Opinião

Zona de Processamento de Exportação (ZPE): quais suas facetas?

Autor

  • Flávia Holanda Gaeta

    é doutora e mestre em direito tributário pela PUC-SP professora em cursos de pós-graduação (Ibet PUC-SP e Mackenzie) e sócia fundadora do FH Advogados.

25 de março de 2022, 20h12

Aprendi, desde os primeiros anos de ensino fundamental, que compreender uma frase (sintática e semanticamente) exige um ato prévio: o enfrentamento. Acarear o enunciado é, antes de tudo, um ato de coragem, que nos afasta do conforto e nos aproxima do problema, com o propósito de captar o objeto de análise. E é isso que passo a fazer.

O que é ZPE? O que é uma Zona de Processamento de Exportação? Pela construção do termo, logo se observa que a primeira peculiaridade da temática é definida por uma coordenada de espaço — uma zona, uma área, um distrito, um local, uma extensão, um setor etc. O que faz dessa área um ambiente juridicamente diferente (ou especial) para processar exportações? O sistema jurídico ou uma norma específica de juridicização.

ZPE é um local na fronteira terrestre (ou em outras áreas delimitadas) habilitado a operações de livre comércio com o exterior, reconhecidamente classificado como zona primária [1] no território aduaneiro. Neste sentido, é uma extensão territorial que permite às empresas instaladas realizarem processos de industrialização de bens e mercadorias com destino ao exterior (e/ou ao mercado interno), fruindo da suspensão dos tributos incidentes nas aquisições de bens e mercadorias, importados e nacionais, respeitadas as condições legais; além de dispor de uma estrutura de serviços e procedimentos administrativos simplificados [2]. Portanto, é um ambiente ficcional que permite ao contribuinte um tratamento diferenciado, cujos efeitos fiscais interferem na constituição das normas de incidência dos tributos relacionadas às operações de entrada.

O propósito legislativo para instituir o regime jurídico da ZPE levou em conta um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a necessidade constitucional de redução das desigualdades regionais, notadamente previsto no artigo 3º, inciso III [3], da Carta Magna. De rigor, quando aquele valor foi combinado com o interesse na diminuição dos desequilíbrios de desenvolvimento econômico e social, outro conjunto de normas constitucionais passou a subsumir à temática, em especial o artigo 43, §2º, III; artigo 151, I e artigo 170, VII da Constituição, sem o apego à exaustão.

A advertência sobre o arquétipo constitucional é imperiosa para não se perder de vista a necessidade de colocar esse universo normativo a serviço da aplicação, enquanto fonte de legitimidade formal de toda a ordem jurídica [4]. Ao declinar a referida importância, tenho a impressão de que os argumentos jurídicos ficam à deriva, contingentes, à espera de um milagre.

A redução das desigualdades regionais, em um país continental, é preocupação inserida entre os princípios de integração [5] constitucional, dirigidos para resolver problemas da marginalização geográfica, social e econômica. Não por outra razão, o sistema jurídico oferece uma série de mecanismos tributários e orçamentários capazes de promover o alcance desse objetivo.

Adicionalmente, o tema se insere no âmbito da exoneração integral das exportações patrocinada pelo princípio do país de destino, adotado por todo sistema multilateral de comércio, e que busca garantir a neutralidade concorrencial no fluxo internacional de mercadorias e serviços [6]. É um princípio que permite a exoneração de tributos cobrados sobre os produtos com destino à exportação com a finalidade de garantir uma neutralidade entre os sistemas tributários envolvidos. Muitos se esquecem que um produto exportado será objeto de importação no país de destino, por isso a lógica de exonerar as exportações e tributar as importações, inibindo as distorções.

Neste amplo contexto, zona de exportação não é assunto recente, nem visto apenas no Brasil. A experiência internacional demonstra que, desde a década de 1970, já era muito comum na Ásia e na América Latina, sendo observada uma expansão significativa, nos últimos 20 anos, na China, Índia e Rússia, sendo hoje um instrumento adotado em mais de 100 países. O propósito universal das zonas de exportação é o incremento de uma política de incentivos às exportações, de ordem financeira, econômica e tributária, capaz de conectar e desenvolver o fornecimento de bens e mercadorias em cadeias globais [7].

Visto isso, está longe de ser um instrumento unicamente tributário, uma vez que o sucesso na implantação de ZPEs depende de inúmeros fatores, tais como: a localização, a infraestrutura logística, a atração de investimentos privados, o acesso à tecnologias, a efetiva simplificação dos procedimentos administrativos, aos fatores macroeconômicos, o engajamento da política nacional, a mitigação dos custos reais envolvidos, dentre outras dezenas de fatores.

