Opinião

Desafios na aplicação dos acordos de não persecução penal e cível nos processos

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26 de março de 2022, 7h08

Depois de mais de dois anos do advento da Lei Anticrime (Lei 13.964/19), ainda se identificam diversos problemas práticos quanto aos novos dispositivos legais, dentre eles os acordos de não persecução penal (ANPP) e cível (ANPC), os quais estão previstos, respectivamente, nos arts. 28-A, do Código de Processo Penal e artigo 17-B, da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92).

Cabe esclarecer que, inicialmente, a Lei Anticrime autorizou, no artigo 17, §1º e §10-A, da Lei 8.429/92, a celebração do ANPC sem a existência de qualquer regulamentação sobre o procedimento para a formalização do acordo [1]. Na realidade, o legislador até estabeleceu regulamentação no artigo 17-A, mas o dispositivo foi vetado pelo Presidente da República. Com as modificações implementadas pela Lei 14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa, foi estabelecido de fato um procedimento para a elaboração do acordo.

Primeiramente, é importante afirmar que ambos os institutos estão inseridos no âmbito da justiça consensual, que tem recebido cada vez mais espaço no sistema de justiça brasileiro. Diante disso, uma das maiores polêmicas trazidas diz respeito à questão intertemporal da lei, para se saber com exatidão e segurança se os acordos poderiam ou não ser aplicados aos processos penais e cíveis que estão em curso no Poder Judiciário.

O ANPP tem sido objeto de diversos questionamentos quanto à sua incidência nas ações penais que já estão em trâmite no Poder Judiciário. A interpretação que se esperava consistia de que, por se tratar de uma benesse processual, que resultaria na extinção da punibilidade, seu cabimento se daria a em qualquer fase processual, por se estar diante de uma norma híbrida e, portanto, passível de retroatividade como prevê as regras inerentes à lei penal no tempo (artigo 5º, XL, CF e artigo 2º, parágrafo único, CP) [2].

No entanto, não foi esse o argumento que prevaleceu no Superior Tribunal de Justiça, eis que a motivação para o óbice consiste no fato de que o instituto somente seria aplicável até o recebimento da denúncia. Tal orientação foi adotada pela Corte Cidadã, fixando-se o marco temporal do recebimento da peça acusatória. Isso se deu porque a superação da fase pré-processual e, por consequência, o início da persecução penal, tornariam sem razão a incidência do instituto despenalizador, que é justamente poupar o agente do delito e o aparelho estatal da instauração do processo crime [3].

O tema, porém, gera muito debate, sobretudo quando se observa que a própria jurisprudência da Corte Cidadã admite que, na hipótese de negativa de oferecimento do benefício pelo Ministério Público caberá à defesa se insurgir e requerer a remessa ao órgão superior do Parquet no momento da resposta à acusação [4]. Nesse caso, a eventual reforma da decisão do membro do Ministério Público oficiante em primeiro grau acarretará o oferecimento do acordo após o recebimento da denúncia, o que contraria a razão de ser dos precedentes que negam a benesse após esse marco processual.  

De qualquer sorte, a questão ainda se encontra pendente de exame definitivo no âmbito do Supremo Tribunal Federal no HC nº 185913/DF, o qual será julgado pelo Pleno em 18 de maio de 2022 para se verificar a possibilidade de retroatividade da avença [5].     

Por outro lado, superando-se a vedação de acordos na esfera de improbidade administrativa, o ANPC também foi introduzido pela Lei 13.964/19. No entanto, a previsão do instituto não veio acompanhada do procedimento a ser observado para sua aplicação. Existia apenas o artigo 17, §1º e 10-A preconizando que em caso de possibilidade de solução consensual, as partes poderiam requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação no lapso temporal de 90 dias como forma de se chegar a um consenso.

Saliente-se que o procedimento estava elencado no artigo 17-A, que restou vetado. No §2º, do referido dispositivo, constava expressamente a possibilidade do acordo ser celebrado no curso da ação de improbidade administrativa, contudo, justificou-se a necessidade de veto sob o seguinte fundamento: "a propositura legislativa, ao determinar que o acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade, contraria o interesse público por ir de encontro à garantia da efetividade da transação e do alcance de melhores resultados, comprometendo a própria eficiência da norma jurídica que assegura a sua realização, uma vez que o agente infrator estaria sendo incentivado a continuar no trâmite da ação judicial, visto que disporia, por lei, de um instrumento futuro com possibilidade de transação" [6].

