A reinvenção do MP

Ministério Público busca modelo de atuação institucional e mais estratégico

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29 de março de 2022, 8h38

*Reportagem publicada no Anuário do Ministério Público Brasil 2022. A publicação está disponível gratuitamente na versão online e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa.

A Constituição Federal de 1988 tirou o Ministério Público Brasileiro da condição de mera repartição do Poder Executivo para o papel de agência independente no mesmo patamar dos poderes da República. O pêndulo da história alçou essa constelação ao seu apogeu com as célebres “operações” que inebriaram o país. A mais fulgurante delas durou seis anos. Foi a autoapelidada “lava jato”. O seu ocaso foi também o epílogo de um dos períodos mais punitivistas e moralista da história.

Das cinzas desse período, nasce um novo Ministério Público, mais maduro, reflexivo e focado em premissas mais duradouras e comprometidas com o desenvolvimento. A nova era, que já começou, orienta-se, especialmente, na prevenção ao crime. Em vez da impetuosidade individual de alcançar os fins não importam os meios, uma atuação marcada pela institucionalidade e pelo respeito às regras. Saem as prisões temporárias para forçar delações premiadas direcionadas entram os acordos de não persecução penal; saem as forças-tarefas espetaculares entram os Gaecos, devidamente regulamentados e sob controle.

Com o acordo de não persecução penal, regulamentado pela Lei 13.964/2019, a chamada lei anticrime, o MP tem em suas mãos o poder de, mediante a confissão do acusado, impor regras e reparação do dano para que o sistema judicial não seja acionado em casos de pequeno e médio potencial ofensivo. O procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que os ANPPs têm a grande vantagem de trazer rapidez à solução de conflitos e pacificação social, ao evitar que se arrastem por anos processos que muitas vezes acabam no Supremo Tribunal Federal com a aplicação do princípio da insignificância. O MP atua de forma preventiva e mais estratégica.

A mesma lógica vale para acordos de não persecução cível e de leniência e colaborações premiadas. A atuação extrajudicial do MP na área penal se fortalece e a busca pelo Poder Judiciário passa a se concentrar nos casos de grande relevância social, econômica, política.

Os casos penais são os que mais demandam a atuação extrajudicial. O Ministério Público Federal, em 2020, recebeu quase 300 mil inquéritos policiais e termos circunstanciados. Na área cível, foram instaurados 62 mil notícias de fato e inquéritos civis. No mesmo período, os MPs Estaduais receberam mais de 4 milhões procedimentos criminais e instauraram 1 milhão na área cível.

Sede da PGR, em BrasíliaAntônio Augusto/Secom/PGR

Já a atuação judicial do MPF em ações penais é bem menor. Enquanto recebeu da Justiça 353 mil processos criminais, os cíveis somaram mais de 1 milhão. Nos MPs Estaduais, as ações penais ainda prevalecem: foram recebidos 5,5 milhões de processos penais e 3,7 milhões de casos relacionados a temas cíveis. Os números constam no levantamento MP Um Retrato, elaborado pelo Conselho Nacional do MP.

Em 2021, foram firmados, por membros do Ministério Público Federal, 7.363 acordos de não persecução penal e 210 de não persecução cível, conforme dados do portal MPF em Números. Já a totalização mais recente dos dados dos Ministérios Públicos Estaduais, publicados no MP Um Retrato, mostram que em 2020 foram firmados 19.153 termos de ANPP.

omo toda novidade, os ANPPs ainda têm um longo caminho pela jurisprudência, inclusive a do próprio Ministério Público. Na Procuradoria da República da 1ª Região, com sede em Brasília, um acordo com o Tribunal Regional Federal permite a celebração desses acordos em instância recursal. No entendimento dos procuradores, trata-se de norma penal mais benéfica ao réu e, por isso, eles têm atuado para viabilizar a retroação da lei, mesmo que já oferecida a denúncia e estando o processo em grau de recurso.

Já para os procuradores que atuam no TRF-4, com sede em Porto Alegre, acordos de não persecução penal não podem ser assinados depois do oferecimento da denúncia. No Supremo Tribunal Federal, em parecer em Habeas Corpus, o subprocurador-geral Wagner Natal defendeu que o ANPP só pode ser firmado até o recebimento da denúncia, sendo este o marco limitador da sua viabilidade.

Augusto Aras preside reunião do Conselho Superior: confronto de visões da forma de atuar do MPSecom/PGR

A direção do Ministério Público do Estado de São Paulo destaca que incentiva a Justiça Penal negociada desde 2018, quando o Conselho Nacional do MP regulamentou os ANPPs, antes mesmo que estivessem previstos em lei. Desde então, 23.500 acordos foram assinados no estado. No Mato Grosso do Sul, pouco antes de a epidemia se disseminar, o procurador-geral Alexandre Magno Benites Lacerda conseguiu aprovar resolução ancorada no Código de Processo Civil para que em todas as demandas haja negociação antes da judicialização. Em 2020, foram propostas apenas 201 ações civis no estado.