Contudo, indo direto ao objeto desta análise, o modelo tributário de ZPE tem lastro na Constituição Federal, consoante os dispositivos adrede colacionados, e é absolutamente compatível com o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (Acordo SMC), haja vista que excepciona, do rol das proibições de subsídios à exportação, as isenções em favor de produtos destinados à exportação, de impostos ou taxas habitualmente aplicados sobre o produto similar quando destinado ao consumo interno, nem a remissão de tais impostos ou taxas em valor que não exceda os totais devidos ou abonados [8].

Decerto, as zonas de exportação estabelecem um tratamento diferenciado às entradas destinadas às empresas ali localizadas, instaurando um ambiente de diferenciação entre os contribuintes.

A Lei nº 11.508/2007 dispõe, em seus artigos 6º — A e B, que será suspensa da exigência dos tributos incidentes as importações ou as aquisições no mercado interno de máquinas, de aparelhos, de instrumentos e de equipamentos por empresa autorizada a operar em ZPE, convertendo-se em alíquota zero e isenção, se e quando atendidas as específicas condições legais (§ 7º); regra aplicável de igual modo para as entradas de matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem.

Ora, resta evidente que o tratamento especial é aplicável exclusivamente às entradas de bens, mercadorias, produtos intermediários e materiais de embalagem, sejam com destino ao ativo imobilizado, sejam para incorporação ao processo produtivo de bens destinados à exportação. Por esta razão, observa-se que, para efeitos fiscais e econômicos, a ZPE é muito similar a regimes aduaneiros como o drawback, o entreposto e os depósitos alfandegados, resguardadas as vantagens e desvantagens de cada modelo.

Superado o ato de criação da própria ZPE, as empresas, interessadas em se instalar nessas zonas, devem, previamente, apresentar um projeto endereçado ao Conselho Nacional das Zonas de Processamento de Exportação (CZPE), para aprovação consoante as prioridades governamentais para os setores da indústria nacional [9] previstas em regulamento. Note-se que, assim como qualquer benefício fiscal, a fruição do regime jurídico exonerativo depende de um ato administrativo prévio que compatibiliza o pedido e as condições do requerente ao interesse público, concretizando um ato de análise e adequação como parte do processo de subsunção do fato à norma.

Neste sentido, a ZPE é um benefício fiscal que concede a exoneração antecipada da carga tributária [10] sobre as aquisições das empresas exportadoras ali instaladas, através dos institutos da suspensão, alíquota zero e isenção. Sem me estender nos conceitos, tenho a clara impressão de que todas estas normas atinentes aos benefícios fiscais impactam em algum dos critérios da norma tributante, seja materialidade, espaço, tempo, sujeição passiva, base de cálculo ou alíquotas. Logo, o regime jurídico da ZPE deve respeito aos princípios constitucionais da legalidade (artigo 150, I e § 6º, CF/88), igualdade (artigo 5º e artigo 150, II, CF/88) e anterioridade tributária (artigo 150, III, "b" e "c", CF/88).

Superadas as operações de entrada, beneficiadas pelo modelo das ZPEs, as saídas com destino à exportação e ao mercado interno devem obedecer às normas previstas em legislação específica. Em virtude do postulado da igualdade tributária, as imunidades, isenções e direitos aplicáveis aos exportadores devem obedecer a um regime próprio de apuração, resguardados os amplos tratamentos aplicáveis a todos os exportadores situados no território nacional.

Pelo mesmo raciocínio, nas operações de venda para o mercado interno realizadas por empresas localizadas em ZPE, há dois caminhos possíveis: (1) recolher os tributos suspensos com acréscimos moratórios em ato prévio à saída interna; e, (2) para evitar a mora, se conhecida a operação de saída quando das entradas dos insumos, a empresa pode optar em não fruir da suspensão dos tributos, recolhendo-os regularmente, sem que isso implique a renúncia do benefício [11]. Ambas as opções disponíveis ao contribuinte promovem a igualdade tributária, ou a equiparação absoluta, entre os exportadores localizados dentro e fora da referida zona.

Portanto, a forma de tributação das saídas dos produtos industrializados em ZPE está fora do crivo da Lei nº 11.508/2007, visto que as normas que regem as exportações, dentre elas as que definem imunidades, isenções e direitos — relativos ao ato de exportar —, não são matérias atinentes à política de incentivos própria das ZPEs. Ou seja, um exportador localizado dentro de área de livre comércio deve ter tratamento igual àquele localizado fora de área de livre comércio; afinal o ato de exportar não sofre qualquer modificação em detrimento do regime jurídico da área.

