A força da grana

Doações para campanhas deveriam voltar, defende especialista em Direito Eleitoral

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27 de março de 2022, 8h33

Defender a volta das doações privadas às campanhas eleitorais, proibidas no Brasil desde 2015, não é exatamente uma atitude popular, mas a advogada Angela Cignachi Baeta Neves a assume com firmeza. Na sua opinião, o financiamento exclusivamente público custa caro demais para os cofres nacionais e os desvios ocorridos no passado com o dinheiro privado nas eleições podem ser corrigidos com ajustes na legislação.

Além de firmeza, Angela tem conhecimento de causa. Segunda secretária-geral do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade), entidade da qual já foi vice-presidente, ela esteve próxima duas vezes no ano passado de se tornar ministra do Tribunal Superior Eleitoral. Nas duas ocasiões seu nome foi o mais votado da lista tríplice aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, mas em nenhuma delas ela foi escolhida pelo presidente Jair Bolsonaro.

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Sócia das áreas de Contencioso Cível e Tributário de um dos maiores escritórios de advocacia do Brasil, o Demarest Advogados, Angela Cignachi Baeta Neves acredita que a Justiça Eleitoral enfrentará um desafio imenso nas eleições presidenciais deste ano, mas ela vê o TSE muito mais preparado para defender a integridade do pleito do que em 2018. A divulgação de notícias falsas, especialmente sobre a segurança das urnas eletrônicas, será mais uma vez o maior problema a ser enfrentado pelas autoridades eleitorais, segundo ela.

Em entrevista à ConJur, a advogada falou sobre esses e outros assuntos, como a ainda baixa representatividade das mulheres nos cargos eletivos e as mudanças feitas na legislação eleitoral nos últimos anos, que, segundo ela, trouxeram avanços, mas também causaram algumas distorções preocupantes.   

Leia a seguir a entrevista com Angela Cignachi Baeta Neves:   

ConJur — Qual o mais importante desafio a ser enfrentado pela Justiça Eleitoral nas eleições deste ano?
Angela Cignachi Baeta Neves — Eu acredito que serão dois os desafios principais do Tribunal Superior Eleitoral. O primeiro deles será garantir a transparência do processo eleitoral, a integridade do processo eleitoral, acabar com qualquer tipo de informação falsa que seja divulgada a respeito da segurança das urnas eletrônicas e do próprio sistema. Isso será fundamental para as eleições em outubro, permitir que a população vá com a segurança de que o seu voto será computado da forma como ela votou.

O segundo desafio, que está relacionado intrinsecamente ao primeiro, é o combate às notícias fraudulentas. Notícias falsas existem desde que o mundo é mundo, em todas as eleições a gente tem notícia disso, mas de uns anos para cá a forma de divulgação e de disseminação dessas notícias foi aprimorada. Então isso tomou conta do ambiente político mais do que nunca. E, pelo que eu tenho acompanhado, a Justiça Eleitoral tem se debruçado sobre esse tema para, se não eliminar, porque realmente isso é impossível, pelo menos minimizar os efeitos dessa disseminação de notícias fraudulentas.

ConJur — Sobre esse assunto das notícias falsas… Do ponto de vista da legislação eleitoral, qual foi a lição que aprendemos de 2018? Houve alguma melhora nesse aspecto desde as últimas eleições presidenciais?
Angela Cignachi Baeta Neves — Bom, em primeiro lugar, hoje é proibido fazer disparos em massa. Antes, a legislação dizia apenas que não poderia haver compra de cadastro de eleitores. A partir de agora, porém, nós temos expressamente na resolução do Tribunal Superior Eleitoral que, além da compra, você não pode fazer disparo em massa. Isso estava sendo usado como uma forma de difamação de outros candidatos, de outras pessoas, e foi banido.

Fora isso, nós temos também a responsabilização. Quem produz uma notícia falsa é responsabilizado criminalmente e quem a divulga também responde. Isso é um avanço muito grande. A gente sabe das dificuldades de controle e fiscalização disso, mas a gente também sabe que hoje existem mecanismos de rastreio dessas mensagens, da origem e também por onde ela transitou. Então isso também é um grande avanço. Mas eu ainda acredito que a melhor maneira de combater esse problema é com informação, transparência.

