Território Aduaneiro

Faz sentido tributar compras pequenas de plataformas internacionais?

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

31 de maio de 2022, 8h00

Na última semana, foi amplamente divulgada nos veículos de comunicação a declaração do Ministro da Economia, Paulo Guedes, em evento com empresários sobre a possibilidade de taxar todas as compras internacionais realizadas por meio de plataformas estrangeiras como Shein, Shopee e AliExpress — as quais nomeou de "camelódromo virtual". Atualmente, por serem importações de baixo valor e realizadas por pessoas físicas, essas compras costumam gozar de isenção tributária por estarem dentro de um limite de valor que se entende por de minimis.

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A questão da taxação tem por base pleito de um grupo de grandes varejistas e associações industriais brasileiras que defendem a necessidade de tributação de todas as compras eletrônicas realizadas por pessoas físicas como forma de equalizar "as regras do jogo" e impedir que fraudes e subfaturamentos continuem a ocorrer.

Em resposta, circula a notícia de que o Planalto estaria preparando uma Medida Provisória (MP) para taxar todas as compras internacionais, mas o conteúdo de tal norma e a forma de tributação ainda são incertos, o que vem levando a uma série de especulações. Por outro lado, o presidente Jair Bolsonaro utilizou de suas redes sociais para indicar posição diversa de Guedes e negar que assinaria qualquer documento para autorizar esse tipo de contenção dos produtos importados.

Diante do impasse, e considerando que a instabilidade econômica atual e o ano eleitoral são fatores que incitam discussões nem sempre críveis e razoáveis, torna-se relevante avaliar a questão sob o aspecto técnico aduaneiro de forma a pontuar o que se pode esperar a respeito desse tema.

De largada, deve-se ponderar que o pleito dos empresários brasileiros visa, essencialmente, abolir o chamado de minimis, prática comum ao redor do mundo — e, portanto, não exclusiva do Brasil —, definida pela Câmara de Comércio Internacional (ICC, sigla em inglês) como sendo "um limite de valor (teto) de importação de mercadorias até o qual poder-se-á conceder isenção de taxas e impostos e redução dos procedimentos aduaneiros, inclusive relativos a prestação de informação, a um nível mínimo" [1].

No Brasil, a questão é regulada pelo Decreto-Lei nº 1.804/1980 e pela Portaria MF nº 156/1999, e possui as seguintes características: 1) o cálculo do valor máximo de importação sob isenção (US$ 50) [2] é realizado com base no preço CIF das mercadorias importadas, incluindo, portanto, o valor do frete e do seguro; 2) a isenção se aplica ao imposto de importação e aos demais tributos incidentes na entrada de mercadorias no território nacional (IPI, PIS-importação, Cofins-importação), mas existe cobrança de taxa específica dos Correios sobre as remessas; 3) o benefício é restrito a importações realizadas por pessoas físicas para uso ou consumo e, na teoria, é exigido que o remetente também seja pessoa física, ainda que esta última seja relevada pela Aduana na prática atual; e 4) a regra não se aplica para a importação de diversos produtos, como animais vivos, bebidas alcoólicas, substâncias químicas específicas, produtos à base de tabaco e armas [3].

Apesar de não existir um levantamento preciso sobre o número de países que fazem uso de valor de minimis, os dados disponíveis indicam ser prática comum entre a maior parte dos participantes do comércio internacional, sendo utilizado tanto por economias desenvolvidas, quanto em desenvolvimento.

A utilização do de minimis é prática antiga no comércio internacional, mas verifica-se que a questão ganhou particular relevância no contexto da facilitação do comércio, visto que tanto o Acordo sobre Facilitação do Comércio da OMC (AFC), quanto a Convenção de Quioto Revisada da OMA trazem disposições específicas sobre o tema, enquadrando-o como uma forma de agilizar o tempo de desembaraço aduaneiro, melhor alocar os recursos das Aduanas  priorizando cargas de maior risco e relevância econômica  e dar maiores condições de competitividade para empresas de pequeno e médio porte.

Não obstante o AFC e a Convenção de Quioto sejam os principais marcos normativos sobre o tema internacionalmente, observa-se que existem outras instituições internacionais ligadas ao comércio que igualmente apoiam a utilização do de minimis e o promovem enquanto medida importante da desburocratização e aumento da eficiência Aduaneira. A OCDE [4], por exemplo, possui diversos estudos publicados em que o de minimis é tido como ferramenta relevante à facilitação do comércio e ao desenvolvimento do comércio eletrônico. Da mesma forma, a ICC [5] e Global Express Association (GEA) [6] também possuem publicações e estudos relevantes e que vão no mesmo sentido.

De forma geral, o que se pode perceber é que a fixação do valor de mininis passa por uma decisão política de cada país, voltada a apoiar a estratégia de desenvolvimento econômico adotada. Assim, países com uma visão mais liberal e de integração ao comércio internacional tendem a apostar em tetos mais altos, ao passo que países mais protecionistas tendem a restringir mais os valores e tipo de uso desse mecanismo. Outro fator relevante na determinação e atualização do teto de minimis nos últimos tempos tem sido a questão do fomento ao comércio eletrônico.

