Contas à Vista

Quem paga pelo custo da escolha sobre o tamanho e o papel do Estado?

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1 de novembro de 2022, 8h00

Neste último domingo a sociedade brasileira foi às urnas. O resultado corresponde a uma escolha que não se resume à pessoa do chefe do Executivo nos âmbitos federal e estaduais, onde houve segundo turno. O saldo dessas eleições tão polarizadas precisa ser lido em sua dimensão estrutural, na medida em que, em última instância, ele aponta para a definição prospectiva de qual Estado queremos.

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A fragmentação da votação revela um país dilacerado em torno de supostas concepções extremas acerca da complexa tensão entre liberdade e igualdade. O pleito deste 30 de outubro teve — simbólica e implicitamente — a envergadura de potencial plebiscito sobre a continuidade, ou não, do pacto constitucional civilizatório celebrado em 1988, sobretudo no que concerne ao catálogo de direitos sociais e suas respectivas garantias de custeio.

Antes de falar em reunificação após as eleições, é preciso, porém, entender algumas das possíveis causas dessa cisão profunda, que, aliás, não é particularidade do Brasil. Em todo o mundo, a democracia tem sido exposta a níveis consideráveis de estresse e risco de ruptura. A crise econômica mundial de 2008 e a calamidade sanitária decorrente da pandemia da Covid-19 desnudaram a extrema e aviltante desigualdade. Enquanto milhões estão em insegurança alimentar, alguns bilionários se ocupam de supérfluos projetos de turismo espacial a um custo acintosamente desmesurado.

A "fome total" de muitos contrasta com o "carnaval" de poucos, até porque, como cantava Gilberto Gil (ou, se se preferir, como cantavam os Paralamas do Sucesso), a novidade da sereia na praia carrega consigo a dimensão de um "paradoxo estendido na areia, [diante de] alguns a desejar seus beijos de deusa, [enquanto] outros [estariam] a desejar seu rabo pra ceia".

Obviamente, não há democracia substantiva sem que se enfrente, em essência, o desafio bem resumido por Ulysses Guimarães, no discurso de promulgação da Constituição Federal, de que "é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa".

Há cerca de um ano e, portanto, ainda durante o auge da pandemia, Thomas Piketty, em entrevista ao jornal El País, alertara para o contexto internacional convulsivo em que nos encontramos, que lhe parecia análogo ao período que antecedeu a Queda da Bastilha na França do final do século XVIII:

"Estamos numa situação não muito diferente daquela que levou à Revolução Francesa: há uma fuga para a dívida pública que se explica porque não se consegue fazer as classes privilegiadas pagarem. Na época era a nobreza que não queria pagar impostos. E como isso foi resolvido? Com uma crise política, com os Estados Gerais, a Assembleia Nacional e o fim dos privilégios da nobreza. Agora, de uma forma ou de outra, terminará do mesmo jeito.

[…] A revolução de que falo consiste em fazer com que as maiores fortunas contribuam. Se se cria um sistema no qual você pode enriquecer usando a infraestrutura pública de um país, seu sistema educacional, seu sistema de saúde, e então, com o simples aperto de um botão, você pode transferir seus ativos para outra jurisdição sem que haja nada previsto para controlar isso, e depois você simplesmente pode deixar a conta para as classes média e popular que estão inertes e não podem sair do país … É um sistema insustentável. A pergunta é se o questionamento desse sistema será feito de forma desordenada ou apaziguada, como eu prefiro. Sou um intelectual: escolhi escrever livros, não ser guerrilheiro."

Em nosso país, o teto de despesas primárias tem por finalidade subjacente primordialmente ocultar o impasse narrado por Piketty: a recusa dos mais ricos em pagar tributos. Tal escolha plutocrática impõe, por sua vez, uma deliberada necessidade de as finanças públicas fugirem para a dívida pública. Todavia, o disputado resultado das urnas parece indicar que a desigualdade não será facilmente ocultada ou simplesmente tergiversada, mais uma vez, tão somente por meio da agenda de costumes ou por uma escalada armamentista no Brasil.

Após tantas e tão cínicas mudanças no teto dado pela Emenda 95/2016, não é possível mais manter uma pauta maniqueísta de redução do Estado, apenas controlando despesas primárias e ignorando o fato de que a riqueza subtributada tem sido segura e relativamente bem remunerada na dívida pública.

Ora, ajuste fiscal justo necessariamente há de enfrentar tanto as regressivas opções de tributação, quanto as opacas e ilimitadas despesas financeiras. Tal ampliação de escopo deve ser feita, sem prejuízo da demanda de qualificação das despesas primárias para que cumpram, de fato e de direito, a ordenação legítima de prioridades fixada pelo planejamento setorial das políticas públicas.