ConJur — Na luta contra as notícias falsas, informação é mais importante do que legislação?
Angela Cignachi Baeta Neves — A legislação é fundamental, mas ela sozinha não resolve. Acho que a informação e a transparência são fundamentais. E a Justiça Eleitoral está empenhada nisso. O que eu tenho acompanhado é que há a preocupação de trazer transparência para esse processo, mais do que nunca. Chega a ser uma obsessão desta gestão (do TSE) trazer transparência sobre como funciona o processo eleitoral, para que não pairem dúvidas sobre a sua integridade.

ConJur — Recentemente, o Telegram chegou a ser suspenso pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, mas finalmente se prontificou a colaborar. Isso é suficiente para que esse aplicativo deixe de ser considerado um risco para a integridade das eleições?
Angela Cignachi Baeta Neves — Felizmente a decisão de suspensão do funcionamento do aplicativo sequer chegou a ser cumprida, porque rapidamente a empresa cumpriu as decisões judiciais anteriores e informou ao Poder Judiciário o seu representante no país, o que me parece um sinal de que ela está disposta a iniciar um diálogo com as autoridades judiciais.

Em sua manifestação, a empresa se comprometeu a colaborar com o combate à desinformação e informou ter feito parcerias com agências de checagem brasileiras, que terão o trabalho de marcação de postagens com informações falsas, entre outras medidas. Isso é um grande avanço (nota: nesta sexta-feira (25/3), o Telegram assinou o termo de adesão ao Programa de Enfrentamento à Desinformação do TSE).

ConJur — O mundo inteiro viu os Estados Unidos terem em 2020 uma eleição conturbada como jamais tiveram, e com uma tentativa posterior do candidato que perdeu, Donald Trump, de judicialização do resultado, com uma avalanche de ações para tentar anular a derrota. Você vê o risco de isso ocorrer também no Brasil?
Angela Cignachi Baeta Neves — Veja, em 2014 nós já tivemos a contestação do resultado da votação pelo candidato que ficou em segundo lugar (Aécio Neves). Então foi feita a auditoria dos votos e o partido se convenceu de que realmente não houve nada naquele momento. Mas eu não creio que possa ocorrer aqui algo parecido com o que houve nos Estados Unidos porque as eleições aqui ocorrem de uma forma bem diferente. Lá, as eleições são por estados e a soma dos votos ocorre nos estados. Aqui, a totalização dos votos é feita apenas pelo Tribunal Superior Eleitoral, quando a gente está falando de eleições presidenciais. Então, se houver judicialização, eu acredito que ela seja nos mesmos moldes do que ocorreu em 2014.

Pode haver um questionamento junto ao Tribunal Superior Eleitoral, um pedido de recontagem, o que aconteceu também nos Estados Unidos. Só que lá, em cada estado em que o candidato derrotado perdeu ele pediu a recontagem. Aqui seria uma recontagem solicitada ao TSE. Agora, caso um candidato não aceite a derrota, não sei… Não quero dar ideias, mas aí o problema deixa de ser do Judiciário Eleitoral e passa a ser uma questão política, uma narrativa política.

 ConJur — Como você vê a criação das federações partidárias? É possível que elas tornem o sistema eleitoral brasileiro menos fisiológico?
Angela Cignachi Baeta Neves — O que são as federações partidárias? Elas são acordos temporários entre partidos que resolvem se unir para disputar uma eleição e para permanecerem unidos durante uma legislatura inteira. Então, é algo diferente da coligação partidária, que tinha como único propósito a eleição dos parlamentares, e terminada a eleição cada partido ia para o seu canto. As federações buscam uma afinidade ideológica entre os partidos, o que não existia de forma alguma nas coligações. E qual era a grande crítica às coligações? O eleitor votava num partido de direita e, quando ele descobria, havia elegido um candidato de um partido de esquerda, porque as coligações eram feitas em cada estado… Eu acho que a criação das federações será uma mudança positiva para os partidos políticos. A gente tem notícias já de alguns partidos que estão em conversas para se unir como federações, partidos com ideais muito próximos, e vai ser uma forma mais fácil de dialogar com o Congresso Nacional. Quem assumir a Presidência da República vai ter um diálogo com o Parlamento, me parece, de uma forma mais fácil do que com a quantidade de partidos que temos hoje.

