Ambiente Jurídico

Direito climático e competência federativa

Autores

  • Gabriel Tedesco Wedy

    é juiz federal e professor.

  • Rafael Moreira

    é juiz federal doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) visiting researcher na Universität Heidelberg professor de Direito Ambiental e Administrativo na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafers) presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs) e autor de livros e artigos na área do Direito Ambiental das mudanças climáticas e Administrativo.

26 de fevereiro de 2022, 8h00

A emergência da crise ambiental e climática, reconhecida gradualmente sobretudo a partir da década de 1970, com o desenvolvimento de um robusto Direito Internacional Ambiental e do incremento do movimento ambientalista, seguido de posterior estruturação de amplo quadro legislativo e regulatório nos ordenamentos nacionais e consequente atribuição aos poderes públicos de deveres de implementação do Direito Ambiental, suscitou a necessidade de pensar, debater e organizar a alocação de funções dentro do Estado, notadamente em Estados federados como Brasil e Estados Unidos. Desde os primeiros passos dados na criação do Direito Ambiental, esteve presente a controvérsia entre centralização e descentralização, entre concentrar deveres proteção ambiental no ente maior ou disseminar entre os entes menores, entre se valer de diretrizes gerais e nacionais ou confiar na formulação de regras particulares, mais próximas dos cidadãos e apropriadas às peculiaridades regionais e locais.

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A título comparativo, essa discussão ainda está presente no sistema norte-americano, em que a legislação ambiental era inicialmente reservada a governos locais e estaduais, fase caracterizada pela coordenação insuficiente, baixo cumprimento das leis e ausência de serviço profissional. Em seguida, entre as décadas de 1940 e 1960, verificou-se um período de assistência federal aos estados nessa seara, seguido, nas décadas de 1960 e 1970, pelo desenvolvimento de um quadro regulatório ambiental federal [1]. A "federalização" do Direito Ambiental nos Estados Unidos, que iniciou na década de 1970 com o presidente Nixon, tendo como marco a edição do National Environmental Policy Act (Nepa) [2], porém, não encerrou o conflito entre centralização e descentralização na adoção de políticas ambientais, o que se demonstra pela considerável quantidade de litígios federativos sobre o tema. Como em certa ocasião afirmou o então justice da Suprema Corte estadunidense William Rehnquist, a Constituição exige uma distinção entre o que é verdadeiramente nacional e o que é verdadeiramente local [3]. Fazer essa distinção, entretanto, provou ser tarefa extremamente controversa e dividiu a Suprema Corte em diversas situações. Entre os valores conflitantes que subjazem os conflitos federativos em Direito Ambiental nos Estados Unidos, deve ser mencionado o problema das externalidades entre estados diversos, especialmente vazamentos de substâncias poluentes e tóxicas de um estado para outro (spillover), a possibilidade de se instaurar uma "guerra ambiental" ou "corrida para o piso" (race-to-the-bottom) entre os entes federativos e necessidade de estabelecer um "mínimo moral" como argumento para uma política centralizada de proteção da saúde humana e do meio ambiente [4].

Essa breve análise introdutória do Direito Ambiental norte-americano nos permite concluir que tais conflitos são usuais em estados federados, de grandes dimensões, como é o Brasil. Encontra-se no âmago dessa disputa definir quais critérios devem ser empregados para se decidir pela federalização, estadualização ou municipalização de determinada política pública, sem que se possa afirmar, em abstrato e de forma genérica, pela vantagem de uma abordagem sobre a outra. Esse o contexto que conduziu à aprovação da Lei Complementar (LC) nº 140/2011 e às reflexões sobre a cooperação federativa em matéria ambiental, sobretudo — tema deste artigo — quanto ao controle da poluição, para mitigar as mudanças climáticas.

A discussão sobre a competência federativa em matéria de proteção ambiental acompanha o desenvolvimento mesmo do Direito Ambiental no Direito Internacional e nos ordenamentos nacionais, desde a década de 1970. No Brasil, esses conflitos federativos revelaram-se comuns em razão de duas importantes características do nosso sistema constitucional de 1988: de um lado, a integração do município na federação como entidade de terceiro grau, com autonomia política, administrativa e financeira; de outro a atribuição, como regra, de competência administrativa comum e legislativa concorrente a todos os entes em matéria de proteção ambiental, sem uma definição mais precisa dos campos de atuação de cada esfera política.

Embora a competência comum e irrestrita possa, em tese, proporcionar maior proteção ambiental, é também geradora de inúmeros conflitos federativos: tanto conflitos "positivos", quando mais de um ou todos os entes atuam, muitas vezes de forma desordenada e sobreposta, como também conflitos "negativos", nas hipóteses em que a regulação ou fiscalização de determinada atividade não é interessante do ponto de vista político ou econômico. No primeiro caso, excesso de atuação, medidas contraditórias e insegurança jurídica; no segundo, omissão, inércia e proteção insuficiente.

A LC nº 140/2011 foi editada justamente para resolver ou mitigar os conflitos federativos que ocorriam no período que a antecedeu [5], ao regulamentar o artigo 23, parágrafo único da Constituição Federal. Teve como objetivos principais promover a descentralização da gestão ambiental, racionalizar os esforços dos entes públicos e ampliar a segurança jurídica, de modo a tornar mais efetiva a proteção ao meio ambiente. A LC nº 140/11, portanto, prescreve regras para demarcação da competência federativa para implementação da legislação ambiental em diversos setores.