Os acordos de não persecução cível ainda não alcançaram a força esperada porque o instituto permaneceu inoperável desde 2019, pois todas as disposições referentes ao procedimento para sua realização foram vetadas. A Lei 14.230/21, que alterou substancialmente a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), veio para suprir essa falta, no seu artigo 17-B. A principal vantagem do acordo é que, uma vez homologado e cumprido, fica encerrada a ação de improbidade administrativa e extinta a punibilidade do agente pelos atos de improbidade ali debatidos. O acordo, no entanto, é limitado à ação de improbidade e não implica afastamento de eventual responsabilidade cível ou criminal decorrente dos fatos debatidos na ação extinta.

Na contramão da cultura lavajatista gestada dentro do MPF por gestões anteriores, Augusto Aras conseguiu dar fim ao modelo de forças-tarefas criando Gaecos – Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado – federais, ainda que com muitas resistências iniciais. A medida foi adotada em busca de institucionalizar a atuação do MPF em investigações complexas. A meta agora é instalar Gaecos em todas as unidades do MPF. “Ao instalarmos os Gaecos, tanto aperfeiçoamos a institucionalidade que faltava como fortalecemos o sistema de freios e contrapesos internos da unidade a que está vinculado o Gaeco – realizado pela Corregedoria do MPF – e externo, pelo CNMP e pelos demais entes públicos”, explica.

Em nota publicada em novembro de 2021, a PGR diz que a alteração assegura a institucionalidade do trabalho de combate à corrupção e à macrocriminalidade. “O procurador natural responsável pela investigação de um grande caso de corrupção anteriormente escolhia, sem critério algum, colega de qualquer lugar do país para auxiliá-lo com designações que eram renovadas anualmente pelo procurador-geral da República. Esse modelo precário e sem regras foi substituído pelos Gaecos, nos quais o procurador natural de uma investigação complexa recebe auxílio de um grupo permanente, formado a partir de critérios claros, com mandatos de dois anos e garantias para seus membros”, diz a nota.

Presentes na estrutura de todos os MPs Estaduais, ainda não existiam no MPF, embora tivessem permissão normativa desde 2013. Até o fechamento desta edição do Anuário do Ministério Público, já eram sete estados com Gaecos federais em funcionamento e 12 com comissão provisória instalada (leia mais detalhes na reportagem sobre os Gaecos à página 35).

O modelo pretende estabelecer uma metodologia uniforme de trabalho em todo o país, a partir das diretrizes gerais já criadas, sem desconsiderar as realidades locais. Nesta fase inicial, ainda existem dúvidas sobre o bom desempenho dos grupos. Procuradores apontam que eles só serão eficientes se houver pessoal à disposição, já que entendem que os Gaecos federais jamais terão a estrutura dos seus similares estaduais.

Lembram que em alguns estados o MPF conta com apenas 15 procuradores da República. Um Gaeco formado por três membros nesse estado já absorveria 20% da força de trabalho local. O cobertor é curto. Bem assim, as portarias que os instituem já alertam que trata-se de “órgão de apoio ao procurador natural”, sem prejuízo de acúmulo das funções do procurador em seu ofício de origem.

A subprocuradora Samantha Dobrowolski entende que, para os Gaecos darem certo, é preciso dotá-los de recursos tecnológicos, materiais, humanos e de assessoria pericial, além dar a eles tempo e dedicação. “As pessoas que estão no Gaeco precisam ter um mínimo de tempo dedicado àquele caso, senão é um simulacro de eficiência. Se for para acumular todas as funções com casos dessa magnitude, como nós vimos na ‘lava jato’, na greenfield e na força-tarefa da Amazônia, é impossível se obter o grau de eficiência que a sociedade cobra.”

Aras entende que fracassou o modelo das forças-tarefas, cujo exemplo mais notório foi a operação “lava jato”. A meta agora é preservar os ganhos – que os houve – e corrigir os excessos – que aconteceram em maiores proporções ainda. “A denominada operação ‘lava jato’ cumpriu função relevante em uma fase da vida pública brasileira. Houve excessos, a partir de um modo de atuação com falhas, que nossa gestão vem corrigindo. Temos buscado institucionalizar as forças-tarefas, cada uma identificada por certas características e conexões”, avaliou o PGR, em balanço de sua gestão.

