Interesse público

Abuso no processo legislativo e poder de veto: o caso Eletrobras

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

29 de julho de 2021, 9h02

Machado de Assis, além de genial escritor, foi cronista da política brasileira no último quartel do século 19.  Dedicava especial interesse ao funcionamento do Senado no Império e no início da República. Em crônica de 1861, reclama do marasmo da política e do imobilismo dos Ministros, que se entregavam ao fatalismo:

Spacca
"Foi sempre princípio do nosso governo aquele fatalismo que entrega os povos orientais de mãos atadas às eventualidades do destino. O que há de vir, há de vir, dizem muitos ministros, que, além de acharem o sistema cômodo, por amor da indolência própria, querem também por a culpa dos maus acontecimentos nas contas da entidade invisível e misteriosa, a que atribuem tudo"[1].

Se não há atualmente marasmo na política, o que dispensa debate, parece certo dizer que o fatalismo e a fuga de responsabilidades persistem incólumes. O Congresso altera o projeto de lei de desestatização da Eletrobras, mete no artigo que autoriza a venda de ações sob controle da União inúmeras normas de criação de despesas, e o presidente afirma que nada pode fazer. O Congresso multiplica por três, em plena pandemia, no Projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias, a autorização para a ampliação do valor do fundo eleitoral e, novamente, o fatalismo domina o discurso governamental.

Porém, qual o limite do poder de veto presidencial em face de abusos legislativos e, em particular, dos "jabutis" (contrabandos legislativos) no direito brasileiro? A questão é pouco estudada e hoje pede uma revisão abrangente, especialmente à luz da valorização do devido processo legislativo e das contribuições da legística.

Jabutis legislativos
Jabutis legislativos são normas intrusas, divorciadas do objeto dos enunciados originais de projeto de lei ou de medida provisória, inseridas mediante emendas parlamentares e ao final aprovadas no conjunto das normas contidas em determinado diploma legal. São normas que quebram com a homogeneidade do objeto legislativo e, por isso, violam o artigos 7o da Lei Complementar 95/98, que disciplina a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis. São normas de conteúdo casuístico, que usurpam do presidente da República o juízo privativo, de matriz constitucional, quanto à urgência e relevância de matéria a ser veiculada por medida provisória ou em projeto de lei de iniciativa privativa. Com frequência agravam despesas, ameaçam a inteligibilidade e a racionalidade da lei e a própria segurança jurídica.

A Lei Complementar 95/98, por exemplo, estabelece entre os seus princípios que "excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto" (artigo 7o,, I); "a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão" (artigo 7o,, II); "o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva" (artigo 7o,, III) e, por fim, "o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa" (artigo 7o,, IV). 

As normas-jabutis e as leis que as albergam são conhecidas no direito comparado sob diferentes rótulos: "cavaliers legislatifs", "leyes ómnibus", "leyes chorizo"[2]

Apenas recentemente, a partir outubro de 2015, o STF passou a declarar inconstitucionais, por violação ao princípio democrático e ao devido processo legislativo (art. 1°, caput, §único, art. 2°, caput, e art. 5°, LIV, da Constituição Federal), as emendas parlamentares sem pertinência temática com o objeto da proposta de lei ou medida provisória.[3]

Na decisão paradigma, voltada às medidas provisórias, o contrabando normativo é definido como "a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória". (STF,ADI 5127).

Trata-se de tema delicado, pois não é sempre nítida a fronteira entre a inovação legítima e ilegítima de projetos ou medidas de iniciativa exclusiva no curso do processo legislativo. Há o regular exercício, pelo Parlamento, do direito de emendar, e nem sempre, no caso concreto, as emendas acolhidas inovam com abuso ou fraude à iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo.

Mas há casos em que há clareza indiscutível do contrabando normativo. E a Lei 14.182/2021,que dispõe sobre a desestatização da empresa Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobras), é um caso escolar para o estudo das normas-jaboti [4].

A Lei 14.182/2021 é resultante da conversão da MP 1.031/2021. Na MP, o §1º, do art.1º, possuía vinte e nove palavras ou 190 caracteres; na lei aprovada, que segue a mesma estrutura inicial, essas vinte nove palavras foram reproduzidas e seguidas de outras seiscentas e cinquenta e seis palavras, ou 3671 caracteres, todos relativos a obrigações novas não presentes na medida original.

Trata-se de texto normativo que amontoa normas em sequência, no mesmo parágrafo, na busca deliberada de criar impedimento ao exercício do poder de veto pelo Presidente da República, pois o Art. 66, § 2º, da Constituição Federal, prescreve que "o veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea".