ConJur — Recentemente, causou muita polêmica a aprovação do novo fundo eleitoral (que pode chegar a R$ 5,7 bilhões). Sem entrar na controvérsia sobre o valor, se é muito ou pouco, uma questão se impõe: esse modelo de fundo eleitoral, de financiamento público, é o mais adequado à realidade brasileira?
Angela Cignachi Baeta Neves — Nós temos no Brasil hoje o financiamento de campanhas eleitorais eminentemente público. Isso desde 2015, quando houve o fim da possibilidade de pessoas jurídicas doarem para campanhas eleitorais e para partidos políticos e candidatos. Realmente, aquele modelo antigo foi um desastre por tudo o que nós já vimos. A "lava jato" veio também e nos mostrou como é que funcionava essa utilização de recursos. Eu entendo que o modelo que existia anteriormente não era mesmo o melhor, tanto que aconteceu o que aconteceu, mas eu entendo também que dinheiro eminentemente público em campanhas eleitorais num país como o nosso Brasil, com tantas necessidades, com tantas prioridades…

Quero deixar claro que não é que a democracia e as eleições não sejam prioridades. São prioridades, sim. Mas nós podemos utilizar recursos privados também, eu entendo, para financiamento de campanhas eleitorais, inclusive de pessoas jurídicas. Basta fazer uma regulamentação, uma legislação que coíba as práticas que ocorriam anteriormente. Então, por exemplo, uma pessoa jurídica doar para duas campanhas presidenciais… A pessoa jurídica pode, no meu entender, ter a opção de participar do jogo político? Pode, mas ela tem de escolher um lado. E no modelo anterior isso não acontecia, as pessoas jurídicas doavam para todas as campanhas porque não sabiam quem iria se eleger e queriam ficar bem com o futuro governante, fosse ele qual fosse. Então, penso que se você adequar a legislação eleitoral a uma forma de coibir as práticas ilícitas que ocorriam anteriormente, não vejo por que proibir a volta das doações de pessoas jurídicas. Porque o financiamento eminentemente público, num país como o nosso, eu acho que não é o melhor modelo que a gente deveria aplicar.

ConJur — As próximas eleições serão as primeiras depois da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Qual será o impacto dessa novidade?
Angela Cignachi Baeta Neves — A LGPD vai mudar a forma como os candidatos e os seus administradores recebem e usam os dados dos eleitores. O eleitor tem o direito de não receber informações se ele não quiser, ainda que esteja cadastrado ou filiado a algum partido político. Então, o que muda na prática é que os candidatos vão ter de respeitar mais a privacidade do eleitor. Se o eleitor quiser saber como os seus dados estão sendo usados e tratados, o candidato tem obrigação de informar isso a ele. Outra coisa: os partidos e os candidatos terão de informar também o que eles farão com esses dados depois da eleição, então eles precisarão ter um cuidado muito maior em relação a isso.

ConJur — A fiscalização da aplicação dessa lei nas eleições não é algo complicado demais? É possível que candidatos ou partidos sejam punidos por desrespeito à LGPD?
Angela Cignachi Baeta Neves — A gente vai ver agora nessa eleição como será. As resoluções do Tribunal Superior Eleitoral já foram todas adequadas à nova lei. Há a previsão de responsabilização eleitoral, mas isso não exclui a responsabilização dos candidatos junto à Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que continua tendo competência para fiscalizar e eventualmente punir quem desrespeitar a lei.

ConJur — A reforma eleitoral de 2015 permitiu a manutenção de candidaturas que estejam sub judice, ou seja, um candidato que tenha por alguma razão sua candidatura questionada na Justiça pode concorrer normalmente e depois, se for eleito, será impedido de assumir o cargo em caso de condenação. Qual sua opinião sobre isso? É justo oferecer ao eleitor a possibilidade de votar em alguém que talvez não possa assumir o cargo?
Angela Cignachi Baeta Neves — Bom, por que isso acontece? Porque o requerimento do registro de candidatura é feito no início da campanha eleitoral, em agosto. Aí, eventual discussão sobre a candidatura, se o candidato é ou não elegível, ocorre durante o período eleitoral. Então, veja, muitas vezes ele é julgado após a eleição, já que o período de eleição agora foi encurtado, é de 45 dias. E em 45 dias não dá tempo de decidir isso.