Muito embora o dispositivo sancionado indicasse um marco temporal, o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se pela admissão do acordo ainda que na fase recursal [7], ampliando-se a possibilidade de aplicação do ANPC.

Depois disso, com a reforma da Lei de Improbidade Administrativa, consignou-se expressamente que o acordo poderia ser celebrado a qualquer momento (artigo 17-B, §4º). Além disso, recentemente o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se novamente pela celebração do acordo em fase recursal [8]. É importante notar que tal precedente não levou em conta especificamente a mudança legal, mas utilizou como reforço argumentativo da posição já adotada desde o ano de 2021.

Feito esse breve resumo, a comparação de ambos os institutos é importante para se verificar a diferença de tratamento que se tem dado ao assunto, uma vez que se constata maior restrição temporal quanto à incidência do ANPP do que ao ANPC, que tem recebido interpretação bastante generosa para que seja utilizado pelo atores judiciais.

É certo que os acordos homologados na esfera cível não avançaram profundamente no aspecto intertemporal das normas processuais. No entanto, revelam a disposição dos julgadores em dar efetividade à justiça consensual proposta pelo legislador nas áreas penal e cível.

Cabe destacar, inclusive, que um dos principais argumentos daqueles que defendiam a extensão da justiça consensual penal para o plano da improbidade administrativa consistia na ideia de diálogo das fontes, no sentido de que existiria um microssistema para adoção de mecanismos negociais. A ressalva é importante para que a interpretação seja uma via de mão dupla [9].

Assim, existindo dispositivo que autorize o ANPC em qualquer momento, é certo que o mesmo enunciado pode ser usado como fundamento para adoção do ANPP em qualquer etapa processual, fortalecendo a resolução dos conflitos por meio de acordos entre as partes.

É inegável que a pretendida analogia das normas incidentes à improbidade administrativa para o âmbito penal seria absolutamente desnecessária caso fossem observadas as regras mais elementares de interpretação previstas na Constituição Federal e no Código Penal, as quais expressamente impõem a retroatividade da norma penal benéfica ao agente, inclusive após o trânsito em julgado.

Portanto, com o objetivo de garantir isonomia e segurança jurídica, é preciso relacionar a legislação processual penal com a legislação de improbidade administrativa, permitindo-se que o ANPP e o ANPC possam ser adotados em qualquer etapa dos processos judiciais.


[1] Esse cenário era muito próximo do que houve com a incorporação da delação premiada, na seara criminal, na década de 90 (BITTAR, Walter Barbosa; BORRI, Luiz Antonio. Capítulo 6  Lei de Improbidade Administrativa  Lei 8.429/92. In: BITTAR, Walter Barbosa. Comentários ao Pacote Anticrime Lei 13.964 (artigo por artigo  incluindo a rejeição de vetos). São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, p. 127).

[2] Na doutrina, manifestou-se pelo cabimento do acordo, inclusive após o trânsito em julgado, durante a execução da pena (BEM, Leonardo Schimitt de; MARTINELLI, João Paulo. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-limite-temporal-da-retroatividade-do-acordo-de-nao-persecucao-penal-24022020. Acesso em: 18 mar. 2022.

[3] AgRg no AREsp nº 1.561.858/RS, relator ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 11/5/2021, DJe 18/5/2021.

[4] HC 668.520/SP, relator ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 10/08/2021, DJe 16/08/2021; AgRg no REsp 1948350/RS, relator ministro JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), QUINTA TURMA, julgado em 09/11/2021, DJe 17/11/2021.

[5] O ministro Gilmar Mendes apresentou em seu voto a seguinte tese: É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento. Ao órgão acusatório cabe manifestar-se motivadamente sobre a viabilidade de proposta, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle, nos termos do artigo 28-A, §14, do CPP. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-19/gilmar-vota-retroatividade-anpp-transito-julgado. Acesso em: 17 mar. 2022.

[7] Acordo no AREsp 1314581/SP, relator ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe 01/03/2021; Acordo no AREsp 1610631/PR, relator ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 22/06/2021, DJe 17/08/2021.

[8] EAREsp 102.585-RS, relator ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 09/03/2022. No mesmo sentido: Acordo no AREsp 1610631/PR, relator ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 22/06/2021, DJe 17/08/2021.

[9] Tema 1043/STF: A utilização da colaboração premiada no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público em face do princípio da legalidade (CF, artigo 5º, II), da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário (CF, artigo 37, §§4º e 5º) e da legitimidade concorrente para a propositura da ação (CF, artigo 129, § 1º).

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