Para evitar o veto parcial às normas intrusas da lei, veto de artigo, parágrafo ou alínea jabuti, os congressistas inseriram em fileira única as normas clandestinas no artigo central do diploma normativo, exatamente o §1º, do artigo 1º, aquele que autoriza a desestatização da Eletrobras executada na modalidade de aumento do capital social, por meio da subscrição pública de ações ordinárias com renúncia do direito de subscrição pela União.

Abuso legislativo evidente, que Egon Bockmann Moreira educadamente denominou "traquinagem", por haver a lei de conversão transformado o "artigo 1º num monstrengo de 1.202 palavras", ocupando apenas o seu § 1º duas páginas, "em benefício de grupos de interesse bem organizados"[5]. Entre as normas-jabutis há a exigência de contratação obrigatória de energia proveniente de Pequenas Centrais Hidrelétricas e de usinas termelétricas a gás natural, estas últimas a serem instaladas nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, decisões administrativas concretas, que a todo rigor invadem inclusive a reserva de administração do Poder Executivo e escapam ao escopo da Lei.

Ocorre que o sistema jurídico brasileiro aceita que o Supremo Tribunal Federal declare a inconstitucionalidade de fragmento de artigo de lei, ou mesmo de parágrafo, ou inciso ou alínea. Portanto, nada impede que o STF restaure a versão original do §1º, do art.1º, da Lei 14.182/2021. Ainda que proclame ser apenas "legislador negativo" (e cada vez menos enuncie esse chavão), e recuse compor outra norma mediante "a supressão seletiva de fragmentos do discurso normativo inscrito no ato estatal impugnado" (ADI 1063 MC, Rel. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 18/05/1994, DJ 27-04-2001,P-57), o fato é que o STF não tem encontrado barreiras para proclamar a inconstitucionalidade de fragmentos de textos normativos, desde que considere que apenas expurga o segmento violador da Constituição do texto impugnado sem a construção de norma nova.

Hoje o próprio Plenário do Senado, após a decisão do STF na ADI 5127, segundo informa Roberta Simões, atribui-se a competência para "rejeitar, de ofício, as emendas realizadas pela Comissão Mista e pela Câmara dos Deputados que não guardam afinidade como tema originário da medida provisória ou que provoquem o aumento da despesa pública" [6]

Nesse cenário, penso que o artigo. 66,§2º, da Constituição não deve receber interpretação literal. A proibição de veto presidencial a fragmento de texto de artigo, alínea ou parágrafo, deve ser lida como proibição de veto a fragmento de norma (fragmento de significação prescritiva) e, da mesma forma, como proibição à supressão seletiva que permita construir norma nova, diversa de qualquer outra aprovada no processo legislativo. Em outras palavras: o veto pode atingir exclusivamente enunciados prescritivos específicos(expressivos de normas completas), dispersos ou amontoados sequencialmente em um único artigo, parágrafo, alínea ou inciso.

Sem essa inteligência renovada, afinada com a Lei Complementar 95/98 e as exigências da legística, o Presidente da República (qualquer presidente, atual ou futuro) será refém de contrabandos normativos, violadores do devido processo legislativo.[7]

Não há sentido na interpretação literal da norma contida no Art. 66, § 2º, da Constituição, aferrada à forma e não aos conteúdos prescritivos, pois ela favorece a fraude legislativa e descalibra o sistema de freios e contrapesos ao obrigar o Presidente a socorrer-se do Supremo Tribunal para imprimir efetividade à prerrogativa do veto parcial à Lei.

A prerrogativa de impedir o abuso legislativo pelo exercício do veto, desde que isolada uma unidade de sentido normativo específico (uma norma ou um significado completo de prescrição), é ainda faculté d’empêcher” (sustar ou impedir a decisão de outrem), não se confundindo com a “faculté de statuer”(o direito de ordenar ou legislar por si, isoladamente). O veto presidencial deve ser prerrogativa equiparada, em latitude, à faculdade de impedir do STF, sem a eficácia jurídica de decisão definitiva exclusiva da Corte, pois o veto apenas devolve ao Congresso a matéria questionada.

O efeito jurídico do veto é a suspensão da transformação do projeto, ou de parte dele, em lei. No veto parcial, a parte do projeto sancionada converte-se em lei e entra em vigor; a outra parte permanece suspensa e sujeita-se a controle de confirmação ou recusa do veto pelo Congresso Nacional. No veto total, a vigência do projeto fica suspensa até a decisão congressual. Mesmo recusado, o veto servirá como registro público do desacordo interinstitucional e pode ser considerado no controle da constitucionalidade da lei. 