Eu entendo que o melhor modelo seria o registro de candidatura ser formalizado muito tempo antes, não no início da campanha eleitoral. Porque aí, quando começasse a campanha, o eleitor já saberia se aquele candidato pode ser votado ou não. Isso seria muito melhor e mais transparente. Nós, advogados que atuamos na área eleitoral, sempre insistimos por uma alteração legislativa que faça com que esse registro de candidatura ocorra mais cedo, ou que haja pelo menos algum processo judicial que faça uma análise prévia do candidato para ver se ele pode concorrer ou não. Porque não há apenas o risco de o eleitor votar em alguém e depois descobrir que essa pessoa nem poderia ter sido votada, pode ocorrer também de a eleição ser anulada. E outra coisa: o candidato está arriscado a passar a campanha inteira sendo questionado se é elegível ou não, e com isso perder votos, e depois da eleição a Justiça Eleitoral decidir que ele era elegível. Então esse modelo atual não é bom para nenhuma das partes, nem para o candidato, nem para o eleitor. Isso precisaria ser mudado.

ConJur — Vamos falar agora sobre cotas para mulheres candidatas. Essa é uma regra que tem sido rotineiramente "driblada" por muitos partidos, que inscrevem candidatas "laranjas" apenas para preencher as cotas. O que fazer para combater essa distorção? A lei precisa ser aperfeiçoada nesse ponto?
Angela Cignachi Baeta Neves — Foi feita uma legislação garantindo 30% de vagas nas candidaturas proporcionais para as mulheres, só que ao longo dos anos a representatividade feminina não mudou. E aí o questionamento: o que está acontecendo? Se nós estamos garantindo vagas nas eleições para as mulheres, por que elas não estão sendo eleitas? Então verificou-se que não adianta reservar vagas para candidatas se essas candidatas não têm dinheiro para fazer campanha. Aí o que o Supremo Tribunal Federal decidiu e hoje está na própria lei eleitoral? Que não basta ter 30% de vagas, nós precisamos dos recursos dos partidos, do fundo partidário e do fundo eleitoral. Nós temos dois fundos públicos e eles também têm de ser destinados às mulheres.

Há, claro, a questão das candidaturas "laranjas". O partido era obrigado a botar mulheres e botava qualquer uma, pegava a moça do cafezinho do partido e colocava para preencher uma vaga. Isso é um grande problema, mas a partir do momento em que surgiu a obrigatoriedade de destinação de recursos para as mulheres, a representatividade aumentou 50%. Era 10% e passou para 15%, ou seja, 50% de aumento. Isso significa que as mulheres não precisam só de vagas, mas de dinheiro, porque ninguém faz campanha, ninguém se elege sem gastar recursos.

Só que aí nós tivemos um terceiro problema, pois descobriu-se que, além das candidaturas "laranjas", os recursos que deveriam ser destinados às mulheres eram muitas vezes repassados para as campanhas dos homens. Há várias investigações sobre o tema e partidos e candidatos estão sendo punidos. Então é isso, nós precisamos de legislação porque o país ainda é machista, com a ideia de que política é coisa de homem, e de homem branco, e isso tem de ser mudado. E você começa mudando a legislação e mudando com punição. Se não houvesse punição, realmente ninguém iria cumprir.

ConJur — No ano passado, você esteve em duas listas tríplices para o preenchimento de vagas de ministro do TSE e, mesmo sendo a mais votada nas duas ocasiões, não foi indicada ao cargo. Isso foi uma frustração para você?
Angela Cignachi Baeta Neves — De forma alguma. Não foi uma frustração. Para mim foi uma honra, do fundo do coração, e foi uma honra integrar a primeira lista com três mulheres. Isso foi algo inédito no Brasil, no Poder Judiciário para tribunal superior. Então eu me senti muito feliz e honrada. Eu estava ladeada por duas colegas muito queridas, com quem eu tenho um excelente relacionamento, a ministra Maria Cláudia (Bucchianeri) e a Marilda (Silveira). E na outra ocasião estava na disputa o Carlos Mário da Silva Velloso Filho, que já era ministro e buscava a recondução, então era natural que ele fosse o escolhido. Mas só de eu ser votada foi uma honra, e eu fui a mais votada no Supremo, mas essa é uma decisão política (a indicação para o cargo).

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