"Segurança nacional"

Suprema Corte dos EUA protege segredos de Estado que não são mais secretos

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6 de março de 2022, 10h07

Por 6 votos a 3, que desta vez não seguiram as tendências ideológicas dos ministros, a Suprema Corte dos Estados negou um pedido de advogados de Abu Zubaydah, prisioneiro (inocente) na base naval americana em Guantánamo Bay, Cuba. Eles queriam obter testemunhos dos dois psicólogos que idealizaram, para a CIA, o sistema de "técnicas avançadas de interrogatório" (enhanced interrogation techniques) — um eufemismo para tortura.

Fred Schilling
Integrantes da Suprema Corte dos EUA
Fred Schilling

Os advogados queriam que James Mitchell e Bruce Jessen, cuja firma a CIA contratou por US$ 83 milhões para implementar e supervisionar suas técnicas nas prisões clandestinas (black sites) em alguns países, testemunhassem que ele foi levado para uma delas na Polônia, onde ele foi torturado. Os testemunhos serviriam para instruir um processo movido no país do leste europeu, que pretende responsabilizar as autoridades polonesas envolvidas.

A lei americana permite a um tribunal federal ordenar a produção de provas testemunhais e documentais para instruir processos em tramitação em países estrangeiros, como anotado na decisão da Suprema Corte. Mas, nesse caso específico, a Suprema Corte negou o pedido, com base na doutrina do privilégio do governo de não tornar públicos "segredos de estado", em nome da segurança nacional.

O aspecto relevante dessa decisão é o de que os alegados "segredos de estado" não são mais segredos. Já são do conhecimento público. Na decisão de um tribunal federal de recursos, que foi favorável a Abu Zubaydah, mas que a Suprema Corte reverteu, o juiz Richard Paez escreveu, depois de reconhecer que o governo tem, algumas vezes, o direito de manter secretos alguns segredos militares ou de segurança nacional: "A fim de ser um segredo de estado, um fato precisa ser, antes de tudo, um segredo" — o que não era o caso.

O tribunal argumentou que há muitas evidências de que os fatos são de conhecimento público, como o relatório do Senado de 712 páginas sobre tortura, uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que examinou a prisão de tortura polonesa e comunicações já desclassificadas da própria CIA, confirmando que, de fato, Zubaydah foi torturado pela CIA na Polônia.

No voto dissidente, o ministro conservador Neil Gorsuch, que teve o apoio da ministra liberal Sonia Sotomayor e, em parte, da ministra liberal Elena Kagan, destacou que fatos do conhecimento público não podem ser considerados segredos. Ele repetiu alguns pontos da decisão do tribunal de recursos e acrescentou outros:

"Em 2007, o Conselho da Europa divulgou um amplo relatório, informando que a CIA manteve Zubaydah em sua prisão clandestina na Polônia, depois de capturá-lo. Em 2012, o então presidente da Polônia, Aleksander Kwasniewski, disse a repórteres que a prisão clandestina da CIA na Polônia foi estabelecida com seu conhecimento."

Em 2014, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos confirmou, "acima de qualquer dúvida razoável", que Zubaydah ficou preso na Polônia de dezembro de 2002 a setembro de 2003 [depois foi transferido para Guantánamo]. O tribunal apresentou provas em um documento de 100 páginas, incluindo registros de voos já desclassificados, registros do governo polonês e depoimentos de testemunhas oculares".

"O sumário executivo, desclassificado, do relatório do Comitê de Inteligência do Senado sobre o uso de tortura pela CIA, e documentos anexados citam o nome de Zubayah 1.343 vezes."

O ministro concluiu: "Encerrar esse processo pode poupar o governo de mais algum constrangimento. Mas, respeitosamente, não podemos fazer de conta que iremos salvaguardar qualquer segredo".

O ministro liberal Stephen Breyer escreveu no voto da maioria, que teve a adesão de cinco ministros conservadores. Ele disse que o governo tem o direito de reivindicar o privilégio de "segredos de estado", apesar de a informação crítica em questão — neste caso a localização da prisão clandestina da CIA na Polônia — seja publicamente conhecida.

Ele concordou com a alegação da CIA de que as relações "clandestinas" dos EUA e dos serviços de inteligência estrangeiros se baseiam em confiança e devem ser protegidas pelos interesses da segurança nacional.

Para a maioria, não se trata de proteger segredos que já não são secretos. Mas do impedimento do governo de confirmar ou negar os fatos oficialmente, porque isso iria quebrar o compromisso que assumiu com um estado estrangeiro de jamais fazê-lo. E, consequentemente, quebrar a relação de confiança dos EUA com outros países.

Esse argumento foi rebatido por órgãos de imprensa, que declaram que a Suprema Corte fez exatamente isso quando anulou um decreto do presidente Biden, que, por sua vez, havia cancelado o decreto do ex-presidente Trump que criou a política "Remain in Mexico": os latino-americanos que buscavam asilo nos EUA eram obrigados a permanecer no México até que seus casos fossem resolvidos pelas cortes de imigração americanas. Biden havia se comprometido com o presidente do México que iria anular essa política.

O palestino Zubaydah foi capturado no Paquistão em 2002, sob a suspeita de ser um dos principais líderes da Al Qaeda. Ele foi levado, primeiramente, para uma prisão clandestina da CIA na Tailândia e, depois, para a prisão clandestina na Polônia. No final de 2003, foi transferido para Guantánamo Bay.

Foi torturado em todas essas prisões. Foi submetido a "waterboarding", um quase afogamento, 83 vezes, preso em caixa do tamanho de um cofre centenas de horas, impedido de dormir, colocado em posições estressantes, mas nunca confessou o que não sabia, porque não tinha ligação com a Al Qaeda.

Em 2006, a CIA reconheceu o erro que cometeu. Admitiu que ele não era um membro da al-Qaeda, quanto menos um líder. Mas, apesar de ser inocente, Zubaydah continua preso em Guantánamo Bay. Segundo o advogado Mark Denbeaux, agentes da CIA lhe diziam que, se morresse na prisão, seria cremado imediatamente. Se não morresse, permaneceria incomunicável para sempre.

Segundo o advogado, pelo menos um ponto positivo resultou do julgamento na Suprema Corte: na audiência oral em outubro, vários ministros se referiram abertamente aos interrogatórios do prisioneiro como uma forma de tortura.

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