Essas observações no tocante à desestatização da Eletrobras são úteis para debates futuros, pois o Presidente não vetou o §1º,do art.1º, da Lei 14.182, mantendo ileso o parágrafo-romance aludido, talvez o parágrafo mais extenso da história do direito brasileiro.

O debate – como era de esperar — foi transferido para o STF, que julgará, no curso das ADI’s 6702, 6705 e 6929, a constitucionalidade ou não das normas intrusas aprovadas e não vetadas.

A fuga de responsabilidades
A evasão de responsabilidades, a política "teflon", que busca culpabilizar a terceiros (bodes expiatórios) ou a justificar omissões próprias com argumentos institucionais genéricos, não é certamente invenção brasileira.

Christopher Hood, por exemplo, explora amplamente o tema do "jogo da culpa" e sua ocorrência em instituições de todos os níveis ao redor do mundo, revelando que se trata de uma questão universal[6].

A interpretação literal do artigo 66, § 2º, da Constituição, favorece a transferência de responsabilidades e impede o eleitor de avaliar seriamente a orientação política do presidente da República quando confrontado com decisões controversas. A redação expressa do seu enunciado deve ser harmonizada com as exigências da segurança jurídica e da separação de poderes, cláusula dinâmica, que exige permanente atualização, inclusive para inibir novas formas de abuso no diálogo entre os Poderes.  Fatalismos institucionais e evasão de responsabilidades são anacronismos que o país deve superar.

[1] ASSIS, Machado de. O Velho Senado. Coletânea. Brasília:Senado Federal,2004, p.55.

[2] MÁRQUEZ, Piedad García-Escudero. Técnica legislativa y seguridad jurídica: hacia el control constitucional de la calidad de las leyes? Madrid: Civitas, 2010, p. 60 e segs.

[3]DIREITO CONSTITUCIONAL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. EMENDA PARLAMENTAR EM PROJETO DE CONVERSÃO DE MEDIDA PROVISÓRIA EM LEI. CONTEÚDO TEMÁTICO DISTINTO DAQUELE ORIGINÁRIO DA MEDIDA PROVISÓRIA. PRÁTICA EM DESACORDO COM O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E COM O DEVIDO PROCESSO LEGAL (DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO). 1.Viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, CRFB), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória. 2. Em atenção ao princípio da segurança jurídica (art. 1º e 5º, XXXVI, CRFB), mantém-se hígidas todas as leis de conversão fruto dessa prática promulgadas até a data do presente julgamento, inclusive aquela impugnada nesta ação. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente por maioria de votos. (ADI 5127, Rel.ROSA WEBER, Relato p/Acórdão EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, jul 15/10/2015, DJe-094, 10-05-2016)Ver, ainda, LAAN, Cesar Rodrigues van der. Um panorama recente da apresentação de Emendas sem pertinência temática a MedidasProvisórias pós-ADI 5.127. Brasília: NEP/CONLEG/Senado, fev. 2018, Disponível emhttps://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td244

[4] A nomenclatura vem do adágio popular “Jabutis não sobem em árvore. Se lá está, ou foi enchente ou mão de‘gente’.

[5] MOREIRA, EgonBockmann. O indevido processo legislativo na desestatização da Eletrobras. Jota, 06/07/2021.

[6] Cf. NASCIMENTO, Roberta Simões. Teoria da legislação e argumentação legislativa na Espanha e no Brasil: análise dos cenários das leis sobre a violência contra a mulher. Tese,Unb, Alicante, Brasília, 2018, p.584-585.

[7] Viola, inclusive, aResolução n. 1, de 2002, do CongressoNacional, cujo art. 4º, § 4º, estabelece: “Art. 4º.(…) § 4º É vedada a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na MedidaProvisória, cabendo ao Presidente da Comissão o seu indeferimento liminar”. Sobre a relevância das normas regimentais, ver: MODESTO, Paulo. Fraude no devido processo legislativo e seu controle jurisdicional. Conjur,01-07-2021.Disponível emhttps://www.conjur.com.br/2021-jul-01/interesse-publico-fraude-devido-processo-legislativo-controle-jurisdicional

[8]HOOD, Christopher. El juego de la culpa: manipulación, burocracia y autoconservación en el Estado. Trad. José Antonio Olmeda Gómez. Madrid: INAP, 2014. Sobre o tema, na doutrina brasileira, cf. SANTOS, Rodrigo Valgas. O Direito Administrativo do Medo:risco e fuga da responsabilidade dos agentes públicos. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 339-371; GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O Direito Administrativo do Medo:a crise da ineficiência pelo controle. Revista Colunistas de Direito do Estado, 31/01/2016, emhttps://bit.ly/direito-adm-medo

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    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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