Para deixar ainda mais cristalina a assertiva, a legislação de ZPE não interfere no fato de que as operações de exportação são imunes para tributos como — Imposto sobre Produto Industrializado — IPI (artigo 153, § 3º, III, CF/88), Contribuições Sociais e de Intervenção no Domínio Econômico (artigo 149, § 2º, I, CF/88), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços — ICMS (artigo 155, § 2º, III, CF/88) Imposto sobre Serviços — ISS (artigo 156, § 3º, II, CF/88); isentas para tributos como — Imposto de Exportação — IE (Decreto-Lei nº 1.578/1977). De igual modo, as receitas de exportação são excluídas da base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta — CPRB (artigo 9º, II, "a", Lei nº 12.546/2011), bem como há direito de apurar o Reintegra (artigo 2º, Lei nº 13.043/2014), dentre outras hipóteses.

É tão cristalina essa obviedade que o marco legal da ZPE não tem sequer status jurídico capaz de mitigar ou revogar, ainda que tacitamente, direitos ou deveres já prescritos em legislação tributária específica.

Observa-se, em tudo exposto, que o tema da ZPE tem inúmeras facetas, que tangenciam princípios constitucionais econômicos, financeiros, tributários, exigindo uma aproximação integrativa. Contudo, é imprescindível enfrentar os enunciados jurídicos no seu contexto sistêmico, para compreender os conceitos, reconhecer a sinergia e os conflitos entre os instrumentos disponíveis. É o exercício sempre contínuo de composição e decomposição do objeto de conhecimento que garante o rigor de um ambiente normativo de aplicação harmônico, coerente, proporcional e adequado.


[1] Decreto-Lei nº 37/66, artigo 33. I — Zona primária — compreendendo as faixas internas de portos e aeroportos, recintos alfandegados e locais habilitados nas fronteiras terrestres, bem como outras áreas nos quais se efetuem operações de carga e descarga de mercadoria, ou embarque e desembarque de passageiros, procedentes do exterior ou a ele destinados.

[2] Lei nº 11.508/2007. Artigo 2º. A criação de ZPE far-se-á por decreto, que delimitará sua área, a qual poderá ser descontínua observado o disposto no § 6º deste artigo, à vista de proposta dos estados ou dos municípios, em conjunto ou isoladamente, ou de ente privado.

[3] CF/88. Artigo 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

[4] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 16ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 82.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2020, p. 810.

[6] BEVILACQUA, Lucas. Incentivos fiscais às exportações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 66.

[7] "EPZs provide a combination of financial incentives, streamlined business administration and trade liberalisation to a subset of the economy often defined as a specific geographical zone and/or targeting a specific sector". ENGMAN, M., O. Onodera and E. Pinali (2007-05-23), "Export Processing Zones: Past and Future Role in Trade and Development", OECD Trade Policy Papers, No. 53, OECD Publishing, Paris. http://dx.doi.org/10.1787/035168776831

[8] Acordo SMC, Artigo 1º, nota (1) (a). De acordo com as disposições do Artigo XVI do GATT 1994 (nota do Artigo XVI) e de acordo com os anexos I a III deste acordo.

[9]Lei nº 11.508/2007. § 1o Para fins de análise das propostas e aprovação dos projetos, o CZPE levará em consideração, entre outras que poderão ser fixadas em regulamento, as seguintes diretrizes: (Redação dada pela Lei nº 11.732, de 2008) (…)

III – atendimento às prioridades governamentais para os diversos setores da indústria nacional e da política econômica global, especialmente para as políticas industrial, tecnológica e de comércio exterior; (Redação dada pela Lei nº 11.732, de 2008)

IV – prioridade para as propostas de criação de ZPE localizada em área geográfica privilegiada para a exportação; e (Redação dada pela Lei nº 11.732, de 2008)

V – valor mínimo em investimentos totais na ZPE por empresa autorizada a operar no regime de que trata esta Lei, quando assim for fixado em regulamento. (Incluído pela Lei nº 11.732, de 2008)

[10] Cf. ALHO NETO, José de Sousa. Interpretação e Aplicação de Benfícios Fiscais. São Paulo: IBDT, 2021.

[11] Lei nº 11.508/2007, artigo 6º – C, § 2º. O beneficiário do regime poderá optar pelo pagamento dos tributos incidentes nas operações de importação ou de aquisição no mercado interno de matérias-primas, de produtos intermediários e de materiais de embalagem, o que não implicará renúncia ao regime. (Incluído pela Lei nº 14.184, de 2021) (Vigência)

Autores

  • é doutora e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora em cursos de pós-graduação (Ibet, PUC-SP e Universidade Mackenzie) e sócia fundadora do FH Advogados.

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