Em estudo realizado pelo Global Express Association (GEA) em 100 países, constatou-se que a maior parte, equivalente a 42%, ainda determina como de mininis apenas valores inferiores a US$100, ao passo que 39% determina valores entre US$ 100 e US$199. Assim, seguindo as atuais recomendações da ICC, observa-se que apenas 14% dos países pesquisados aplicam o tratamento concedido ao valor de minimis a importações de US$200 ou mais [7].

Além disso, outro dado interessante é trazido por estudo publicado em meados de 2019 pela Economic Research and Statistics Division do Secretariado da OMC no âmbito do Grupo de Trabalho informal sobre micro, pequenas e médias empresas. O estudo, que foca na evolução e tratamento conferido ao de minimis por 58 países entre 2016 e 2019, aponta que a maior parte (64%) manteve os valores limites estabelecidos nesse período. Por outro lado, 21% dos países aumentaram o limite do de minimis, ao passo que 7% reduziram o valor do de minimis pré-existente e 8% aboliram sua utilização.

Ainda segundo o estudo, as reduções e exclusões do valor de minimis se devem, em larga maioria, a razões de arrecadação fiscal e proteção do mercado doméstico. Dentre os países que reduziram o teto para esse tipo de importação estão Taiwan e Rússia, enquanto Qatar e Paraguai estão dentre aqueles que excluíram o mecanismo.

O que se verifica na prática é que a utilização de valores de minimis é estimulada pelas principais instituições internacionais voltadas ao comércio internacional, que defendem a existência de benefícios aos consumidores/importadores  em termos de acesso a oferta de produtos, tempo de recebimento e redução de custos ; aos exportadores de pequeno e médio porte —  que passam a ser mais competitivos e a ter acesso a novos mercados ; e também à Aduana, que fica desonerada de custos cotidianos com controle aduaneiro de baixo risco, podendo alocar maiores esforços/pessoal/recursos em operações de importação que apresentam maior risco e maior arrecadação aos cofres públicos, melhorando sua atuação e indicadores de desempenho.

No que concerne à Administração Aduaneira, exercida no Brasil pela RFB, verifica-se que existem ganhos e desafios a serem ponderados, os quais se relacionam, majoritariamente, com aumento de eficiência, melhor gerenciamento de pessoal, redução de custos com fiscalização e favorecimento do combate ao comércio ilícito em detrimento de ações voltadas à arrecadação tributária.

A posição pública mais recente da RFB segue as recomendações e conclusões da Nota Técnica Sutri/Suari, divulgada em 12/02/2014, que defende a legalidade do teto de minimis de US$50 e fixa como critérios de determinação do limites os seguintes fatores: 1) o volume de mercadorias desembaraçadas nessa condição e o consequente impacto dessa entrada na economia nacional; 2) a concorrência que esses produtos exercem sobre os produtores nacionais de mercadorias similares, que pagam regularmente seus tributos; 3) o impacto dessa renúncia na arrecadação; e 4) o custo de fiscalização e cobrança de tributos sobre cada volume [8].

No que concerne ao impacto econômico dessas remessas e a renúncia fiscal atrelada, verifica-se que, apesar do aumento no volume de produtos de baixo valor importados por pessoas físicas, não houve alteração em termos absolutos capaz de gerar uma real preocupação. Conforme dados publicados pela RFB [9], o aumento de quase 150% de 2020 para 2021 no volume de remessas postais de importação se deu em razão de demanda reprimida pela pandemia. Avaliando os dados de 2021 em relação a 2019, verifica-se que o aumento total foi bem mais modesto, da ordem de 60%. Assim, o ponto central continua sendo o custo de fiscalização e cobrança de tributos sobre cada volume  questão altamente sensível, considerando os já conhecidos problemas com falta de pessoal e cortes orçamentários sucessivos.

Diante disso, resta claro que, para atender ao pleito realizado, o governo brasileiro precisaria não apenas onerar ainda mais a rotina de fiscalização da RFB e que não se amolda ao modelo de gestão de risco atualmente em vigor, mas também se afastaria das melhores práticas internacionais, contrariando recomendações de relevantes instituições internacionais, como a OCDE, e descumprindo acordos multilaterais vigentes; situação temerária e não recomendada sob o ponto de vista do comércio internacional.

Isso não significa, todavia, que não exista espaço para que as denúncias de fraude recebidas deixem de ser endereçadas e que melhoramentos sejam realizados para atualizar o modelo vigente. A prática internacional oferece insights relevantes de como o Brasil poderia aprimorar suas rotinas, seja em termos de fiscalização, seja em termos de atenção à concorrência interna, sem abrir mão do uso do de minimis.

