Defesa da Concorrência

7 homens e 1 sentença: standard probatório e defesa da concorrência

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14 de março de 2022, 8h00

Começamos este breve texto com nossas desculpas a todas as brilhantes e competentes mulheres que já assumiram ou assumem a função de conselheira no Cade. Como poderá ser observado no decorrer do artigo, a especificação de gênero possui o mero intuito de traçar um paralelo entre a vida real e a sétima arte.

Spacca
"Doze Homens e uma Sentença" (fica aqui, inclusive, a recomendação aos que nunca viram) é, inequivocamente, uma das maiores obras do cinema mundial. Filme absolutamente indispensável, principalmente, para os que trabalham no sistema jurídico. Em suma, o enredo do filme entrega a seguinte questão: deve um jovem porto-riquenho ser condenado à morte pelo assassinato do próprio pai? Bem, cabe a 12 jurados decidirem, de maneira unânime, a esta pergunta.

Fora da ficção, recentemente, no começo de 2022, a Comissão Europeia sofreu um grande revés ao perder, em grau de recurso, um processo que discutia suposto abuso de posição dominante pela Intel [1]. Resumidamente, a autoridade alegou que a mencionada empresa teria atuado de modo anticompetitivo no mercado de processadores, notadamente ao implementar estratégia que visava fechar o mercado ao seu competidor, a AMD.

A decisão da Comissão Europeia argumentou, especificamente, que duas condutas foram praticadas para o fim supracitado. Na primeira delas, caso os agentes comprassem todos (ou quase todos) os processadores de que necessitassem da Intel, seria dado um desconto nessa aquisição. Além disso, também teria sido dado desconto condicionado à MSH, varejista do setor de dispositivos microeletrônicos e maior distribuidor de computadores de mesa da Europa, na hipótese de dar preferência a computadores que contivessem o chip Intel.

No segundo caso de restrição, a Comissão Europeia apontou que a Intel estaria premiando agentes desde que retardassem ou cancelassem o lançamento de produtos que contivessem processadores da AMD ou que, ainda, estabelecessem restrições na distribuição desses produtos.

Houve, portanto, segundo a Comissão Europeia, prejuízo aos consumidores, consubstanciado na redução do horizonte de escolha e diminuição do incentivo à inovação, além da violação à dinâmica do mercado decorrente do arrefecimento da competição baseada no mérito.

Ao questionar a decisão que impôs uma multa de US$ 1,2 bilhões [2], o Tribunal Geral da União Europeia decidiu, em litígio que já durava mais de uma década, que não assistia razão à comissão e anulou a condenação.

Em suma, o colegiado apontou que apesar de a conduta questionada, se entabulada por um agente que detém posição dominante, ter potencial de restringir a concorrência, ela nada mais é do que uma presunção e não uma infração per se do Artigo 102 do Tratado de Funcionamento da União Europeia. Argumentou, ainda, que apesar de ter sido aplicado o teste AEC [3], este foi realizado em bases equivocadas e não considerou, da maneira como deveria, a fração de mercado atingida pela conduta e o tempo de duração destes descontos.

Concluiu, na análise, que a Comissão Europeia não estava em posição de determinar que o desconto e a gratificação oferecidos pela Intel foram capazes de gerar efeitos anticompetitivos.

Este precedente recente é importante tanto para aqueles que exercem jurisdição quanto para os jurisdicionados. Especificamente em relação ao panorama concorrencial brasileiro, reaviva questões basilares como distribuição do ônus da prova e o nível de lastro necessário para eventual condenação.

Isso porque, é possível que aconteça, como a experiência recente demonstra, erros de cálculo, equívocos e análises parciais, as quais, finalizada a discussão em âmbito administrativo, poderão ser anuladas em sede judicial.

Quer em condutas unilaterais, quer em supostas práticas concertadas, é imprescindível considerar o limite do razoável na análise. Ou seja, ainda que o conselheiro seja livre para dar a determinado elemento produzido ao longo do processo o peso que entenda cabível, há um juízo de aceitabilidade dos resultados a que se pode chegar por intermédios delas, na medida em que livre apreciação não é liberdade para arbitrariedade [4].

Nesse contexto, é preciso estar atento a que elementos podem garantir a idoneidade de uma condenação. Assim, além de analisar tais elementos é preciso dar a eles o valor devido. O caso Intel, portanto, deixa um valoroso lembrete: aplica-se às discussões concorrenciais a presunção de inocência e o standard probatório para condenação deve ser elevado.

Por exemplo, e-mails sem autenticidade confirmada, registros de participação em reunião (dissociado de elementos mais robustos), documentos privados sem assinatura e/ou rascunhos, não podem — ou não deveriam — servir como subsídios de condenação. A lição que toda agência da concorrência deve levar para o futuro, então, é avaliar rigorosamente os elementos (independente se se trata de um ilícito por objeto ou efeitos) e não se basear em uma análise formalista baseada em presunções e indícios [5].

Esta análise é ainda mais evidente quando há risco de sanções financeiras relevantes ou restrições ao exercício de atividades lícitas (justamente o que acontece com as sanções aplicadas pelo Cade). Se as provas, então, não forem robustas e substanciais o suficiente, de modo que não haja uma alta probabilidade de cometimento do ilícito, é mais aconselhável deixar de sancioná-lo do que o contrário [6].

De tudo quanto exposto, assim como o filme ensina, há um aspecto fundamental em todo julgamento que não pode ser negligenciado: o processo decisório. Nesse sentido, a beleza da multiplicidade de entendimentos de uma decisão colegiada não pode descurar em assegurar a supremacia da racionalidade da decisão judicial [7], mormente quando esta decisão terá impactos exponenciais na rotina empresarial e/ou pessoal de qualquer investigado que esteja sob escrutínio de uma autoridade concorrencial.


[1] Case T-286/09 RENV, Intel v Commission. Inteiro teor da decisão que julgou o recurso disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62009TJ0286%2801%29&qid=1646786282754

[3] "As-efficient-competitor" (AEC) test. Em suma, o teste analisa a que preço um competidor tão eficiente quanto a Intel teria que oferecer o seu processador para compensar o agente a jusante pela perda do desconto oferecido pela Intel.

[4] ABELLÁN, M. Gáscon. Los hechos en el derecho: bases argumentales de la prueba. Tercera edición. Marcial Pons: Madrid. 2010, p. 140 – 144.

[5] CITRO, Peter. KILLICK, James. KOMNINOS, Assimakis. EU General Court demands a vigorous effects-based analysis for rebates cases and annuls the European Commission’s Intel decision and the €1.06 billion fine. Disponível em: http://competitionlawblog.kluwercompetitionlaw.com/2022/01/27/eu-general-court-demands-a-vigorous-effects-based-analysis-for-rebates-cases-and-annuls-the-european-commissions-intel-decision-and-the-e1-06-billion-fine/#_ftn1

[6] ÁVILA, Humberto. Teoria da prova: standards de prova e os critérios de solidez da inferência probatória. Revista de Processo, ano 43, vol. 282, agosto/2018, p. 114 – 122.

[7] FUCCI, José Inácio Cercal. 12 Homens e uma Sentença. In: CASTRO NEVES, José Roberto de (Org.). Os advogados vão ao cinema: 38 ensaios sobre justiça e direito em filmes inesquecíveis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira Participações S.A, 2019.

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