suas-metas-clim%C3%A1ticas-decide-tribunal/a-57373619).

[8] Na COP 26 o Brasil se comprometeu a zerar o desmatamento em 2028 e a reduzir as emissões de metano em 30% até 2030. Entretanto, a NDC brasileira (a Contribuição Nacionalmente Determinada) optou nesta década por um nível de emissões mais alto do que o apresentado em 2016. Isso está em dissonância com o Acordo de Paris, uma vez que não houve aumento da ambição climática. De toda sorte, as NDCs são flexíveis, cada país pode atualizá-las a qualquer instante.

[9] O único voto divergente foi o do ministro Kássio Nunes Marques, que entendeu que não houve omissão da União, a despeito do aumento do desmatamento e do contingenciamento das verbas do Fundo Clima.

[10] O STF já fez maioria na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 59, para decidir que a União foi omissa em relação à paralisação do Fundo Amazônia, o que comprometeu o financiamento de projetos de preservação na Amazônia Legal, contribuindo assim para a perda da qualidade ambiental na região (https://www.conjur.com.br/2022-out-27/stf-maioria-determinar-uniao-reative-fundo-amazonia).

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