O modelo americano, por exemplo, ajustado em 2015 por meio do Trade Facilitation and Trade Enforcement Act (TFTEA), abriu um maior diálogo com o setor privado para que gargalos fossem informados e endereçados. Como consequência, desde o início de 2020, a Administração Aduaneira americana vem implementando um projeto piloto vinculado às importações de baixo valor contempladas pelo de minimis como forma de testar um novo sistema de controle aduaneiro com formulário atualizado e que permitirá a análise e despacho antecipado dessas importações, antes de sua chegada física. Esta iniciativa faz parte do que o governo americano chama de "E-commerce Strategy" e está relacionada à busca por estratégias o que permitam a facilitação do comércio para pequenas remessas e desenvolvimento de mecanismos que fomentem o comércio eletrônico no país [10].

Já no caso da União Europeia, o de minimis segue as regras impostas pela Resolução nº 1186/2009 do Conselho da EU, que determina que será permitida a importação sem a incidência de imposto de importação de remessas com valor negligenciável advindas de terceiros países, não aplicando qualquer restrição quanto a destinação da mercadoria ou a natureza do remetente e do destinatário. Por outro lado, a isenção dada diz respeito apenas aos tributos de importação, condicionando essas importações ao pagamento do imposto sobre consumo (VAT), de forma a equiparar o tratamento dispensado aos produtos nacionais, tal qual ocorre nas importações normais.

Dito isso, conclui-se que, ainda que haja espaço para que ajustes sejam realizados de forma a coibir fraudes e proteger o comércio doméstico, abdicar do uso do de minimis traria mais prejuízos do que ganhos, inclusive para as empresas brasileiras, visto que a máquina pública ficaria ainda mais sobrecarregada para exercer o controle sobre remessas que não possuem risco compatível com o dispêndio necessário, implicando atrasos e problemas que poderiam atingir o fluxo de despacho aduaneiro como um todo.

[1] Este conceito consta do documento Customs Guidelines, fruto de esforços realizados pela CCI juntamente com a Organização Mundial das Aduanas (OMA) dentro de um projeto de cooperação com a finalidade de divulgar um conjunto abrangente de práticas características da administração aduaneira moderna. Ver  CCI. Customs Guidelines. 2012. Disponível em <https://iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2003/06/ICC-Customs-Guidelines.pdf>. Acesso 28 maio 2022.

[2] Apesar de não ser objeto do presente artigo, cabe salientar que existe controvérsia a respeito de qual seria, de fato, o limite máximo de valor para que tais remessas se enquadrem no de minimis. Isto porque, boa parte dos especialistas defendem que a redação dada em 1991 ao Decreto-Lei nº 1.804/1980 teria imposto valor limite de US$100 (cem dólares), tendo a Portaria MF nº 156/1999, entre outras providências, extrapolado sua competência ao reduzir o teto de minimis para US$50. A consequência disso foi uma massiva judicialização da discussão, com expressivo ganho dos contribuintes. A Fazenda Nacional, ato reflexo, chegou a realizar Pedido de Uniformização de Interpretação Jurisprudencial junto ao Conselho da Justiça Federal (CJF) em 2014, que foi conhecido, mas julgado improcedente. A questão ainda não restou pacificada nos tribunais superiores. 

[3] A lista completa com detalhamento por classificação fiscal encontra-se disponível no site dos correios. Disponível em <https://www.correios.com.br/enviar-e-receber/importacao/Lista_objetos_proibidos.pdf/view>. Acesso em 26 mai 2022.

[4] OECD. OECD-WTO Handbook on Measuring Digital Trade. 2019. Disponível em <https://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=SDD/CSSP/WPTGS(2019)4&docLanguage=En>. Acesso 26 mai 2022.

[5] ICC. Global Baseline De Minimis Value Thresholds. 2015. Disponível <https://cdn.iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2015/02/ICC-Policy-Statement-on-Global-Baseline-De-Minimis-Value-Thresholds-2015.pdf >. Acesso 26 mai 2022.

[6] GLOBAL EXPRESS ASSOTIATION. Express Delivery and Trade Facilitation: Impacts on the Global Economy. 2015. Disponível <https://global-express.org/assets/files/Members-Library-2/GEA_FinalReport_040315_STC.pdf>. Acesso 26 mai 2022.

[7] GLOBAL EXPRESS ASSOCIATION. Overview of de minimis value regimes open to express shipments worldwide. 2018. Disponível <https://global-express.org/assets/files/Customs%20Committee/de-minimis/GEA%20overview%20on%20de%20minimis_9%20March%202018.pdf>. Acesso 26 mai 2022.

[8] Receita Federal do Brasil. Nota técnica: Limite de isenção em remessas de pequeno valor. Disponível em <http://receita.economia.gov.br/noticias/ascom/2014/fevereiro/nota-tecnica-limite-de-isencao-em-remessas-de-pequeno-valor>. Acesso 20 maio 2022.

[9] Receita Federal do Brasil. Balanço Aduaneiro 2021. Disponível em <https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorios/aduana/balanco-aduaneiro-2021/view>. Acesso 29 mai 2022.

[10] US CUSTOMS AND BORDER PROTECTION. CBP and Trade Partners are Taking Action to Secure eCommerce Supply Chains. Disponível em <https://www.cbp.gov/newsroom/national-media-release/cbp-and-trade-partners-are-taking-action-secure-ecommerce-supply>. Acesso 02 jun 2020.

Autores

  • é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

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