Embargos Culturais

Amaro Cavalcanti, um jurista da República Velha

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

27 de março de 2022, 8h05

Amaro Cavalcanti (1849-1922) estudou nos Estados Unidos, em Albany, no estado de Nova York. Conhecia latim, disciplina que lecionou no Imperial Colégio D. Pedro II. Foi senador pelo Rio Grande do Norte, atuando na Assembleia Nacional Constituinte que discutiu e votou a Constituição de 1891. Foi ministro da Justiça de Prudente de Moraes. Atuou também como consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores. Foi ministro do Supremo Tribunal Federal (1906-1914).

Spacca
É autor de Elementos de Finanças – estudo teórico-prático, publicado pela Imprensa Nacional no Rio de Janeiro, em 1891. Estudou o federalismo, então uma novidade entre nós, circunstância institucional que suscitava vários problemas na ordem tributária, evidentemente, quanto à fixação da competência entre os vários entes. O município ainda não contava com competência para tributar, porém era responsável por gerenciar as próprias despesas.

Como consultor no Itamaraty, Amara Cavalcanti elaborou pareceres sobre questões relevantes na construção da política externa republicana. Opinou sobre pretensão de cidadãos franceses serem ressarcidos de prejuízos e danos ocorridos na Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, em 1893 e 1894. Invocou doutrina internacional, especialmente a do Conselho de Estado da França, sustentando que os atos de guerra não geram para os Estados o dever de indenizar. Além do que, na hipótese de responsabilização federal, haveria necessidade de comprovação de responsabilidade, por intermédio de competente ação judiciária.

Quando ministro do Supremo Tribunal Federal Cavalcanti polemizou com Ruy Barbosa a respeito de impostos interestaduais. Publicou cinco artigos no Jornal do Comércio, reiterando decisão do STF sobre a inconstitucionalidade de um imposto de estatística criado pelo estado da Bahia. Esse imposto incidiria sobre o valor dos gêneros de produção nacional que fossem exportados e sobre as mercadorias que fossem comercializadas no estado, inclusive estrangeiras.

No entanto, sustentava que a decisão não continha o poder de firmar jurisprudência, que não poderia ser interpretada de modo analógico e que, principalmente, não fora tomada pela maioria dos juízes do STF (full bench); foram sete votos contra três. A decisão fora orientada com base na jurisprudência norte-americana, e afirmou-se no voto condutor que o conteúdo decidido formava precedente para discussões vindouras. Cavalcanti questionou a extensão do aresto do STF. Previa desastrosas consequências para as economias estaduais, se vingasse uma interpretação analógica e extensiva da decisão do STF, então criticada. No artigo, revelou esperança em mudança jurisprudencial, esperando luzes, prudência e patriotismo da Corte Suprema.

Rui Barbosa respondeu a essa intervenção jornalística de Amaro Cavalcanti com 20 artigos publicados no mesmo Jornal do Comércio. Rui insistia no acerto da decisão do STF. Alegava que a declaração de inconstitucionalidade do imposto de estatística militava em favor das unidades federadas, garantindo estabilidade e prosperidade, prestigiando interesses mútuos e fulminando a avidez de autonomia. Ruy foi agressivo com Cavalcanti, acusando-o de meramente amontoar precedentes que conhecia por resumos e citações rapidíssimas.

A jurisprudência do STF foi posteriormente alterada. A Lei 410/1896 esvaziou a discussão, porquanto se reconheceu, expressamente, que os estados poderiam tributar a exportação de outros estados. O caso ilustra, no entanto, a atuação de Amaro Cavalcanti, que polemizou com Rui, então reputado como o jurista de maior expressão nacional. Cavalcanti foi uma personalidade combativa e atuante.

Quando ministro do STF, ao lado de Alberto Torres, deferiu Habeas Corpus em favor de D. Luís, filho da Princesa Isabel. D. Luís pretendia desembarcar no Brasil, porém havia proibição decorrente do decreto de banimento da família imperial, ocorrido com a proclamação da República. Cavalcanti afirmou “(…) ser a Constituição da República incompatível com as odiosidades que importavam em restrição aos direitos por ela garantidos”. O STF, no entanto, por maioria, rejeitou o pedido.

Cavalcanti também se notabilizou como conferencista. Brito Broca, historiador da cultura brasileira e memorialista, registra que havia um animado mercado de conferências e palestras no Rio de Janeiro, no início do século XX, destacando-se, entre os mais disputados conferencistas, Oliveira Lima, Roquete Pinto, Alberto de Oliveira, Afrânio Peixoto, Clóvis Beviláqua e o próprio Amaro Cavalcanti.

Amaro Cavalcanti construiu uma primeira exposição sistemática do direito tributário brasileiro. Não contávamos, ainda, com uma construção doutrinária da tributação, que era errática. Cavalcanti, lido hoje, revela esforço de síntese das finanças, da tributação e da economia política da transição do Império para a República.

Cavalcanti adiantou-se na especulação e na discussão em torno de vários temas tributários contemporâneos, a exemplo do mínimo tributável, da seletividade, da importância da tributação sobre a renda, da resistência cultural que há ao Fisco. Transpôs para a realidade brasileira o pensamento aplicado de Adam Smith e de Montesquieu.

Em matéria tributária, Cavalcanti explicitou o objeto, as vantagens, os fundamentos, as qualidades, as incidências, as classificações e os vários sistemas de impostos. Em sua obra há também importante resgate histórico da tributação, o que nos permite avaliar o tamanho do Estado em fins do século XIX. Cavalcanti enfatizava a legitimidade de o Estado tributar. Há em seu livro informações históricas sobre a privatização da cobrança da dívida ativa, o que nos lembra de algum modo formas contemporâneas de securitização. No núcleo, Amaro Cavalcanti defendeu intransigentemente o princípio da legalidade em matéria tributária, enunciando-o como cardeal no sistema do direito público. Trata-se de importante jurista da República Velha.

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