A PGR adotou, também, novo modelo de atuação em matéria constitucional, buscando maior eficiência e unidade institucional no controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. A proposta é de se atuar de forma preventiva e proativa e não simplesmente dando respostas às representações que chegam ao gabinete do PGR. Assim, passou-se a analisar em bloco as questões constitucionais dos estados para dar tratamento uniforme a temas que se repetem em diferentes unidades da Federação.

Viabiliza-se, assim, o ajuizamento a um só tempo de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) contra leis semelhantes editadas em diferentes estados. No total, foram propostas 299 novas ações diretas de inconstitucionalidade, 13 arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) e quatro ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADOs). Ao todo, foram 315 novos feitos. O PGR se manifestou em 1.318 ações constitucionais propostas por outros entes.

Trabalho em conjunto em todo o Ministério Público brasileiro foi adotado logo que constatada a gravidade da covid-19. O procurador-geral da República determinou a criação do Gabinete Integrado de Acompanhamento da Epidemia Covid-19 (Giac) para promover a integração de todos os ramos do MP ao esforço nacional de controle e prevenção da doença, em articulação também com o Ministério da Saúde e demais autoridades sanitárias das três esferas de governo (federal, estadual e municipal).

Em 18 meses de trabalho, o grupo realizou e/ou acompanhou 296 reuniões e emitiu 431 ofícios e cerca de 300 informativos e boletins, além de ter instaurado milhares de procedimentos. Também teve papel decisivo na destinação de recursos públicos decorrentes da atuação do Ministério Público brasileiro para o enfrentamento da epidemia. Considerando apenas os ramos que integram o MP da União – MPF, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal –, o total destinado ultrapassou R$ 4,7 bilhões.

O Giac criou uma rede de focalizadores nos estados, incluindo membros dos MPs Estaduais e gestores estaduais e municipais da saúde, para resolução negociada de problemas. “A interlocução que fizemos com todos os órgãos, as recomendações expedidas e outras medidas nos permitiram buscar soluções administrativas que muito contribuíram para evitar a judicialização”, explicou a ex-coordenadora finalística do Giac, subprocuradora-geral da República Célia Regina Delgado, atual corregedora do MPF.

O Ministério Público no Brasil é formado por quase 13 mil membros, que integram o MP da União e os MPs Estaduais, com atuação na Justiça Federal, nas Justiças Estaduais, além de na Justiça do Trabalho, Militar e Eleitoral. Recebeu da Justiça 14 milhões de processos e instaurou mais de dois milhões de procedimentos em 2020.

A novidade do ano é a instalação da Procuradoria Regional da República da 6ª Região, com sede em Belo Horizonte, decorrente da criação do Tribunal Regional Federal da 6ª Região, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República em 2021.

Nas entrevistas feitas para este Anuário do Ministério Público, muitos procuradores-gerais de Justiça chamaram a atenção para o aumento dos casos de violência contra a mulher, em função do confinamento provocado pela epidemia. Quanto mais tempo em convívio com o agressor, maiores as chances de agressões. Esse foi o tema com mais inquéritos policiais recebidos pelo MP em 2020 no Pará, no Rio Grande do Sul, no Espírito Santo e em Mato Grosso, por exemplo.

Promotores e procuradores assumiram protagonismo em 2021 ao assegurar os direitos da coletividade, como na fiscalização do Executivo quanto ao combate à covid-19, contra o desmonte de políticas públicas pelo Governo Federal, a exemplo da proteção aos povos indígenas e a outras minorias e da floresta amazônica.

O MPF foi protagonista ao participar de acordos para defender a população vitimada por grandes desastres ambientais – além dos de Mariana e Brumadinho, há também o de Maceió, onde a Braskem está ressarcindo famílias que precisaram se retirar de mais de 15 mil imóveis devido a afundamento do solo provocado pela empresa ao longo de 50 anos de atividade na área. E também acionou o Judiciário para que advogados não cobrassem honorários aviltantes de pessoas humildes em ações previdenciárias.

Anuário do Ministério Público Brasil 2022
ISSN: 2675-7346
Edição: 2021 | 2022
Número de páginas: 204
Editora ConJur
Versão impressa: R$ 40, exclusivamente na Livraria ConJur (clique aqui)
Versão digital: acesse gratuitamente pelo site http://anuario.conjur.com.br e pelo app Anuário da Justiça

Veja quem apoiou esta edição do Anuário do Ministério Público Brasil 2022
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
Bottini & Tamasauskas Advogados
Dannemann Siemsen Advogados
Décio Freire Advogados
Fontes Tarso Ribeiro Advogados
JBS S.A.
Milaré Advogados
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Original 123 Assessoria de Imprensa
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