Contudo, carece de previsão específica sobre medidas de combate à poluição e redução do aquecimento global. Essa omissão, porém, não deve levar à paralisia institucional, nem à insegurança jurídica, o que demanda do intérprete a formulação de vetores mínimos a orientar a tomada de decisão por parte de administradores e julgadores, ao menos enquanto não publicada lei a respeito.

No que concerne à adoção de medidas para contenção do aquecimento global, a divisão competencial reclama um olhar diferenciado, adequado às características próprias a esse desafio da humanidade no século 21. Isso porque os danos climáticos são caracterizados como duradouros, cumulativos e à distância (Langzeit-Distanz-und Summationsschäden) [6], de modo que tais externalidades não são sentidas apenas localmente, mas em todo o globo, o que pode gerar pouco incentivo à adoção de medidas por entes locais, regionais e, até mesmo, nacionais, para reduzir emissões de gases de efeito estufa, normalmente acompanhadas de restrições no curto prazo para economias locais, regionais e nacionais. É dizer, a tragédia de comuns, de Garret Hardin [7], condiciona os debates sobre os conflitos derivados das ações relacionadas ao combate às mudanças climáticas.

Deve-se considerar que, de um lado, a busca por soluções sustentáveis e de baixo carbono não pode desprezar as dificuldades enfrentadas pelas economias domésticas, tampouco olvidar os verdadeiros trade-offs que existem quando as medidas necessárias para implantar uma "economia verde" (green economy) entram em choque com objetivos políticos e econômicos de curto prazo [8]. De outro, os impactos (positivos) da adoção de medidas de mitigação das emissões de gases de efeito estufa e de estabilidade climática são difusos e coletivos, sentidos não apenas em todo o país, mas, sobretudo, em todo o planeta. Por isso, não se pode reservar exclusivamente às autoridades municipais e estaduais o estabelecimento de diretrizes para controle da poluição para fins de redução do aquecimento global.

No contexto do combate ao aquecimento global, pois, a União Federal desempenha função crucial de estabelecimento de normas gerais e patamares mínimos de proteção. É mais apropriado à esfera federal, também, a definição de metas mensuráveis para gradual transição energética e implementação de medidas de adaptação e a previsão de regras mínimas para preservação e recuperação da vegetação nativa, regulamentar e impulsionar o mercado de carbono em nível nacional, instituir uma tributação sobre o carbono e coordenar a integração entre os entes federativos. Aos estados, Distrito Federal e municípios cabe, além da tradicional adaptação da legislação federal a peculiaridades regionais e locais, respeitados os parâmetros mínimos nacionais, a adoção de outros instrumentos econômicos e tributários.

Em suma, tais diretrizes servem de norte não apenas à atribuição de funções efetivas para cada ente da federação, mas também para orientar as demandas judiciais voltadas à determinações positivas em face dos poderes públicos e à definição das respectivas responsabilidades por danos climáticos.

 


[1] Sobre as etapas de desenvolvimento do direito ambiental norte-americano, vide: LEAPE, James P. et al. Environmental regulation: law, science and policy. 7ª ed. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2013. p. 89-100.

[2] LEAPE, James P. et al. Environmental regulation: law, science and policy. 7ª ed. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2013. p. 94.

[3] United States v. Morrison, 2000.

[4] Para uma análise das valores conflitantes que subjazem a disputa federativa em questões ambientais nos Estados Unidos, consultar: CANNON, Jonathan Z. Environment in the Balance: the green movement and the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2015. Edição Kindle. Posição 3863-4520.

[5] FARIAS, Talden. Competência Administrativa Ambiental: fiscalização, sanções e licenciamento ambiental na Lei Complementar 140/2011. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 3-6

[6] A respeito das limitações para estabelecer a responsabilidade civil de empresas emissoras por danos climáticos, a preferência pela formação de uma legislação coerente para compensar esses danos e a imprescindibilidade da abordagem no plano do direito internacional, vide: APPEL, Markus; CHATZINERANTZIS, Alexandrus. Haftung für den klimawandel. NJW, 2019, p. 881-952.

[7] HARDIN, Garret. The Tragedy of the Commons. Science, v. 162, nº 3859, p. 1243-1248, 13 dez. 1968.

[8] RESNICK, Danielle; THURLOW, James. Green Growth: A Win-Win Approach to Sustainable Development? United Nations University, 9/11/2012. Disponível em: https://unu.edu/publications/articles/green-growth-a-win-win-approach.html. Acesso em: 21/5/2020.

Autores

  • é juiz federal, membro do Grupo de Trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafers), pós-doutor, doutor e mestre em Direito pela PUC-RS, visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) e diretor de assuntos internacionais do Instituto O Direito por um Planeta Verde (IDPV).

  • é juiz federal, doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), visiting researcher na Universität Heidelberg, professor de Direito Ambiental e Administrativo na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafers), presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs) e autor de livros e artigos na área do Direito Ambiental, das mudanças climáticas e Administrativo.

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