Nesse cenário, é preciso constranger quem tem se recusado a arcar — de forma republicana e proporcional à sua capacidade contributiva — com o custo da escolha sobre o papel e o tamanho do Estado brasileiro. Em tempos tão perigosamente convulsivos do ponto de vista da desigualdade, é oportuno e conveniente que seja resgatada a vetusta noção de "função social da propriedade" para tentar estabilizar minimamente o conflito distributivo no orçamento público dos diversos entes da federação.

A persistente e crônica desigualdade compromete a estabilidade democrática no território nacional. Sem que os mais ricos paguem equitativamente mais tributos e sem que o Estado consiga financiar — de forma minimamente adequada — os serviços públicos essenciais, continuamos a viver sob um potencial campo minado de tensões sociais prestes a convulsionarem.

Em entrevista à BBC, o historiador Sidney Chalhoub, professor de História e Estudos Sfricanos e Afro-Americanos da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, considera que três foram as grandes reações conservadoras aos tímidos movimentos de enfrentamento à desigualdade experimentados ao longo da formação do Brasil.

Chalhoub se refere aos seguintes movimentos: (1) proclamação da República, como reação à abolição da escravatura pela monarquia; (2) ditadura militar, como antítese aos efeitos redistributivos trazidos pela Consolidação da Legislação Trabalhista e, por fim, (3) instabilidade política desde 2013, como questionamento implícito acerca de uma suposta sobrecarga fiscal de demandas imposta pela Constituição de 1988, haja vista sua previsão alegadamente generosa de direitos sociais. Segundo o aludido professor de Harvard,

"A classe senhorial ficou bastante irritada com o apoio da monarquia a isso [abolição], principalmente onde a escravidão ainda tinha força econômica, nas Províncias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, as que mais se opuseram à emancipação.

[…] O conservadorismo senhorial insistiu na escravidão até o fim e, depois, deu o troco na monarquia, que defendia a escravidão, mas, no final, se convenceu da necessidade de transformação social e pagou caro por isso [já que, um ano depois, foi proclamada a República].

[Em meados do século XX], houve uma reação forte do empresariado, que viu seu poder ser diminuído [por força da legislação trabalhista] e reclamou que estava perdendo autoridade moral sobre os trabalhadores em uma época em que ainda vigorava uma relação de paternalismo que tratava a fábrica como uma família […].

Quando houve a discussão para estender os benefícios aos trabalhadores rurais, isso parece ter sido a gota d'água que levou ao golpe de 1964, que impôs um limite ao reconhecimento dos direitos dos trabalhadores.

[…] No período democrático pós-1988, não apenas esses direitos [sociais] continuam em vigor como foram expandidos, e isso causou uma reação conservadora muito grande a partir de 2013, especialmente na área dos costumes. […]

A reação conservadora à abolição da escravatura continuou República adentro, a reação que culminou no golpe de 1964 levou a uma ditadura de mais de 20 anos. Essa reação atual vai completar uma década [2013-2023] […].

Mas essa onda eleitoral indica que não só não se esgotou, mas pode, apesar da sua vocação antidemocrática, sobreviver democraticamente e ter força para influenciar a democracia, porque conta com uma quantidade grande de eleitores. Na verdade, tudo indica agora para uma resiliência e uma continuidade de longo prazo […]."

É, portanto, inequívoco o diagnóstico de que a desigualdade é uma das mais importantes chaves de resposta para a profunda instabilidade da nossa democracia. A grande concentração de renda no topo, em grande medida, responde também pela própria insegurança institucional quanto ao futuro da Constituição Cidadã.

As eleições nacionais deste último domingo foram extremamente polarizadas porque traziam consigo — direta ou indiretamente — o conflito sobre quem paga a conta do tamanho constitucionalmente necessário do Estado brasileiro. Tal impasse se revela dramático, sobretudo quando contrastado com o significativo passivo histórico de havermos acumulado milhões de cidadãos famintos, semialfabetizados e precarizados por toda sorte de estratégias de esvaziamento dos seus respectivos direitos fundamentais.

Mais cedo ou mais tarde, haveremos de rever as regras fiscais brasileiras e seremos chamados a debater esse risco de convulsão social por falta de enfrentamento minimamente pactuado — por dentro das leis do ciclo orçamentário — acerca das equações nucleares da vida em sociedade.

É preciso pautar o quanto antes a noção de equidade fiscal, até para que saibamos quem, de fato, tem tal ou qual direito e quem arca com os respectivos custos. Em última instância, nossa democracia clama que debatamos como custear o horizonte capaz de assegurar, ao longo do tempo, que todos possam aspirar concretamente à dignidade prometida constitucionalmente.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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